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São Paulo, segunda-feira, 15 de dezembro de 2003

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Em 24 anos, Saddam destruiu Iraque

Com base política frágil, ex-ditador manteve-se no poder por meio da crueldade e do terror extremos

PATRICK COCKBURN
DO "INDEPENDENT"

Retratos desfigurados de Saddam Hussein se espalham por toda parte no Iraque. Na entrada de cada cidade iraquiana há um retrato do líder iraquiano, hoje com o rosto pipocado de buracos de bala ou semidestruído por coronhadas, olhando para seu país devastado e ocupado.
Saddam realizou só um de seus sonhos. Ele queria ser um marco na história, fazer seu nome ser conhecido no mundo. Em função dos absurdos do culto a sua pessoa em seu próprio país e da satanização, às vezes igualmente exagerada, de seu governo por seus inimigos no exterior, o fato é que seu nome jamais será esquecido.
Saddam destruiu o Iraque. Quando chegou à Presidência, em 1979, ele ganhou controle de um país com uma população instruída, dotada de uma administração eficiente e extensas reservas petrolíferas. Em um quarto de século, ele depauperou sua população, obrigou boa parte dela a partir para o exílio e deixou os campos de petróleo do Iraque nas mãos de tropas estrangeiras.
Ele não era destituído de inteligência, mas era a inteligência do policial secreto. E, em momentos cruciais, era quase sempre superada por sua arrogância. Suas ações afetaram de maneira tão dramática o Iraque, o Oriente Médio e o mundo que é fácil esquecer que, sob muitos aspectos, Saddam era um político de pequena monta, cuja base política em seu país nunca deixou de ser estreita.
Saddam afirmava ter ascendido ao poder graças unicamente a seus esforços próprios, mas, na realidade, foi criado por uma família, uma cidade e uma comunidade que já buscavam o poder. Nascido em 1937 perto da cidade de Tikrit, seu clã e sua tribo já tinham posições importantes no Exército quando Saddam era garoto. Ele era muçulmano sunita num país de maioria xiita no qual os sunitas sempre exerceram o controle efetivo, mesmo sob domínio otomano e britânico.
Conduzido ao poder por um golpe de Estado militar em 1968, o Partido Baath nunca chegou a ter uma base nas massas, embora em dado momento tenha declarado ter 1,5 milhão de membros. Três quartos da população iraquiana eram formados por curdos ou xiitas que sempre temeram e odiaram o regime. Não era um governo militar, um que fosse dotado da grande segurança de possuir força armada avassaladora, mas um governo dependente dos serviços de segurança, cujo domínio era mantido por meio da crueldade e do terror extremos.
Era um regime extremamente tribal. Saddam era membro do clã Baijat, um dos seis clãs pertencentes à confederação tribal Albu Nasir, da região de Tikrit. Mas havia outras subdivisões. Era pela linhagem Albu Ghafar, à qual Saddam pertencia, que o líder iraquiano governava, distribuindo cargos-chave na segurança a seus parentes próximos. Esse controle tribal era oculto pela política aparente do Baath de opor-se ao tribalismo e de proibir as pessoas de usar nomes de origens tribais.

Três guerras
A debilidade do governo de Saddam se evidenciou nas três guerras que ele travou. Em 1980, Saddam invadiu o Irã, estimulado pelas então aliadas potências ocidentais, assustadas com a Revolução Islâmica de 1979, mas os iranianos o rechaçaram até o cessar-fogo de 1988. Em 1991, boa parte do Exército iraquiano no Kuait não combateu. A ""mãe de todas as batalhas" que Saddam prometeu não chegou a acontecer.
Saddam preparou cuidadosamente a guerra deste ano contra os EUA e o Reino Unido. Forças de segurança, os fedayin de Saddam e militantes do Partido Baath foram enviados para impedir as deserções, sob a mira de armas. Por algum tempo, essa tática pareceu funcionar. Mas, quando as forças americanas se aproximaram de Bagdá, as muito faladas divisões da Guarda Republicana desapareceram. O número de iraquianos dispostos a morrer por Saddam -e morrer sabendo que a derrota era inevitável- acabou sendo minúsculo.
Saddam mostrava seu lado mais eficaz quando enfrentava a derrota. Era quando a realidade, normalmente obscurecida pelas lisonjas e o pensamento voltado ao que ele desejava, começava a atingi-lo. Saddam conseguiu evitar a derrota pelo Irã, embora o tenha feito só com a ajuda de boa parte do resto do mundo. Em 1991, ele sobreviveu à derrota total no Kuait e a duas grandes insurreições, dos curdos e dos xiitas.
Depois da derrota de 1991, sua margem de manobra se tornou restrita. Dependia de um círculo interno de familiares para se proteger contra golpes. Nenhuma unidade militar podia ser deslocada sem a aprovação dos serviços de segurança. As sanções reduziram o nível de vida iraquiano ao de um país centro-africano depauperado. Mas não afetaram o estilo de vida de Saddam, nem impediram que enormes palácios vazios fossem erguidos nas principais cidades do país.
O fato de 60% dos iraquianos serem miseráveis, dependentes dos alimentos pagos com o programa da ONU de petróleo em troca de comida e distribuídos com eficiência pela gestão iraquiana, tornava a população ainda mais subordinada ao governo.
Nos últimos 12 anos, Saddam pôde sobreviver no poder porque, em última análise, os EUA não faziam objeções a um Iraque enfraquecido, tratado como pária internacional.

Despreparo militar
Quando veio a guerra, as armas de destruição em massa nunca foram usadas e é possível que nunca tenham existido em grande quantidade. O Exército iraquiano era fraco e mal equipado, e seus homens mal tinham como se alimentar. A formação das chamadas unidades de elite, compostas de homens tirados de tribos sunitas, era profundamente desmoralizadora para o resto do Exército, do qual 80% eram xiitas.
Depois de 1991, Saddam fez muito pouco, exceto manter-se no poder. Entre 1995 e 1996, superou uma série de crises que incluíram uma tentativa de golpe, a deserção de seu genro general Hussain Kamel (posteriormente atraído de volta a Bagdá e assassinado) e um atentado que feriu seu filho mais velho, Uday. Mas ele não conseguiu pôr fim às sanções nem romper o isolamento internacional do Iraque, embora seu poder interno parecesse sólido.

Cerco americano
Tudo isso mudou com o 11 de Setembro. Não foi difícil retratar Saddam como sendo uma ameaça e motivo de preocupação para todos os americanos. Desde o início do ano passado, Washington parecia estar decidida a ir à guerra. Saddam tentou adiar a investida, autorizando o retorno dos inspetores da ONU, mas provavelmente com poucas esperanças de adiar a batalha final.
Não se sabe quais foram seus pensamentos nos últimos dias do regime. Apesar de terem expresso lealdade eterna ao líder, vários membros de alto escalão iraquiano parecem ter decidido que não iriam lutar até o fim. Bagdá não foi fortificada contra um cerco. As pontes sobre os rios Tigre e Eufrates não foram destruídas.
A carreira de Saddam Hussein terminou em fracasso total e na destruição do Iraque. Ele não possuía qualidades notáveis que o redimissem. A selvageria de seu regime autoritário era exacerbada pelas divisões internas do Iraque, mas ele próprio fez o que pôde para garantir que as diferentes comunidades iraquianas se sentissem ameaçadas umas pelas outras. Nas semanas que se seguiram à queda de Bagdá, entretanto, é possível que Saddam tenha se comprazido em ver os EUA tão rapidamente dissipar, aos olhos da população iraquiana, qualquer capital político que pudessem ter ganho com sua derrubada, apesar da tristeza de ver a morte de seus dois filhos, Uday e Qusay, nas mãos dos americanos.


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