|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTIGO
Esquerda não deve chorar por Saddam
TONY BLAIR
ESPECIAL PARA O "LE MONDE"
Está acontecendo neste momento o primeiro de uma série de
encontros entre políticos e especialistas progressistas do mundo
inteiro, antes da Conferência para
a Governança Progressista, que
terá lugar entre 11 e 13 de julho,
em Londres. Naturalmente, as
atenções estão centradas na possibilidade de um conflito no Iraque.
Quero apenas fazer duas observações sobre esse assunto, dentro de
uma perspectiva política progressista.
A primeira é que a ONU disse
claramente a Saddam Hussein
que ele deve se desarmar, ordem
esta que ele poderia obedecer facilmente. Se ele não obedecer, é
preciso que a vontade da ONU seja respeitada. De outro modo, ficaria muito difícil, no futuro, argumentar a favor da ONU como
meio de resolver problemas dessa
natureza.
Segunda observação: na medida
em que, desde a queda do Taleban, o regime de Saddam Hussein
é a ditadura mais brutal e mais tirânica do mundo -e o povo iraquiano é sua primeira vítima-,
seria estranho ver pessoas de esquerda derramar lágrimas por
sua saída do poder. E, se essa saída se desse por imposição da
ONU, ela deveria ser recebida
com forte apoio.
Nossa tarefa não deveria ser a de
buscar de antemão um engajamento total na luta contra as armas de destruição em massa e o
terrorismo, mas a de ampliar a
perspectiva, de insistir que a mesma quantidade de esforço e energia seja aplicada para promover a
paz no Oriente Médio entre israelenses e palestinos, reduzir a pobreza no mundo, ajudar a África e
combater as mudanças climáticas.
Os próximos meses vão determinar nossa capacidade real de
influir sobre o rumo dos fatos de
maneira significativa. Mas não
sinto dúvida alguma sobre isso.
É nesse espírito de solidariedade internacional que o governo
trabalhista do Reino Unido abriu
o caminho para a anulação da dívida do Terceiro Mundo, aumentou a assistência proporcionalmente ao PIB, de maneira que nenhum outro país comparável fez,
e concebeu a Nepad, ou Nova Parceria para o Desenvolvimento da
África.
Em matéria de política externa,
o governo ultrapassou a divisão
tradicional entre velha esquerda e
nova direita.
A nova direita no poder tinha
reduzido nosso orçamento de assistência internacional e isolado o
Reino Unido dentro da Europa.
Nós promovemos alguns objetivos trabalhistas tradicionais, por
exemplo com relação à assistência
e ao desenvolvimento, mas também nos mostramos prontos, em
Kosovo e no Afeganistão, a partir
para uma ação militar para defender nossos valores. E afirmamos
claramente que o lugar do Reino
Unido é dentro da Europa.
A política da Terceira Via já foi
retratada como sendo nem de direita nem de esquerda. De fato. É
a social-democracia moderna,
inscrita com firmeza na tradição
política da esquerda progressista,
mas buscando subsídios tanto no
legado de Keynes, Beveridge e
Lloyd George quanto no de Attlee, Bevin e Bevan.
Os valores -justiça social,
igualdade, solidariedade- continuam os mesmos. Mas devem
aplicar-se de maneira diferente a
um mundo diferente.
A onda de liberalização e de
avanços tecnológicos estimulou
hoje uma nova dinâmica no capitalismo mundial. O fim da Guerra
Fria e o colapso do comunismo
alimentaram um otimismo fantástico do Ocidente quanto ao futuro, visão sintetizada pela tese de
Francis Fukuyama sobre ""o fim
da história". Uma década mais
tarde, já é mais fácil distinguir os
limites da globalização e as tensões que ela gera.
Assistimos ao aumento da insegurança sob todas suas formas:
terrorismo e armas de destruição
em massa em nossas telas de televisão, impacto dos fluxos migratórios e da criminalidade em nossas ruas.
Na economia globalizada, o otimismo dos anos 90 se dissipou.
Os mercados financeiros estão em
baixa. Os riscos de deflação e de
recessão prolongada exacerbam
os problemas sociais em grande
parte da Europa ocidental e do Japão.
Neste momento, as pessoas se
voltam ao poder coletivo do governo, buscando ajuda. Elas sabem que essas formas de insegurança não têm solução individual.
No campo da saúde, o Serviço
Nacional de Saúde britânico é
mais necessário do que nunca, no
momento em que os custos dos
seguros médicos privados aumentam e que o custo dos tratamentos de doenças graves, sobretudo para os idosos, ultrapassa a
renda da maioria das pessoas.
Sem educação, não haverá mais
força de trabalho qualificada no
futuro.
Para 99% de nós, a lei e a ordem
só podem ser garantida de maneira coletiva.
Mas também vivemos numa
época mais individualista em que
a escolha do consumidor, a liberdade quanto ao modo de vida e a
mundialização oferecem uma
ampla gama de possibilidades
com a qual a geração de nossos
avós jamais sonhou.
Além disso, sabemos que as soluções em que tudo fica a cargo do
Estado podem não passar de outra forma de direitos adquiridos,
que aqueles que produzem nem
sempre são os que sabem mais e
que determinados serviços podem ser fornecidos por fontes beneficentes ou privadas, tanto
quanto pelas públicas.
A Terceira Via, conforme a definimos originalmente, é composta
de quatro elementos distintos que
ultrapassam radicalmente a velha
divisão entre esquerda e direita.
No campo econômico, a aceitação de uma disciplina fiscal e monetária acompanhada de um investimento em capital humano,
ciência e transmissão do saber.
Na sociedade civil, uma abordagem aos direitos e deveres fundamentada na ""condicionalidade"
da ajuda social, na firmeza da lei e
da ordem acompanhada de programas sociais para tratar as causas da criminalidade.
Nos serviços públicos, um engajamento profundo para garantir a
igualdade de oportunidades, mas
também reformas e reestruturações para oferecer serviços mais
diversificados e adaptados a cada
caso, construídos sobre as necessidades do consumidor moderno,
e também para garantir os bens
públicos que os mercados, abandonados unicamente a sua lógica
própria, não poderão fornecer.
Na área da política externa, uma
defesa sólida, o compromisso de
promover a justiça mundial.
Essas idéias nos permitiram
aliar posições que, no passado, a
esquerda via como sendo irreconciliáveis: patriotismo e internacionalismo, direitos e deveres, promoção do empreendimento e
combate à pobreza e à injustiça
social.
Ainda há escolhas difíceis a serem feitas em matéria de políticas
públicas, mas precisamos superar
as idéias rígidas e as atitudes ultrapassadas.
Essas idéias conquistaram o
apoio de um número notável de
dirigentes políticos, tendo relegado outras correntes da esquerda à
marginalidade. Elas lançaram
uma ponte entre os novos democratas dos Estados Unidos e a social-democracia européia. A bandeira da Terceira Via conseguiu se
instalar como referência central
nas discussões sobre o futuro do
centro-esquerda, desde a Europa
continental até o Brasil e até mesmo à China.
Entretanto, se a Terceira Via
lançou uma ponte transatlântica
em direção aos democratas de
Clinton, a política dos Estados
Unidos mudou radicalmente desde 11 de setembro de 2001 e após o
estouro da bolha da internet.
Dentro da Europa, o controle
do poder por governos da esquerda modernizadora, como se viu
no final dos anos 90, se enfraqueceu.
Precisamos agora levar essas
idéias adiante para renovar uma
política progressista adaptada ao
mundo de hoje. Precisamos, em
especial, focalizar a maneira de
formar uma força de trabalho especializada e moderna, assim como as empresas que serão capazes de dar um impulso acelerador
a nossa economia, num momento
em que países em que a mão-de-obra é barata produzem bens e
oferecem serviços a preços mais
baixos.
É por essa razão que é essencial
investir na ciência, na tecnologia,
na reforma das universidades, no
combate ao analfabetismo e ao
baixo nível de instrução de adultos, e em aprendizados mais modernos.
Precisamos resolver a injustiça
dos serviços públicos pobres, geralmente utilizados pelos mais
pobres, por meio de mudanças
estruturais fundamentais, além
de aumento das verbas.
Precisamos enxergar a lei e a ordem como indo além da criminalidade e a repressão.
É preciso também desenvolver
uma cidadania responsável e participativa que possa proporcionar
ao cidadão um sentimento de fazer parte da comunidade na qual
ele vive.
Precisamos, sobretudo, ser bem
mais radicais na distinção que fazemos entre meios e fins. O flagelo do centro-esquerda é a confusão entre os dois. Objetivos, valores e convicções não mudam nunca. Já os meios devem evoluir,
acompanhando a evolução do
mundo.
O mundo inteiro está disposto a
aceitar os objetivos, a apoiar os
valores. As pessoas estão dispostas a acreditar, como nós, que,
num mundo interdependente,
precisamos nos ajudar mutuamente para reduzir as inseguranças e maximizar as oportunidades.
O que elas duvidam é de nossa
determinação em fazer uso de todos os meios necessários para alcançar resultados e de nossa capacidade de renovar as idéias do
centro-esquerda para que ela tenha condições de atender a essas
novas exigências.
É nessa direção que deve voltar-se hoje a discussão política entre
progressistas.
Tony Blair é o primeiro-ministro do Reino Unido
Tradução de Clara Allain
Texto Anterior: Com estratégia arriscada, premiê fica mais isolado Próximo Texto: Discurso pacifista é negativo, diz analista Índice
|