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São Paulo, domingo, 16 de fevereiro de 2003

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ARTIGO

Esquerda não deve chorar por Saddam

TONY BLAIR
ESPECIAL PARA O "LE MONDE"

Está acontecendo neste momento o primeiro de uma série de encontros entre políticos e especialistas progressistas do mundo inteiro, antes da Conferência para a Governança Progressista, que terá lugar entre 11 e 13 de julho, em Londres. Naturalmente, as atenções estão centradas na possibilidade de um conflito no Iraque. Quero apenas fazer duas observações sobre esse assunto, dentro de uma perspectiva política progressista.
A primeira é que a ONU disse claramente a Saddam Hussein que ele deve se desarmar, ordem esta que ele poderia obedecer facilmente. Se ele não obedecer, é preciso que a vontade da ONU seja respeitada. De outro modo, ficaria muito difícil, no futuro, argumentar a favor da ONU como meio de resolver problemas dessa natureza.
Segunda observação: na medida em que, desde a queda do Taleban, o regime de Saddam Hussein é a ditadura mais brutal e mais tirânica do mundo -e o povo iraquiano é sua primeira vítima-, seria estranho ver pessoas de esquerda derramar lágrimas por sua saída do poder. E, se essa saída se desse por imposição da ONU, ela deveria ser recebida com forte apoio.
Nossa tarefa não deveria ser a de buscar de antemão um engajamento total na luta contra as armas de destruição em massa e o terrorismo, mas a de ampliar a perspectiva, de insistir que a mesma quantidade de esforço e energia seja aplicada para promover a paz no Oriente Médio entre israelenses e palestinos, reduzir a pobreza no mundo, ajudar a África e combater as mudanças climáticas.
Os próximos meses vão determinar nossa capacidade real de influir sobre o rumo dos fatos de maneira significativa. Mas não sinto dúvida alguma sobre isso.
É nesse espírito de solidariedade internacional que o governo trabalhista do Reino Unido abriu o caminho para a anulação da dívida do Terceiro Mundo, aumentou a assistência proporcionalmente ao PIB, de maneira que nenhum outro país comparável fez, e concebeu a Nepad, ou Nova Parceria para o Desenvolvimento da África.
Em matéria de política externa, o governo ultrapassou a divisão tradicional entre velha esquerda e nova direita.
A nova direita no poder tinha reduzido nosso orçamento de assistência internacional e isolado o Reino Unido dentro da Europa. Nós promovemos alguns objetivos trabalhistas tradicionais, por exemplo com relação à assistência e ao desenvolvimento, mas também nos mostramos prontos, em Kosovo e no Afeganistão, a partir para uma ação militar para defender nossos valores. E afirmamos claramente que o lugar do Reino Unido é dentro da Europa.
A política da Terceira Via já foi retratada como sendo nem de direita nem de esquerda. De fato. É a social-democracia moderna, inscrita com firmeza na tradição política da esquerda progressista, mas buscando subsídios tanto no legado de Keynes, Beveridge e Lloyd George quanto no de Attlee, Bevin e Bevan.
Os valores -justiça social, igualdade, solidariedade- continuam os mesmos. Mas devem aplicar-se de maneira diferente a um mundo diferente.
A onda de liberalização e de avanços tecnológicos estimulou hoje uma nova dinâmica no capitalismo mundial. O fim da Guerra Fria e o colapso do comunismo alimentaram um otimismo fantástico do Ocidente quanto ao futuro, visão sintetizada pela tese de Francis Fukuyama sobre ""o fim da história". Uma década mais tarde, já é mais fácil distinguir os limites da globalização e as tensões que ela gera.
Assistimos ao aumento da insegurança sob todas suas formas: terrorismo e armas de destruição em massa em nossas telas de televisão, impacto dos fluxos migratórios e da criminalidade em nossas ruas.
Na economia globalizada, o otimismo dos anos 90 se dissipou. Os mercados financeiros estão em baixa. Os riscos de deflação e de recessão prolongada exacerbam os problemas sociais em grande parte da Europa ocidental e do Japão.
Neste momento, as pessoas se voltam ao poder coletivo do governo, buscando ajuda. Elas sabem que essas formas de insegurança não têm solução individual.
No campo da saúde, o Serviço Nacional de Saúde britânico é mais necessário do que nunca, no momento em que os custos dos seguros médicos privados aumentam e que o custo dos tratamentos de doenças graves, sobretudo para os idosos, ultrapassa a renda da maioria das pessoas.
Sem educação, não haverá mais força de trabalho qualificada no futuro.
Para 99% de nós, a lei e a ordem só podem ser garantida de maneira coletiva.
Mas também vivemos numa época mais individualista em que a escolha do consumidor, a liberdade quanto ao modo de vida e a mundialização oferecem uma ampla gama de possibilidades com a qual a geração de nossos avós jamais sonhou.
Além disso, sabemos que as soluções em que tudo fica a cargo do Estado podem não passar de outra forma de direitos adquiridos, que aqueles que produzem nem sempre são os que sabem mais e que determinados serviços podem ser fornecidos por fontes beneficentes ou privadas, tanto quanto pelas públicas.
A Terceira Via, conforme a definimos originalmente, é composta de quatro elementos distintos que ultrapassam radicalmente a velha divisão entre esquerda e direita.
No campo econômico, a aceitação de uma disciplina fiscal e monetária acompanhada de um investimento em capital humano, ciência e transmissão do saber.
Na sociedade civil, uma abordagem aos direitos e deveres fundamentada na ""condicionalidade" da ajuda social, na firmeza da lei e da ordem acompanhada de programas sociais para tratar as causas da criminalidade.
Nos serviços públicos, um engajamento profundo para garantir a igualdade de oportunidades, mas também reformas e reestruturações para oferecer serviços mais diversificados e adaptados a cada caso, construídos sobre as necessidades do consumidor moderno, e também para garantir os bens públicos que os mercados, abandonados unicamente a sua lógica própria, não poderão fornecer.
Na área da política externa, uma defesa sólida, o compromisso de promover a justiça mundial.
Essas idéias nos permitiram aliar posições que, no passado, a esquerda via como sendo irreconciliáveis: patriotismo e internacionalismo, direitos e deveres, promoção do empreendimento e combate à pobreza e à injustiça social.
Ainda há escolhas difíceis a serem feitas em matéria de políticas públicas, mas precisamos superar as idéias rígidas e as atitudes ultrapassadas.
Essas idéias conquistaram o apoio de um número notável de dirigentes políticos, tendo relegado outras correntes da esquerda à marginalidade. Elas lançaram uma ponte entre os novos democratas dos Estados Unidos e a social-democracia européia. A bandeira da Terceira Via conseguiu se instalar como referência central nas discussões sobre o futuro do centro-esquerda, desde a Europa continental até o Brasil e até mesmo à China.
Entretanto, se a Terceira Via lançou uma ponte transatlântica em direção aos democratas de Clinton, a política dos Estados Unidos mudou radicalmente desde 11 de setembro de 2001 e após o estouro da bolha da internet.
Dentro da Europa, o controle do poder por governos da esquerda modernizadora, como se viu no final dos anos 90, se enfraqueceu.
Precisamos agora levar essas idéias adiante para renovar uma política progressista adaptada ao mundo de hoje. Precisamos, em especial, focalizar a maneira de formar uma força de trabalho especializada e moderna, assim como as empresas que serão capazes de dar um impulso acelerador a nossa economia, num momento em que países em que a mão-de-obra é barata produzem bens e oferecem serviços a preços mais baixos.
É por essa razão que é essencial investir na ciência, na tecnologia, na reforma das universidades, no combate ao analfabetismo e ao baixo nível de instrução de adultos, e em aprendizados mais modernos.
Precisamos resolver a injustiça dos serviços públicos pobres, geralmente utilizados pelos mais pobres, por meio de mudanças estruturais fundamentais, além de aumento das verbas.
Precisamos enxergar a lei e a ordem como indo além da criminalidade e a repressão.
É preciso também desenvolver uma cidadania responsável e participativa que possa proporcionar ao cidadão um sentimento de fazer parte da comunidade na qual ele vive.
Precisamos, sobretudo, ser bem mais radicais na distinção que fazemos entre meios e fins. O flagelo do centro-esquerda é a confusão entre os dois. Objetivos, valores e convicções não mudam nunca. Já os meios devem evoluir, acompanhando a evolução do mundo.
O mundo inteiro está disposto a aceitar os objetivos, a apoiar os valores. As pessoas estão dispostas a acreditar, como nós, que, num mundo interdependente, precisamos nos ajudar mutuamente para reduzir as inseguranças e maximizar as oportunidades.
O que elas duvidam é de nossa determinação em fazer uso de todos os meios necessários para alcançar resultados e de nossa capacidade de renovar as idéias do centro-esquerda para que ela tenha condições de atender a essas novas exigências.
É nessa direção que deve voltar-se hoje a discussão política entre progressistas.


Tony Blair é o primeiro-ministro do Reino Unido

Tradução de Clara Allain


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