São Paulo, quinta-feira, 16 de fevereiro de 2006

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COMENTÁRIO

Bagunça vence participação

DA REPORTAGEM LOCAL

A Minustah tinha três grandes recorrências históricas a evitar durante as eleições haitianas. A primeira delas, bem cumprida, foi assegurar que episódios de violência política não voltassem a se repetir. Decorrente disso, os haitianos apostaram na democracia e encheram os centros de votação, mesmo o voto não sendo obrigatório. Mas a promessa dos organizadores de assegurar eleições transparentes, que levassem a um resultado incontestável, falhou fragorosamente.
Durante o dia das eleições, a reportagem da Folha esteve nas regiões de Cité Soleil e Bel Air durante a parte da manhã e testemunhou os tumultos provocados pelo atraso na abertura das urnas.
Num dos centros eleitorais perto de Cité Soleil -imensa favela que concentra cerca de 250 mil moradores-, as salas de votação foram invadidas por milhares de eleitores, enquanto deficientes físicos, mulheres grávidas, crianças e idosos se abrigavam da multidão enfurecida.
Nas cabines, onde a norma previa um eleitor de cada vez, dezenas pegavam as cédulas ao mesmo tempo e votavam na frente de todos, sem sigilo nenhum. Os funcionários eleitorais, assustados, mal preparados e com o pagamento atrasado, mais obedeciam do que comandavam.
Já em Bel Air, os militares brasileiros -os quais, é bom ressaltar, cuidaram das regiões mais difíceis e contribuíram para evitar um desastre- tiveram de usar tiros de festim e gás lacrimogêneo para evitar a invasão de eleitores.
A confusão testemunhada pela reportagem coincide com relatórios de observadores nacionais e internacionais. A União Européia, por exemplo, disse que o Conselho Eleitoral Provisório haitiano (CEP) "não possuía a capacidade administrativa e organizacional necessária para conduzir as eleições" e criticou a falta de coordenação com a ONU e a OEA.
Logo após a eleição, o que os observadores internacionais, a Minustah e vários diplomatas esperavam -de dedos cruzados- era que o comparecimento histórico e o favoritismo do ex-presidente René Préval assegurassem a ele uma ampla vitória. Isso compensaria a bagunça da organização e evitaria a contestação nas ruas. Para alguns analistas, como é no Haiti, vale quase tudo.
Já houve candidatos que reclamaram na semana passada. O empresário "Charlito" Baker, o terceiro mais votado e favorito da elite haitiana, disse que houve casos de pessoas que votaram até 20 vezes e reclamou, com certa razão, que, se os mesmos problemas tivessem ocorrido em outros países, as eleições teriam sido anuladas. Suas declarações, no entanto, tiveram pouco eco. Branco, ele teve meros 8% dos votos, e sua capacidade de mobilização é zero.
Como se vê desde sábado, algo totalmente distinto é a contestação vir do lado de Préval, que catalisou o apoio da imensa massa pobre de Porto Príncipe, antes partidária do ex-presidente populista Jean-Bertrand Aristide. Na segunda-feira, seus apoiadores paralisaram a capital, expondo as tropas da ONU, sobretudo as brasileiras, a várias situações de risco.
Humilhados cotidianamente pela fome e pelo desemprego, os eleitores de Préval foram novamente rebaixados a animais nos postos de votação de Cité Soleil e Bel Air. Agora, estão nas ruas gritando "magouille" (algo como maracutaia) e exigem a vitória no primeiro turno de Préval, que recebeu 48% dos votos válidos.
As eleições haitianas foram adiadas quatro vezes, em parte devido ao péssimo relacionamento entre o CEP, de um lado, e a ONU e a OEA, do outro, e era naquele momento em que a comunidade internacional deveria ter intercedido com mais vigor, assumindo tarefas que estavam sendo mal executadas pelos haitianos.
Com o impasse atual, está claro que o caos venceu o comparecimento, e salvar a eleição de 7 de fevereiro está cada vez mais difícil. É plausível que tenha havido fraudes, mas, dada a confusão nos centros de votação, é impossível dizer onde começa a falta de preparo e começa a má-fé.
A proposta de costurar a declaração da vitória de Préval no primeiro turno, se aceita, evitará que seus partidários vão às ruas e exponham os militares brasileiros a mais riscos -algo que o Planalto não quer, sobretudo em ano eleitoral. Mas, pelo lado haitiano, é uma incógnita saber se conduzirá o país à governabilidade. Ao invés de diminuir, até agora a crise política haitiana -motivo da criação da força de paz da ONU, há quase dois anos- só aumentou com as eleições. (FABIANO MAISONNAVE)


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