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São Paulo, domingo, 16 de março de 2003

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ARTIGO

Senso de supremacia de Bush está inflado

GEORGE SOROS
ESPECIAL PARA O "FINANCIAL TIMES"

As tropas americanas e britânicas estão prontas para invadir o Iraque; o resto do mundo é quase todo contra. Entretanto Saddam Hussein é amplamente visto como um tirano que precisa ser desarmado, e o Conselho de Segurança da ONU, com voz unânime, exigiu que ele revele e liquide suas armas de destruição em massa. O que foi que deu errado?
O Iraque é o primeiro caso em que está sendo aplicada a Doutrina Bush, e ela está provocando uma reação alérgica. A doutrina se ergue sobre dois pilares. O primeiro diz que os EUA farão tudo o que estiver em seu poder para conservar sua supremacia militar inconteste. O segundo é que eles se arrogam o direito de empreender ações preventivas.
Esses pilares sustentam dois tipos de soberania: a americana, que tem precedência sobre os tratados internacionais, e a dos os outros países, sujeita à Doutrina Bush. É uma situação que traz à mente o livro "A Revolução dos Bichos", de George Orwell: todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros.
A Doutrina Bush se fundamenta na crença de que as relações internacionais são relações de poder; a legalidade e a legitimidade seriam meros enfeites. Essa crença não é inteiramente falsa, mas ela exagera um aspecto da realidade -o poderio militar-, excluindo todos os outros.
Vejo um paralelo entre a busca de supremacia americana conduzida pela administração Bush e um processo de "boom e bust" (bolha no mercado acionário). As bolhas não surgem do nada. Elas têm uma base sólida na realidade, mas a realidade é distorcida por conceitos equivocados. No caso em pauta, a posição dominante dos EUA é a realidade, e a busca da supremacia é o conceito equivocado. A realidade pode reforçar o conceito equivocado, mas, com o tempo, a distância entre a realidade e sua interpretação falsa se tornará insustentável.
Durante a fase de auto-reforço, a idéia equivocada pode ser testada e reforçada. Isso aprofunda o abismo, levando, mais dia menos dia, a uma inversão da tendência. Quanto mais tempo essa inversão levar para acontecer, mais devastadoras serão suas consequências.
Essa direção tomada pelos acontecimentos parece inexorável, mas o processo de "boom e bust" pode ser interrompido em qualquer etapa, e poucos deles chegam aos extremos da recente bolha no mercado acionário. Quanto antes o processo é abortado, melhor. É assim que vejo a busca de supremacia americana na qual a gestão Bush se lançou.

Inimigo definido
O presidente George W. Bush chegou ao poder com uma estratégia coerente baseada no fundamentalismo de mercado e no poderio militar. Mas, antes de 11 de setembro de 2001, faltava-lhe um mandado claro ou um inimigo claramente definido. O ataque terrorista mudou tudo isso.
O terrorismo é o inimigo ideal. É invisível; logo, nunca desaparece. Um inimigo que representa uma ameaça real e reconhecida pode manter a coesão de um país. Isso é especialmente útil quando a ideologia dominante se baseia na defesa aberta dos interesses próprios da liderança. A administração Bush fomenta o medo de maneira proposital porque isso ajuda a manter o país unido em torno do presidente. Percorremos um longo caminho desde o ditado de Franklin D. Roosevelt segundo o qual nada temos a temer a não ser o medo propriamente dito.
Mas a guerra ao terrorismo não pode ser aceita como princípio condutor da política externa dos EUA. O que será do mundo se o país mais poderoso do planeta preocupar-se unicamente com a sua própria preservação?
A política de Bush já provocou várias e graves consequências adversas não-intencionais. A Otan está desmoronando, e a União Européia está dividida. Os EUA são um gigante temeroso que pisoteia tudo. O Afeganistão foi libertado, mas a lei e a ordem não foram restabelecidas fora dos limites de Cabul. O conflito israelo-palestino é uma chaga aberta. Além do Iraque, uma ameaça ainda maior surge, sombria, na Coréia do Norte.
A economia mundial está em recessão, os preços das ações estão em queda, e o dólar está perdendo força. Ocorreu nos EUA uma mudança dramática de superávit orçamentário para déficit. É difícil identificar qualquer outro momento em que as condições econômicas e políticas tenham se deteriorado tão rapidamente.
O jogo ainda não acabou. Uma vitória rápida no Iraque, com poucas vidas perdidas, seria capaz de gerar uma inversão dramática. O preço do petróleo poderia cair, o mercado acionário comemoraria os resultados, os consumidores poderiam superar seus receios e voltar a gastar, e as empresas poderiam reagir, aumentando seus gastos de capital.
Os EUA deixariam de depender do petróleo saudita, o conflito israelo-palestino se tornaria menos intratável, e negociações com a Coréia do Norte poderiam ser iniciadas sem perda de moral. É com isso que Bush está contando.

Equívoco reforçado
Uma vitória militar no Iraque seria a parte fácil. É o que viria a seguir que deve nos fazer parar para pensar. Num processo de "boom e bust", quando se passa num teste sem maiores dificuldades, o conceito equivocado que deu origem ao processo tende a ser reforçado. É isso o que pode acontecer no caso atual.
Ainda não é tarde para impedir que o processo de "boom e bust" fuja do controle. O Conselho de Segurança poderia dar mais tempo às inspeções de armas.
A presença militar na região poderia ser reduzida -mas incrementada se o Iraque resistisse. Uma invasão poderia ser organizada para o final do verão. A ONU teria uma vitória. É isso o que a França está propondo e que o Reino Unido ainda poderia fazer acontecer. Mas as chances são poucas; Bush praticamente já declarou guerra.
Esperemos que, se houver guerra, ela dure pouco e custe poucas vidas. Remover Saddam Hussein do poder é uma coisa boa, mas a maneira como Bush quer fazê-lo precisa ser condenada. Se quisermos que a humanidade progrida, os EUA terão de exercer um papel mais construtivo.


George Soros é presidente da Soros Fund Management.

Tradução de Clara Allain


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