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ARTIGO
A humilhação voluntária de Silda Spitzer
MICHAEL KEPP
COLUNISTA DA FOLHA
A imagem mais constrangedora da semana, para mim, foi a
do rosto estóico, mas abatido,
de Silda Spitzer, mulher do governador do Estado de Nova
York, que ficou ao lado de seu
marido na entrevista coletiva
em que ele anunciou sua renúncia ao cargo, após a divulgação da notícia de seus vínculos
com uma rede de prostituição.
E me perguntei por que razão
uma mulher tão arrasada optaria por compartilhar com seu
marido um momento de atenção pública dessa natureza. Para que fazer uma demonstração
pública de fé em seu marido no
momento em que ele está publicamente admitindo sua infidelidade a você? Ou, nas palavras da colunista do "New York Times" Gail Collins, no que
descreveu como memorando a
futuros políticos publicamente
desonrados: "Não queremos
ver mais esposas feridas afirmou ter fé completa na fidelidade de seu marido, em entrevistas coletivas.
Nem mesmo se
ela se oferecer. É o momento
dele de humilhação suprema,
não o dela."
Quando minha mulher, brasileira, expressou o mesmo
sentimento, indignada, expliquei a ela o papel da mulher do
político americano: apoiar publicamente seu marido, não
importa o que ele faça. A mulher do governador de Nova
Jersey James McGreevey ficou
ao lado dele numa entrevista
coletiva em 2004 em que ele se
declarou homossexual e renunciou a seu cargo. Em entrevista
à TV em 1992, Hillary Clinton,
ao lado de seu marido, candidato presidencial, falou do respeito que tinha por ele, enquanto
ele mentia sobre alegações feitas por Gennifer Flowers de
que os dois haviam tido um caso durante 12 anos.
Expliquei a minha mulher
que, nos Estados Unidos, os casamentos são vistos como sociedades, e que os casamentos
políticos criam equipes ainda
mais fortes, parcerias conjugais
que às vezes nascem nas faculdades de direito de elite. Bill
Clinton conheceu Hillary
quando os dois estudavam em
Yale e Eliot Spitzer conheceu
Silda na Escola de Direito de
Harvard.
A esposa/sócia faz campanha
para seu marido e, quando se
torna primeira-dama, às vezes
recebe poder político. Hillary
Clinton comandou iniciativas
políticas de peso, como o plano
de saúde do governo Clinton.
A primeira-dama brasileira
não é vista como sócia desse tipo, ocupa um cargo puramente
simbólico e não é obrigada a expor-se à atenção pública. Quando senadores brasileiros acusados de corrupção renunciam a
seus cargos, em desgraça, eles o
fazem no Senado, e suas mulheres geralmente não estão a
seu lado.
Nos EUA, quando os nomes
de políticos são maculados, as
mulheres dos políticos se posicionam a seu lado em público
porque, na condição de sócias
políticas, elas se sentem na
obrigação de compartilhar a
vergonha de seus maridos. E
essa vergonha pode ser enorme. Por quê? Nos EUA, um país
protestante, o poder de um político é decorrência de ele viver
uma vida virtuosa aos olhos de
Deus, que está sempre pronto a
castigá-lo. Assim, ele se apresenta como alguém que é um
modelo de integridade e fidelidade conjugal.
Quanto mais um político trai
essa imagem, maior é sua queda e sua vergonha. A vergonha
de Bill Clinton foi grande porque, ao longo de toda sua carreira política, ele negou terminantemente seus casos extraconjugais, até que a prova de
um deles -um vestido azul,
agora famoso, manchado de sêmen- o obrigou a admitir o caso com Monica Lewinsky. A
vergonha do governador Spitzer foi maior ainda devido à sua
hipocrisia. Na condição de promotor distrital de Manhattan,
ele denunciou pelo menos duas
redes de prostituição e criticou
esse crime publicamente.
No Brasil católico, assim como em outras culturas machistas, o poder de um político advém em parte de ele demonstrar que é homem. Por isso,
quando eles fazem campanha e
tomam posse, projetam uma
imagem de virilidade heterossexual que mostra que são suficientemente machos para governar. Foi por isso que, num
comício, o presidente Collor
afirmou que nascera com
"aquilo roxo". Essa cultura do
machismo é também o motivo
pelo qual um político brasileiro
que fosse infiel a sua mulher
provavelmente não seria obrigado a renunciar a seu cargo.
Quando Spitzer anunciou
sua renúncia, disse que "comecei a expiar minhas falhas particulares com minha mulher,
Silda, meus filhos e minha família inteira ... e a curar a mim e
a minha família". Mas, voltando a minha pergunta original,
por que não começar por poupar sua mulher de sua humilhação pública, mesmo que ela se
voluntarie? Como disse a mãe
de Silda após a renúncia: "Você
não acha que já basta [para sua
família] dizer que amamos e
apoiamos Eliot, e deixar por isso mesmo?".
MICHAEL KEPP , jornalista norte-americano radicado há 25 anos no Brasil, é autor do livro de
crônicas "Sonhando com Sotaque- confissões e
desabafos de um gringo brasileiro", (ed. Record); site: www.michaelkepp.com.br
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