São Paulo, domingo, 16 de março de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ENTREVISTA

STAFFAN DE MISTURA


O petróleo agora pode salvar Iraque

Representante especial da ONU no país árabe vê 2008 como ano crucial

O MESMO petróleo que muitos apontam como o pecado original da crise no Iraque pode ser a chave da normalização do país. Com o preço do barril batendo recordes históricos, aumentou o bolo a ser dividido entre xiitas, sunitas e curdos, facilitando a reconciliação. A opinião é do sueco Staffan de Mistura, representante especial das Nações Unidas no Iraque, mesmo cargo ocupado pelo brasileiro Sérgio Vieira de Mello até o atentado que o matou, em agosto de 2003.

MARCELO NINIO
DE GENEBRA

Diplomata com 36 anos de carreira na ONU, De Mistura considera 2008 um ano "crucial" para o futuro do Iraque. Nos próximos meses deve ser finalmente aprovada a controvertida lei do petróleo que definirá as regras de exploração e divisão da receita. E em outubro haverá eleições nas Províncias, mais uma prova de fogo para a frágil democracia.
"É o ano do vai ou racha", disse De Mistura à Folha por telefone, de dentro da chamada "zona verde", a fortaleza que abriga escritórios do governo, organizações internacionais e embaixadas em Bagdá.
Na próxima quinta-feira a invasão americana do Iraque completa cinco anos, um período marcado por poucas boas notícias. Os últimos meses, entretanto, deram a De Mistura motivos para otimismo. A violência diminui sensivelmente e a vida em partes do país chegou perto da normalidade.
Nomeado para o cargo no ano passado, na emblemática data de 11 de setembro, De Mistura considerou a missão uma homenagem ao amigo Sérgio Vieira de Mello, que teria completado 60 anos ontem. "Um dos motivos de eu ter aceitado o cargo foi o desejo de continuar o legado de Sérgio", conta. Leia trechos da entrevista.

 

FOLHA - A invasão do Iraque ficou marcada por não ter a aprovação da ONU. Logo depois um carro-bomba matou Sérgio Vieira de Mello, que era o seu representante. Cinco anos depois, qual a influência da organização?
STAFFAN DE MISTURA
- Depois que Sérgio morreu a ONU continuou mantendo um representante no Iraque, mas com um perfil discreto, porque havia muita preocupação com a segurança. As coisas mudaram em novembro do ano passado, quando o Conselho de Segurança aprovou uma resolução bem mais forte, ampliando nosso envolvimento. É o mandato que o Sérgio gostaria de ter. Eles fez milagres, mesmo tendo um mandato fraco.

FOLHA - Para onde está caminhando o país?
DE MISTURA
- 2008 é considerado um ano crucial para o Iraque. É um ano em que muitas coisas podem mudar, como resultado das eleições provinciais, do acordo que está sendo negociado entre o governo do Iraque e os Estados Unidos, e assim por diante. Assim como Sérgio era, eu sou um otimista por natureza. Portanto, estou vendo uma mudança na direção certa, para que o Iraque conquiste sua soberania e seja obrigado a prestar mais atenção às necessidades de sua população, como serviços básicos de água e eletricidade. Mas este também é um ano de "vai ou racha". O perigo é que o que melhorou até agora também pode ser destruído se não houver a vontade política de travar um diálogo nacional e aprovar leis importantes, como a da divisão da receita do petróleo.

FOLHA - Quais os sinais de que a situação melhorou?
DE MISTURA
- Vá a Irbil [na região curda] e eu lhe mostrarei o quanto já foi rapidamente reconstruído e recuperado, com hotéis, fábricas, um aeroporto internacional. Sempre que há tranqüilidade política e segurança, o Iraque se reconstrói muito rapidamente. Vá para as ruas de Bagdá. Apesar de algumas ondas de violência, a maior parte produzida pela Al Qaeda, você vai ver que as lojas estão reabrindo e as pessoas estão andando nas ruas de novo.

FOLHA - O Brasil continua sem embaixador em Bagdá. Seria a hora de normalizar as atividades?
DE MISTURA
- Não cabe a mim dizer se o Brasil deveria ou não restabelecer sua embaixada em Bagdá. Essa é uma decisão que deve ser tomada em Brasília. Como eu já disse, este é um ano crucial para o Iraque e eu sei que os iraquianos têm um enorme respeito pelo Brasil.

FOLHA - Qual a importância e os riscos do petróleo na pacificação do Iraque?
DE MISTURA
- Não diria que é tudo sobre petróleo, mas quando se sabe que 89% da receita do Iraque ainda vem do petróleo, você entende que ter uma lei justa sobre a divisão desses recursos é crucial. E não deveria ser muito difícil, porque há tanto petróleo neste país e o preço do petróleo subiu tanto que aumentou a possibilidade de uma divisão justa. Estamos tentando convencê-los de que essa é a melhor forma de estabilizar o Iraque. Quando a questão do petróleo for resolvida, acho que muitos outros problemas parecerão muito menos sérios.

FOLHA - Muitos ainda desconfiam que essa lei será fruto da pressão americana para controlar o petróleo iraquiano. Tem fundamento?
DE MISTURA
- Não. A verdadeira questão não é a interferência de empresas estrangeiras, mas a capacidade dos iraquianos de desenvolver sua própria indústria. Há muito petróleo aqui, e fácil de extrair. A questão é se os iraquianos têm capacidade de entrar num entendimento para usar o petróleo para o seu desenvolvimento. Se isso ocorrer, aí eles poderão lidar com empresas estrangeiras a partir de uma posição forte.

FOLHA - A redução da violência significa um sucesso da estratégia americana?
DE MISTURA
- Como funcionário da ONU tenho que ser imparcial. Os fatos mostram que a violência caiu de forma significativa nos últimos seis meses. Costumávamos ter mais de 300 ataques a cada três dias, agora esse número caiu para 90. Isso não significa que 90 ataques não são nada, mas há uma grande diferença. A operação americana foi um importante fator, mas não o único. Outro é a cooperação entre o iraquianos, que se envolveram mais na segurança, na redução da tensão e na luta contra a Al Qaeda. A trégua declarada pelo líder xiita Moqtada al Sadr, que foi recentemente renovada. Por último, mas não menos importante, os iraquianos estão cansados. Já tiveram violência demais. Isso também está ajudando a controlar a situação. Ela ainda é séria, mas não é comparável com a de antes.

FOLHA - Como é a vida na zona verde?
DE MISTURA
- Não é fácil. Vivemos num ambiente estranho, em que tudo é cercado de muros, para impedir foguetes e tiros disparados do outro lado. Uma fortaleza. Temos muitas barreiras militares, só me movo em carros blindados e muito rapidamente. Não caminha-se muito, porque pode haver foguetes. Num certo sentido, é como viver num barco. Mas um barco vibrante, pois há embaixadas, funcionários públicos e muitos iraquianos. Cerca de 15 mil deles entram todos os dias para trabalhar.

FOLHA - Como o atentado que matou Vieira de Mello mudou a ONU?
DE MISTURA
- Certamente mudou a forma como vemos a questão da segurança. Antes achávamos como o Sérgio, que a bandeira azul era suficiente. Hoje sabemos que não é. Ao mesmo tempo, vejo que os iraquianos querem o envolvimento da ONU na reconstrução. E isso tem a ver com o legado de Sérgio. Nesta semana estive em Najaf [cidade sagrada para os xiitas] e vi como os líderes religiosos lembraram com afeto do Sérgio. Ele acreditou nos iraquianos e que morreu por eles. Um dos motivos de eu ter aceitado o cargo foi o desejo de continuar seu legado.


Texto Anterior: Nova York: Guindaste cai sobre edifícios e mata quatro
Próximo Texto: Saiba mais: Fundação homenageia brasileiro
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.