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ENTREVISTA
STAFFAN DE MISTURA
O petróleo agora pode salvar Iraque
Representante especial da ONU no país árabe vê 2008 como ano crucial
O MESMO petróleo que muitos apontam como o pecado original da crise no Iraque
pode ser a chave da normalização do país.
Com o preço do barril batendo recordes
históricos, aumentou o bolo a ser dividido entre xiitas,
sunitas e curdos, facilitando a reconciliação. A opinião
é do sueco Staffan de Mistura, representante especial
das Nações Unidas no Iraque, mesmo cargo ocupado
pelo brasileiro Sérgio Vieira de Mello até o atentado
que o matou, em agosto de 2003.
MARCELO NINIO
DE GENEBRA
Diplomata com 36 anos de
carreira na ONU, De Mistura
considera 2008 um ano "crucial" para o futuro do Iraque.
Nos próximos meses deve ser
finalmente aprovada a controvertida lei do petróleo que definirá as regras de exploração e
divisão da receita. E em outubro haverá eleições nas Províncias, mais uma prova de fogo
para a frágil democracia.
"É o ano do vai ou racha", disse De Mistura à Folha por telefone, de dentro da chamada
"zona verde", a fortaleza que
abriga escritórios do governo,
organizações internacionais e
embaixadas em Bagdá.
Na próxima quinta-feira a invasão americana do Iraque
completa cinco anos, um período marcado por poucas boas
notícias. Os últimos meses, entretanto, deram a De Mistura
motivos para otimismo. A violência diminui sensivelmente e
a vida em partes do país chegou
perto da normalidade.
Nomeado para o cargo no
ano passado, na emblemática
data de 11 de setembro, De Mistura considerou a missão uma
homenagem ao amigo Sérgio
Vieira de Mello, que teria completado 60 anos ontem. "Um
dos motivos de eu ter aceitado
o cargo foi o desejo de continuar o legado de Sérgio", conta.
Leia trechos da entrevista.
FOLHA - A invasão do Iraque ficou
marcada por não ter a aprovação da
ONU. Logo depois um carro-bomba
matou Sérgio Vieira de Mello, que
era o seu representante. Cinco anos
depois, qual a influência da organização?
STAFFAN DE MISTURA - Depois que
Sérgio morreu a ONU continuou mantendo um representante no Iraque, mas com um
perfil discreto, porque havia
muita preocupação com a segurança. As coisas mudaram em
novembro do ano passado,
quando o Conselho de Segurança aprovou uma resolução
bem mais forte, ampliando
nosso envolvimento. É o mandato que o Sérgio gostaria de
ter. Eles fez milagres, mesmo
tendo um mandato fraco.
FOLHA - Para onde está caminhando o país?
DE MISTURA - 2008 é considerado um ano crucial para o Iraque. É um ano em que muitas
coisas podem mudar, como resultado das eleições provinciais, do acordo que está sendo
negociado entre o governo do
Iraque e os Estados Unidos, e
assim por diante.
Assim como Sérgio era, eu
sou um otimista por natureza.
Portanto, estou vendo uma
mudança na direção certa, para
que o Iraque conquiste sua soberania e seja obrigado a prestar mais atenção às necessidades de sua população, como
serviços básicos de água e eletricidade. Mas este também é
um ano de "vai ou racha". O perigo é que o que melhorou até
agora também pode ser destruído se não houver a vontade
política de travar um diálogo
nacional e aprovar leis importantes, como a da divisão da receita do petróleo.
FOLHA - Quais os sinais de que a situação melhorou?
DE MISTURA - Vá a Irbil [na região curda] e eu lhe mostrarei o
quanto já foi rapidamente reconstruído e recuperado, com
hotéis, fábricas, um aeroporto
internacional. Sempre que há
tranqüilidade política e segurança, o Iraque se reconstrói
muito rapidamente. Vá para as
ruas de Bagdá. Apesar de algumas ondas de violência, a maior
parte produzida pela Al Qaeda,
você vai ver que as lojas estão
reabrindo e as pessoas estão
andando nas ruas de novo.
FOLHA - O Brasil continua sem embaixador em Bagdá. Seria a hora de
normalizar as atividades?
DE MISTURA - Não cabe a mim
dizer se o Brasil deveria ou não
restabelecer sua embaixada em
Bagdá. Essa é uma decisão que
deve ser tomada em Brasília.
Como eu já disse, este é um ano
crucial para o Iraque e eu sei
que os iraquianos têm um
enorme respeito pelo Brasil.
FOLHA - Qual a importância e os
riscos do petróleo na pacificação do
Iraque?
DE MISTURA - Não diria que é tudo sobre petróleo, mas quando
se sabe que 89% da receita do
Iraque ainda vem do petróleo,
você entende que ter uma lei
justa sobre a divisão desses recursos é crucial. E não deveria
ser muito difícil, porque há tanto petróleo neste país e o preço
do petróleo subiu tanto que aumentou a possibilidade de uma
divisão justa. Estamos tentando convencê-los de que essa é a
melhor forma de estabilizar o
Iraque. Quando a questão do
petróleo for resolvida, acho que
muitos outros problemas parecerão muito menos sérios.
FOLHA - Muitos ainda desconfiam
que essa lei será fruto da pressão
americana para controlar o petróleo
iraquiano. Tem fundamento?
DE MISTURA - Não. A verdadeira
questão não é a interferência de
empresas estrangeiras, mas a
capacidade dos iraquianos de
desenvolver sua própria indústria. Há muito petróleo aqui, e
fácil de extrair. A questão é se
os iraquianos têm capacidade
de entrar num entendimento
para usar o petróleo para o seu
desenvolvimento. Se isso ocorrer, aí eles poderão lidar com
empresas estrangeiras a partir
de uma posição forte.
FOLHA - A redução da violência significa um sucesso da estratégia
americana?
DE MISTURA - Como funcionário
da ONU tenho que ser imparcial. Os fatos mostram que a
violência caiu de forma significativa nos últimos seis meses.
Costumávamos ter mais de 300
ataques a cada três dias, agora
esse número caiu para 90. Isso
não significa que 90 ataques
não são nada, mas há uma grande diferença. A operação americana foi um importante fator,
mas não o único.
Outro é a cooperação entre o
iraquianos, que se envolveram
mais na segurança, na redução
da tensão e na luta contra a Al
Qaeda. A trégua declarada pelo
líder xiita Moqtada al Sadr, que
foi recentemente renovada.
Por último, mas não menos importante, os iraquianos estão
cansados. Já tiveram violência
demais. Isso também está ajudando a controlar a situação.
Ela ainda é séria, mas não é
comparável com a de antes.
FOLHA - Como é a vida na zona verde?
DE MISTURA - Não é fácil. Vivemos num ambiente estranho,
em que tudo é cercado de muros, para impedir foguetes e tiros disparados do outro lado.
Uma fortaleza. Temos muitas
barreiras militares, só me movo
em carros blindados e muito
rapidamente. Não caminha-se
muito, porque pode haver foguetes. Num certo sentido, é
como viver num barco. Mas um
barco vibrante, pois há embaixadas, funcionários públicos e
muitos iraquianos. Cerca de 15
mil deles entram todos os dias
para trabalhar.
FOLHA - Como o atentado que matou Vieira de Mello mudou a ONU?
DE MISTURA - Certamente mudou a forma como vemos a
questão da segurança. Antes
achávamos como o Sérgio, que
a bandeira azul era suficiente.
Hoje sabemos que não é. Ao
mesmo tempo, vejo que os iraquianos querem o envolvimento da ONU na reconstrução. E
isso tem a ver com o legado de
Sérgio. Nesta semana estive em
Najaf [cidade sagrada para os
xiitas] e vi como os líderes religiosos lembraram com afeto do
Sérgio. Ele acreditou nos iraquianos e que morreu por eles.
Um dos motivos de eu ter aceitado o cargo foi o desejo de continuar seu legado.
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