São Paulo, domingo, 16 de abril de 2000


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Não há Internet; CD, DVD, celular, pager e computadores modernos são produtos que a maioria dos iraquianos conhece só de nome
Iraque: um país parado no tempo

PAULO DANIEL FARAH
enviado especial a Bagdá

CD, DVD, pager, celular, microondas. São produtos que os iraquianos conhecem apenas de nome, pois o país parou no tempo nos últimos dez anos.
A globalização deixou o Iraque de fora, devido ao isolamento comercial e diplomático imposto após a invasão do Kuait, em 90.
Não há Internet, os computadores estão completamente obsoletos e até videocassete é difícil encontrar. Os CDs são muito raros, e cada vez mais diminui o número de fitas originais. Para driblar a falta de recursos técnicos, as lojas permitem que o cliente monte um "coquetel" de músicas, gravadas em 24 horas numa fita virgem.
A frota de carros não se renova há dez anos. Nas ruas, o que mais se vê são Passats, chamados de "brasili" (brasileiro, em árabe; entre 83 e 88, o Brasil exportou cerca de 190 mil Passats ao Iraque).
Como é difícil obter peças de reposição, existem carros com vidros quebrados e zarcão aparente. Atualmente, há empresas da Turquia, de Taiwan e do Líbano que fazem peças para os Passats.
Os iraquianos não têm ar-condicionado, essencial para um país em que a temperatura chega a 50C no verão. Mesmo os caminhões que transportam medicamentos quase inexistem, pois o Comitê de Sanções da ONU os barrou sob temor de "uso duplo".
Normalmente, as cidades ficam sem luz seis horas por dia (três horas de dia e três à noite).
Quase não há tratamento quimioterápico, devido à falta de drogas, e o transplante de medula não está disponível, pois não existem equipamentos adequados.
No hospital Saddam Hussein, em Bagdá, o médico Abdul Latif diz à Folha que "a leucemia é 100% letal aqui". Há uma ala inteira com crianças aguardando "a morte certa", como diz Latif, sob o olhar perturbado dos pais.
O Ministério da Saúde do Iraque disse que, em fevereiro, 6.939 crianças com idade inferior a 5 anos morreram de diarréia, pneumonia, desnutrição e doenças do sistema respiratório. Em fevereiro de 1989, houve 356 mortes nas mesmas circunstâncias.
Os indicadores socioeconômicos sofreram um retrocesso significativo nos últimos dez anos.
A mortalidade infantil mais que dobrou desde o início do embargo, segundo o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância).
De 4% da população (entre 90 e 92), a desnutrição passou a atingir 15% (entre 95 e 97), o maior aumento do período.
Cerca de 500 mil crianças teriam sobrevivido sem as sanções, ainda segundo o Unicef. O bloqueio produziu entre 3 milhões e 4 milhões de emigrados e cerca de 30% de evasão escolar.

Embargo intelectual
A asfixia econômica veio acompanhada de um embargo intelectual, que proíbe a exportação de literatura médica para o Iraque e deixou o país pouco preparado para lidar com problemas de saúde, segundo estudo da revista "The Lancet" publicado em março. Os iraquianos só têm acesso à literatura científica moderna por meio de pesquisadores estrangeiros que visitam o país.
O analfabetismo, depois de considerado erradicado (com cinco prêmios concedidos pela ONU pelo incentivo iraquiano à educação), em 1980, atinge agora jovens. O Iraque publicou mil livros em 1989. Dez anos depois, esse número caiu para 160.
Uma equipe de seis especialistas analisou o estado da indústria petrolífera iraquiana entre 16 e 31 de janeiro deste ano. Seu parecer afirma que "é evidente que o declínio da condição de todos os setores da indústria prossegue e está acelerando em alguns casos". Assim, pede que "uma ação efetiva seja tomada imediatamente".
O preço médio do barril de petróleo deve ser de US$ 24,5 neste ano, cerca de 35% acima dos US$ 18,25 do ano passado, segundo análise do FMI divulgada na última quarta. No país, um litro de gasolina comum custa 20 dinares (cerca de US$ 0,01).

Reintegração
Entre os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, China, França e Rússia se opõem abertamente ao embargo, mas seu fim depende da aprovação dos EUA e do Reino Unido.
Os países árabes, à exceção de Kuait e Arábia Saudita, defendem a reintegração do país ao mercado mundial, sem vincular seu apoio ao presidente Saddam Hussein.
O Vaticano criticou as sanções econômicas, pois acredita que elas prejudicam especialmente os pobres, os idosos e as crianças.
Esse cenário claro de rejeição e as recentes renúncias de funcionários da ONU, por causa da devastação que o bloqueio provocou no país, aliados à perda de contratos milionários, levam a crer que a suspensão do cerco pode ocorrer ainda este ano.
Brasileiros, europeus, norte-americanos e chineses deixam de faturar bilhões nos setores de construção civil, de prospecção de petróleo, farmacêutico, automotivo e alimentício (avícola, em especial), entre outros.
O Brasil chegou a exportar US$ 600 milhões por ano ao Iraque. Envolveu-se em projetos de construção de ferrovias, metrô e estradas (como a que liga Bagdá à fronteira jordaniana, excelente).


O jornalista Paulo Daniel Farah viajou a convite do governo iraquiano


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