São Paulo, domingo, 16 de abril de 2006

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GUERRA À VENDA

Jornalista que cobriu conflitos e até pegou em armas mostra lado correto dos "cães de guerra" modernos

Livro reabilita imagem dos mercenários

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Eles voltaram à moda: os cães de guerra, os mercenários.
E agora com uma roupagem politicamente correta - ou quase. Parte disso é conseqüência da sua atuação em guerras recentes na África, em que muitos estiveram do lado do "bem", contra guerrilheiros em lugares como Serra Leoa e Libéria, que cortavam mãos e braços de crianças.
E hoje, no Oriente Médio, especialmente no Iraque ocupado pelos EUA, eles atuam em bem maiores números com nomes mais chiques: "PMCs", inglês para "militares privados contratados", protegendo executivos e funcionários de ONGs.
Dizem que as prostitutas são a mais velha profissão, e que os guerreiros são a segunda. O que dizer então de guerreiros que vendem seu serviço como prostitutas, a quem pagar melhor?
Essa clássica imagem negativa do mercenário está sendo combatida agora, no livro do jornalista sul-africano Al Venter, "War Dog - Fighting Other People's Wars -The Modern Mercenary in Combat" (cão de guerra - lutando a guerra dos outros - o mercenário moderno em combate). O prefácio elogioso é do escritor britânico Frederick Forsyth, autor do clássico "Os Cães de Guerra".

Combatente solitário
Um dos principais personagens do livro de Venter é o piloto de helicóptero sul-africano Neal Ellis, apelidado de "Nellis", que chegou a ser uma Força Aérea de um homem só. Ellis pilotou durante meses o solitário helicóptero de ataque das forças armadas de Serra Leoa, um veterano russo Mi-24, apelidado de "tanque voador" pela sua blindagem e poder de fogo. Era a arma soviética mais temida pelos guerrilheiros no Afeganistão nos anos 1980.
"Nellis" e seu "bando de irmãos" -os outros tripulantes do Mi-24- impediram que as forças guerrilheiras tomassem Freetown, capital de Serra Leoa. Para sorte dele, os guerrilheiros não tinham mísseis antiaéreos. O Mi-24, chamado de "Hind" pela Otan, podia matar dezenas em cada missão com sua metralhadora rotativa, calibre 12,7 mm, e casulos de foguetes calibre 576 mm.
Venter chegou a fazer missões com Ellis no Mi-24. O jornalista sul-africano é de outra tribo rara. Também portava um fuzil AK-47 em patrulhas com mercenários, algo que os jornalistas, não-combatentes pelo direito internacional, não deveriam fazer. "E se um guerrilheiro aparecer na sua frente te apontando um fuzil? Você mostra sua carteirinha de imprensa?", lhe perguntaram os "cães de guerra".

Papel histórico
Para entender essa volta dos "mercs" é preciso lembrar seu papel histórico, e entender os três tipos básicos de militares em ação no planeta. Existem as forças regulares dos países, dos "Estados-nação". Podem ser profissionais de carreira, podem incluir recrutas conscritos anualmente, mas basicamente são as forças do Estado legítimo, que teoricamente lutariam por "patriotismo".
Existem as forças irregulares de guerrilheiros ou bandos variados de sujeitos que contestam a autoridade estatal. Com sorte, tomam o poder e passam a ser forças regulares de um estado-nação. E existem mercenários que vendem seus serviços tanto para um Estado, como para forças irregulares que tentam tomar um.
Desde a antigüidade clássica existem mercenários. Um deles foi o grego Xenofonte, cujos mercenários foram para a Pérsia lutar por um potentado local. A cavalaria dos romanos era basicamente mercenária, como muitas das suas tropas auxiliares. Nas idades Média e Moderna os mercenários eram comuns, e alguns, como os suíços, criaram fama -basta ver que até hoje constituem a guarda dos papas católicos.
O primeiro almirante da Marinha do Brasil era um mercenário, o britânico Lorde Cochrane, que também comandou as Marinhas chilena e grega no começo do século 19. Os chilenos sempre o enalteceram mais que os brasileiros, dando seu nome a navios. É que daqui ele partiu indignado por questões de dinheiro. Sem contar o nacionalismo posterior do corpo de oficiais brasileiros.
Curiosamente, boa parte do preconceito contra os mercenários modernos vêm dos oficiais dos exércitos regulares, apesar de serem eles uma das maiores fontes de recrutamento dos "mercs".
Isso é explicável porque o militar moderno é um funcionário público como qualquer outro, mas especializado em uma atividade esporádica, a guerra.
O militar tem que estudar como qualquer outro profissional, seja ele um médico ou engenheiro. O militar aprende tática, comunicações, logística, e "artes" específicas, como matar o inimigo sem fazer barulho, ou criar uma barragem de fogo de morteiro, ou como melhor situar uma metralhadora no terreno.

Surto mercenário
É por isso que a ação mais intensa de mercenários tende a coincidir com momentos em que bom número de profissionais militares se torna disponível no mercado por conta do final de uma guerra ou de uma mudança de regime.
O primeiro surto de atividade mercenária na África correspondeu às independências de vários países do colonialismo europeu nos anos 60 do século passado.
O exemplo clássico foi a luta de 1960 a 1965 no ex-Congo belga. Houve intervenção de tropas da ONU e de mercenários de vários países. O grande interesse internacional não era gratuito, pois o Congo tinha (e ainda tem) reservas minerais importantes - o que explica porque a guerra surgiu ali de novo depois, e continua em parte até hoje.
Mercenários europeus como Bob Denard, Mike "Mad" Hoare, "Black Jack" Schramme fizeram fama então. Alguns a perderam depois, em ações mal-planejadas, e portanto malsucedidas. Mesmo assim, um pequeno grupo de europeus bem treinados tinha e ainda tem grande impacto militar em um continente onde o treinamento militar era e continua péssimo.
A mística só não fazia sentido quando o inimigo era mais motivado. Uma intervenção amadora de mercenários na guerra civil em Angola fez com que um grupo de 13 mercenários britânicos e americanos fosse capturado em 1976.
Mas foi essa mesma guerra que esteve na raiz de quase todo o movimento mercenário posterior. Em 1976 os sul-africanos fizeram uma intervenção em Angola para tentar pôr no poder os movimentos guerrilheiros pró-ocidentais. Mas uma rápida reação cubana sustentou no poder o grupo guerrilheiro pró-soviético, o MPLA.

Elite de guerreiros
Os sul-africanos se retiraram em vez de iniciar combates mais intensos. E passaram a combater uma "guerra de fronteira" contra os angolanos e seus aliados, além dos guerrilheiros da Swapo -que buscavam a independência do território administrado pela África do Sul, então África do Sudoeste, hoje Namíbia.
A longa luta nos anos 70 e 80 dos sul-africanos criou uma elite de guerreiros, tanto soldados como aviadores, com rara capacidade de combate, como Neal Ellis e outros. A indústria bélica sul-africana também produziu veículos adaptados ao tipo de luta africana.
Depois de acordo de paz com Angola; independência da Namíbia; e chegada ao poder de Nelson Mandela e o fim do regime de segregação, Apartheid, bom número desses guerreiros ficou sem ter o que fazer. E praticamente só sabiam guerrear.
Mas, ao contrário da primeira leva de mercenários brancos no continente negro, eles eram nativos e enraizados. E mais espertos. Deixaram de lado o amadorismo que caracterizava boa parte dos mercenários no Congo e se tornaram executivos da guerra.

"Resultados Executivos"
Em 1989 foi criada na África do Sul a empresa mercenária Executive Outcomes -um nome irônico, "Resultados Executivos". E, ironicamente, o primeiro grande contrato da empresa foi para lutar contra antigos aliados da África do Sul. Com o fim da Guerra Fria, tanto os americanos como os sul-africanos deixaram de apoiar a guerrilha angola Unita, que tentava derrubar o governo de Angola.
Tirados os antolhos ideológicos, a guerra em Angola caiu na real: dois grupos em luta para controlar as riquezas do país, sobretudo as minerais. A Unita controlava campos de produção de petróleo e minas de diamante, com os quais financiava sua guerra.
A Executive Outcomes foi contratada e liberou campos de petróleo em Soyo e minas de diamante em Cafunfo contra os antigos aliados dos sul-africanos.
O sucesso da empresa trouxe novo contrato, em 1995, com o governo de Serra Leoa, também para derrotar uma guerrilha e recapturar minas de diamantes. A Executive Outcomes era bem mais profissional que os bandos de mercenários anteriores.
Mas isso não a impediu de ser dissolvida em 1999. Não pegava bem para o governo da África do Sul pós-apartheid ter uma empresa local envolvida nesse tipo de atividade.
Os ex-militares sul-africanos continuaram no mercado. Alguns tentaram a sorte nos Bálcãs ou em ações freelance na África. Outros estiveram envolvidos em um retumbante fracasso em derrubar o governo de Guiné Equatorial em 2004, uma versão malfeita da receita do livro de Forsyth.
Outros continuam em atividade no Iraque, junto de milhares de outros integrantes de "PMCs". Os Estados os treinaram durante anos para matar. Como essa é sua principal qualificação, na vida civil tiveram que achar um emprego equivalente. E estão achando.


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