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GUERRA À VENDA
Jornalista que cobriu conflitos e até pegou em armas mostra lado correto dos "cães de guerra" modernos
Livro reabilita imagem dos mercenários
RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL
Eles voltaram à moda: os cães de
guerra, os mercenários.
E agora com uma roupagem
politicamente correta - ou quase. Parte disso é conseqüência da
sua atuação em guerras recentes
na África, em que muitos estiveram do lado do "bem", contra
guerrilheiros em lugares como
Serra Leoa e Libéria, que cortavam mãos e braços de crianças.
E hoje, no Oriente Médio, especialmente no Iraque ocupado pelos EUA, eles atuam em bem
maiores números com nomes
mais chiques: "PMCs", inglês para
"militares privados contratados",
protegendo executivos e funcionários de ONGs.
Dizem que as prostitutas são a
mais velha profissão, e que os
guerreiros são a segunda. O que
dizer então de guerreiros que vendem seu serviço como prostitutas,
a quem pagar melhor?
Essa clássica imagem negativa
do mercenário está sendo combatida agora, no livro do jornalista
sul-africano Al Venter, "War Dog
- Fighting Other People's Wars
-The Modern Mercenary in Combat" (cão de guerra - lutando a
guerra dos outros - o mercenário
moderno em combate). O prefácio elogioso é do escritor britânico
Frederick Forsyth, autor do clássico "Os Cães de Guerra".
Combatente solitário
Um dos principais personagens
do livro de Venter é o piloto de helicóptero sul-africano Neal Ellis,
apelidado de "Nellis", que chegou
a ser uma Força Aérea de um homem só. Ellis pilotou durante meses o solitário helicóptero de ataque das forças armadas de Serra
Leoa, um veterano russo Mi-24,
apelidado de "tanque voador" pela sua blindagem e poder de fogo.
Era a arma soviética mais temida
pelos guerrilheiros no Afeganistão nos anos 1980.
"Nellis" e seu "bando de irmãos" -os outros tripulantes do
Mi-24- impediram que as forças
guerrilheiras tomassem Freetown, capital de Serra Leoa. Para
sorte dele, os guerrilheiros não tinham mísseis antiaéreos. O Mi-24, chamado de "Hind" pela
Otan, podia matar dezenas em cada missão com sua metralhadora
rotativa, calibre 12,7 mm, e casulos de foguetes calibre 576 mm.
Venter chegou a fazer missões
com Ellis no Mi-24. O jornalista
sul-africano é de outra tribo rara.
Também portava um fuzil AK-47
em patrulhas com mercenários,
algo que os jornalistas, não-combatentes pelo direito internacional, não deveriam fazer. "E se um
guerrilheiro aparecer na sua frente te apontando um fuzil? Você
mostra sua carteirinha de imprensa?", lhe perguntaram os
"cães de guerra".
Papel histórico
Para entender essa volta dos
"mercs" é preciso lembrar seu papel histórico, e entender os três tipos básicos de militares em ação
no planeta. Existem as forças regulares dos países, dos "Estados-nação". Podem ser profissionais
de carreira, podem incluir recrutas conscritos anualmente, mas
basicamente são as forças do Estado legítimo, que teoricamente
lutariam por "patriotismo".
Existem as forças irregulares de
guerrilheiros ou bandos variados
de sujeitos que contestam a autoridade estatal. Com sorte, tomam
o poder e passam a ser forças regulares de um estado-nação. E
existem mercenários que vendem
seus serviços tanto para um Estado, como para forças irregulares
que tentam tomar um.
Desde a antigüidade clássica
existem mercenários. Um deles
foi o grego Xenofonte, cujos mercenários foram para a Pérsia lutar
por um potentado local. A cavalaria dos romanos era basicamente
mercenária, como muitas das
suas tropas auxiliares. Nas idades
Média e Moderna os mercenários
eram comuns, e alguns, como os
suíços, criaram fama -basta ver
que até hoje constituem a guarda
dos papas católicos.
O primeiro almirante da Marinha do Brasil era um mercenário,
o britânico Lorde Cochrane, que
também comandou as Marinhas
chilena e grega no começo do século 19. Os chilenos sempre o
enalteceram mais que os brasileiros, dando seu nome a navios. É
que daqui ele partiu indignado
por questões de dinheiro. Sem
contar o nacionalismo posterior
do corpo de oficiais brasileiros.
Curiosamente, boa parte do
preconceito contra os mercenários modernos vêm dos oficiais
dos exércitos regulares, apesar de
serem eles uma das maiores fontes de recrutamento dos "mercs".
Isso é explicável porque o militar moderno é um funcionário
público como qualquer outro,
mas especializado em uma atividade esporádica, a guerra.
O militar tem que estudar como
qualquer outro profissional, seja
ele um médico ou engenheiro. O
militar aprende tática, comunicações, logística, e "artes" específicas, como matar o inimigo sem
fazer barulho, ou criar uma barragem de fogo de morteiro, ou como melhor situar uma metralhadora no terreno.
Surto mercenário
É por isso que a ação mais intensa de mercenários tende a coincidir com momentos em que bom
número de profissionais militares
se torna disponível no mercado
por conta do final de uma guerra
ou de uma mudança de regime.
O primeiro surto de atividade
mercenária na África correspondeu às independências de vários
países do colonialismo europeu
nos anos 60 do século passado.
O exemplo clássico foi a luta de
1960 a 1965 no ex-Congo belga.
Houve intervenção de tropas da
ONU e de mercenários de vários
países. O grande interesse internacional não era gratuito, pois o
Congo tinha (e ainda tem) reservas minerais importantes - o
que explica porque a guerra surgiu ali de novo depois, e continua
em parte até hoje.
Mercenários europeus como
Bob Denard, Mike "Mad" Hoare,
"Black Jack" Schramme fizeram
fama então. Alguns a perderam
depois, em ações mal-planejadas,
e portanto malsucedidas. Mesmo
assim, um pequeno grupo de europeus bem treinados tinha e ainda tem grande impacto militar em
um continente onde o treinamento militar era e continua péssimo.
A mística só não fazia sentido
quando o inimigo era mais motivado. Uma intervenção amadora
de mercenários na guerra civil em
Angola fez com que um grupo de
13 mercenários britânicos e americanos fosse capturado em 1976.
Mas foi essa mesma guerra que
esteve na raiz de quase todo o movimento mercenário posterior.
Em 1976 os sul-africanos fizeram
uma intervenção em Angola para
tentar pôr no poder os movimentos guerrilheiros pró-ocidentais.
Mas uma rápida reação cubana
sustentou no poder o grupo guerrilheiro pró-soviético, o MPLA.
Elite de guerreiros
Os sul-africanos se retiraram
em vez de iniciar combates mais
intensos. E passaram a combater
uma "guerra de fronteira" contra
os angolanos e seus aliados, além
dos guerrilheiros da Swapo -que
buscavam a independência do
território administrado pela África do Sul, então África do Sudoeste, hoje Namíbia.
A longa luta nos anos 70 e 80 dos
sul-africanos criou uma elite de
guerreiros, tanto soldados como
aviadores, com rara capacidade
de combate, como Neal Ellis e outros. A indústria bélica sul-africana também produziu veículos
adaptados ao tipo de luta africana.
Depois de acordo de paz com
Angola; independência da Namíbia; e chegada ao poder de Nelson
Mandela e o fim do regime de segregação, Apartheid, bom número desses guerreiros ficou sem ter
o que fazer. E praticamente só sabiam guerrear.
Mas, ao contrário da primeira
leva de mercenários brancos no
continente negro, eles eram nativos e enraizados. E mais espertos.
Deixaram de lado o amadorismo
que caracterizava boa parte dos
mercenários no Congo e se tornaram executivos da guerra.
"Resultados Executivos"
Em 1989 foi criada na África do
Sul a empresa mercenária Executive Outcomes -um nome irônico, "Resultados Executivos". E,
ironicamente, o primeiro grande
contrato da empresa foi para lutar
contra antigos aliados da África
do Sul. Com o fim da Guerra Fria,
tanto os americanos como os sul-africanos deixaram de apoiar a
guerrilha angola Unita, que tentava derrubar o governo de Angola.
Tirados os antolhos ideológicos,
a guerra em Angola caiu na real:
dois grupos em luta para controlar as riquezas do país, sobretudo
as minerais. A Unita controlava
campos de produção de petróleo
e minas de diamante, com os
quais financiava sua guerra.
A Executive Outcomes foi contratada e liberou campos de petróleo em Soyo e minas de diamante em Cafunfo contra os antigos aliados dos sul-africanos.
O sucesso da empresa trouxe
novo contrato, em 1995, com o
governo de Serra Leoa, também
para derrotar uma guerrilha e recapturar minas de diamantes. A
Executive Outcomes era bem
mais profissional que os bandos
de mercenários anteriores.
Mas isso não a impediu de ser
dissolvida em 1999. Não pegava
bem para o governo da África do
Sul pós-apartheid ter uma empresa local envolvida nesse tipo de
atividade.
Os ex-militares sul-africanos
continuaram no mercado. Alguns
tentaram a sorte nos Bálcãs ou em
ações freelance na África. Outros
estiveram envolvidos em um retumbante fracasso em derrubar o
governo de Guiné Equatorial em
2004, uma versão malfeita da receita do livro de Forsyth.
Outros continuam em atividade
no Iraque, junto de milhares de
outros integrantes de "PMCs". Os
Estados os treinaram durante
anos para matar. Como essa é sua
principal qualificação, na vida civil tiveram que achar um emprego equivalente. E estão achando.
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