São Paulo, quarta-feira, 16 de junho de 2004

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RELIGIÃO

Estudo apresentado pela igreja e elogiado pelo papa afirma que tribunais católicos fizeram menos vítimas do que se imagina

Inquisição não foi tão mortal, diz Vaticano

Reprodução
Ilustração mostra a ação de um tribunal eclesiástico inquisitorial na Espanha contra uma mulher


FRANCES D'EMILIO
DA ASSOCIATED PRESS

Uma pesquisa apresentada ontem pelo Vaticano concluiu que a Inquisição matou e torturou muito menos gente do que se imagina. O papa João Paulo 2º elogiou o trabalho, lembrando que, em 2000, a Igreja Católica pediu perdão pelos "erros cometidos a serviço da verdade por meios não-evangélicos".
"Na opinião do público, a imagem da Inquisição representa praticamente o símbolo do escândalo", escreveu o papa em carta sobre a pesquisa. "Até que ponto essa imagem é fiel à realidade?"
Nas comemorações da igreja na passagem do milênio, João Paulo 2º pediu perdão pelos pecados dos católicos cometidos em nome de sua fé ao longo dos séculos, incluindo os abusos da Inquisição, uma repressão sistemática em defesa da ortodoxia doutrinária. Entre os alvos da Inquisição estavam católicos suspeitos de heresia, bruxas ou pessoas de "fé dúbia", como muçulmanos e judeus convertidos ao catolicismo.
Na apresentação do estudo, de 783 páginas, autoridades da igreja e outros envolvidos no projeto disseram que os dados obtidos demoliram algumas "idéias falsas" sobre a Inquisição. "O recurso à tortura e às sentenças de morte não era tão freqüente quanto se acredita há muito tempo", disse Agostino Borromeo, professor de história do catolicismo e outras confissões cristãs na Universidade Sapienza, em Roma.
Para alguns, as conclusões têm valor restrito. "São interessantes, mas não podem desculpar o trabalho da Inquisição, que aterrorizou e expulsou de suas casas a milhares de pessoas", disse David Rosen, diretor internacional de assuntos inter-religiosos no Comitê Judaico Americano.
Borromeo, que supervisionou o livro, disse que, embora tenham ocorrido cerca de 125 mil julgamentos de suspeitos de heresia na Espanha, apenas cerca de 1% dos réus foram executados.
Em Portugal, 5,7% dos mais de 13 mil julgados por tribunais da igreja no século 16 e início do século 17 foram condenados à morte, disse Borromeo. Segundo ele, em muitos casos, quando os condenados escapavam da captura, os tribunais ordenavam a queima de bonecos em seus lugares. Muitas das execuções foram conduzidas por tribunais não-eclesiásticos, inclusive em países protestantes que promoviam caças às bruxas, disse Borromeo.
O estudo surgiu de uma conferência no Vaticano, em 1998, com cerca de 50 historiadores e especialistas em Inquisição, incluindo não-católicos, da Europa e da América do Norte.
"Antes de pedir perdão, é necessário ter conhecimento preciso dos fatos", escreveu João Paulo 2º em sua carta, expressando sua "apreciação inequívoca" pela pesquisa. Ele disse que o pedido de perdão que fez em 2000 "foi válido tanto para os dramas ligados à Inquisição quanto pelos ferimentos da memória que são conseqüências dela".
O pontífice dedicou boa parte de seu papado à questão teológica da busca pelo perdão. Ele já orou pedindo perdão pelos males cometidos pelos fiéis na escravidão e no Holocausto, entre outros fatos.
O historiador do Holocausto Michael Marrus, da Universidade de Toronto, aventou a hipótese de que os resultados da pesquisa pelo Vaticano podem refletir as opiniões de membros da hierarquia da igreja que não compartilham o pendor do papa por pedir perdão.
Entre os perseguidos pela Inquisição estavam o cientista Galileu Galilei, que foi "reabilitado" pelo Vaticano durante o atual papado. Teresa de Ávila e Inácio de Loyola, que mais tarde seriam reconhecidos como santos, foram investigados por heresia. Entre os alvos da Inquisição também estavam os waldensianos, membros de uma seita religiosa protestante declarada herética no século 12.
"Se houve muitos ou poucos casos de pessoas queimadas vivas, não importa. O que importa é que não se pode dizer "estou certo, você está errado, e portanto eu vou queimar você vivo", disse o pastor waldensiano americano Thomas Nofke, em Roma, onde, em 1560, à sombra do Vaticano, um pregador waldensiano foi enforcado e então queimado.
João Paulo 2º disse que os teólogos não devem esquecer "a mentalidade dominante em uma era determinada".
Borromeo negou que o Vaticano esteja diminuindo o peso dos erros da Inquisição. "Não quero dizer que a Inquisição tenha sido uma instituição ética", disse. "Isso não muda a natureza do problema: a de que pessoas foram julgadas por suas crenças religiosas. Para os historiadores, porém, os números têm significado."
O cardeal Georges Cottier, teólogo do Vaticano que tem vínculos estreitos com o papa, destacou a necessidade de ter acesso aos fatos antes de avaliar um período da história. "Não se pode pedir perdão por atos que não foram cometidos", disse ele.
Mas um dos presentes à conferência de 1998, o professor de história renascentista italiana e especialista na Inquisição Cargo Ginzburg, disse ter suas dúvidas quanto ao uso de estatísticas para fazer uma avaliação do período. "Em muitos casos não dispomos de provas. As provas se perderam", disse Ginzburg.

Tradução de Clara Allain


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