São Paulo, domingo, 16 de outubro de 2005

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IRAQUE SOB TUTELA

Julgamento de ex-ditador começa na quarta, em meio a polêmica e bancado por US$ 75 mi dos EUA

Saddam volta a Bagdá, agora como réu

SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

Saddam em Bagdá. A banalidade do mal que o ditador iraquiano Saddam Hussein, 68, cometeu ou não durante as décadas em que comandou o Iraque como quis começa a ser julgada em três dias, na mesma capital pela qual espalhou metade dos 70 palácios suntuosos que construiu ao longo de um governo que disseminou terror entre a população e provocou guerras nos países vizinhos.
Chega a uma corte comandada por um juiz iraquiano como ele e em meio a polêmicas envolvendo o processo todo, que pode levar meses e tem um orçamento bancado pela administração de George W. Bush. O presidente norte-americano cuidou pessoalmente para que US$ 75 milhões fossem direcionados especificamente para o espetáculo de quarta-feira.
"É impossível que ele tenha um julgamento justo aqui, em solo iraquiano, com juizes iraquianos", disse à Folha por e-mail, de Bagdá, o criminalista Zaid al Ali, um dos voluntários do time de defesa do ex-ditador. "É o mais perto que conseguiremos chegar de um julgamento justo", retorque Larry Diamond, professor de ciência política do conservador Instituto Hoover, também por e-mail, da Califórnia (leia trechos das entrevistas nesta página).
Na quarta-feira, Saddam será conduzido de um local ignorado, mas que se especula ser o chamado campo Crooper, uma prisão subterrânea localizada sob o Aeroporto Internacional de Bagdá, a seis quilômetros da capital e considerado hoje um dos lugares mais seguros do Iraque.
Lá, ele vive isolado numa cela de 40 m por 15 m, onde lava suas próprias roupas, lê e escreve poemas e não pode encontrar outros presos de seu regime. Não tem TV nem pode ser visitado pelo que resta da família, exilada na Jordânia, mas recebe as cartas deles via Cruz Vermelha, censuradas por canetas ou golpes de tesouras, assim como o jornal árabe pró-EUA "Al-Sabah". Sua comida preferida é o salgadinho de milho frito Doritos.
Na quarta-feira, sentará com sete membros de seu regime no lugar reservado aos réus, muito possivelmente atrás de um vidro à prova de bala, na Primeira Vara do Tribunal Especial do Iraque, ironicamente localizada na região chamada hoje de "Zona Verde", que concentra o comando militar norte-americano, mas que até abril de 2003 era o principal complexo de residências banhadas a ouro do próprio Saddam.
Todos ouvirão os crimes de que estão sendo acusados, a matança premeditada de 140 camponeses xiitas, alguns com 13 anos de idade, em Dujail, vilarejo ao norte de Bagdá, desencadeada após uma tentativa frustrada de matar o ditador em 1982. Mais de 1.500 foram presos e torturados na ocasião, dizem testemunhas da acusação, alguns deles crianças de colo, em frente aos próprios pais.

A legitimidade
Os advogados de Saddam, liderados por Khalil al Dulaimi, 41, pedirão adiamento, alegando pouco tempo para se familiarizar com o caso e falta de recursos, além de questionarem a legitimidade do tribunal, pois foi criado em 2003, ainda sob a autoridade da coalizão anglo-americana.


Será transmitido pela TV, mas com um atraso de 20 minutos, para censurar incitamento à violência

Ao longo das sessões, a defesa dirá que, como presidente do Iraque à época, Saddam tinha imunidade segundo a Constituição de então, e não se pode retroagir uma legislação para remover tal imunidade. Dirá também que os mortos eram considerados culpados pela lei iraquiana, e que o ex-ditador só assinou as sentenças.
Do outro lado, comandando a sessão, o juiz Raad Jouhi, que contará com a ajuda de quatro colegas na tarefa. Ele e todos os que servirão na corte foram treinados e instruídos por membros do Ministério da Justiça norte-americano, lotados num departamento da embaixada norte-americana, e por luminares de escolas de direito dos EUA e do Reino Unido.
Estes ofereceram diversas opções de estratégia e chegaram ao ponto de fazer vários julgamentos-teste. Um time de centenas de pessoas conseguiu escanear e estudar quilômetros de potenciais provas. Além disso, membros da administração Bush fizeram lobby pela aprovação na Constituição provisória em vigor de leis que não permitem que o ex-ditador represente a si mesmo.
Haverá transmissão por TV, mas com um atraso provável de 20 minutos, para censurar qualquer incitamento à violência por parte dos acusados, como um chamado aos insurgentes ou um apelo nacionalista. A idéia é evitar que o ex-ditador aproveite o palco para se tornar um mártir. De qualquer maneira, no primeiro dia ele não terá a palavra.

Os problemas
Além do treinamento e do fato de Saddam ter passado 22 meses preso, sem ouvir uma acusação formal, há alguns problemas no processo. O primeiro foi levantado por entidades como o Human Rights Watch: por que o julgamento não acontece fora do país ou pelo menos por um tribunal misto, com ocorreu em Nuremberg após a Segunda Guerra?
Porque os iraquianos estão preparados para lidar com o caso, diz o presidente iraquiano, Jalal Talabani, e porque o presidente norte-americano, George W. Bush, havia prometido ao povo daquele país que o ex-ditador seria julgado em solo iraquiano, por iraquianos -é a resposta oficial.
Outro senão é o caso escolhido para iniciar os trabalhos. Saddam é o principal acusado em mais de 20 casos tenebrosos, o mais significativo deles a chamada Campanha de Anfal, um genocídio em que mais de 100 mil curdos foram mortos a mando do governo, muitos com gás venenoso.
Este deveria ser o primeiro, dizem especialistas críticos ao processo. Comecem com um caso pequeno, disse Richard Dicker, do International Justice Program de Nova York, e a população mundial e a mídia estarão saturadas e desinteressadas quando os piores horrores vierem à tona, daqui a alguns meses ou mesmo anos.
O juiz Jouhi se defende dizendo que este é o caso "mais fácil", no sentido de que as provas e testemunhas possíveis já foram encontradas. Se todas as acusações fossem unificadas, afirma, o julgamento poderia se arrastar por anos, como acontece com o do ex-presidente iugoslavo Slobodan Misolevic, na Corte desde 2002.
A oposição sunita retruca dizendo que o plano é condenar Saddam (sunita) antes das eleições de 15 de dezembro, o que beneficiaria xiitas e curdos. Eis outro caso delicado: a condenação. Se pegar a pena máxima, segundo prevê a Constituição em vigor, Saddam pode ser condenado à prisão perpétua ou à forca.
Caso isso aconteça -e há 99% de chance-, seu time pode recorrer em várias instâncias. Terminada a última, porém, a sentença tem de ser cumprida em 30 dias, mesmo se o condenado estiver na época respondendo por outros processos. Ou seja, Saddam pode se livrar, morrendo, de assumir culpas maiores. Mais: se completar 70 anos antes da condenação, a lei proíbe que a pena de morte seja aplicada. Ele tem 68.
Seja em dias, semanas ou meses, o fato é que saberemos se, a exemplo da sentença que a escritora Hannah Arendt gostaria que os juízes tivessem dado ao criminoso nazista Adolf Eichmann, em 1961, conforme relata em "Eichmann em Jerusalém - Um Relato sobre a Banalidade do Mal", os iraquianos concluirão que "nenhum membro da raça humana haverá de querer partilhar a Terra" com Saddam Hussein, e por isso ele merecerá a forca.
Em sua defesa, diferentemente de Eichmann em Jerusalém, o ex-ditador não poderá responder que apenas "seguia ordens".


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