São Paulo, domingo, 17 de fevereiro de 2008

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ARTIGO

O começo do fim dos Bálcãs

Caso de Kosovo ameaça desencadear novos conflitos na região, onde fronteiras sempre foram solução ruim e precária para desafios da convivência multiétnica

JEAN-ARNAULT DÉRENS
DO "MONDE DIPLOMATIQUE"

A declaração de independência de Kosovo [prevista para hoje ou amanhã] terá conseqüências sérias para toda a região. Os sérvios da Bósnia-Herzegóvina enxergarão o acontecimento como precedente que confirma seu próprio direito de separar-se. A independência também vai provocar inquietude em Estados vizinhos, especialmente Macedônia e Montenegro, e terá efeito caótico sobre o mapa dos Bálcãs.
Apesar dessa perspectiva, diplomatas e especialistas sugerem que já chegou a hora de derrubar o tabu das fronteiras intocáveis. Será que chegou a hora de definir fronteiras mais representativas da geografia étnica? A idéia não é nova, mas se nega a ser descartada.
A impossibilidade de uma solução conciliatória entre albaneses e sérvios sobre Kosovo fez ressuscitar idéias antigas sobre uma divisão da região. A idéia parece lógica: se as populações não querem viver juntas, por que não deixá-las viver separadamente, mesmo que implique deslocamentos de pessoas de modo a ajustar as fronteiras à distribuição étnica?

A grande confusão
Imagine-se que uma conferência internacional chegasse a um acordo sobre novas fronteiras nos Bálcãs ocidentais, definidas segundo critérios étnicos. Seriam necessários planos para unir as áreas com maioria albanesa: Albânia, Kosovo e a parte noroeste da Macedônia, além do vale do Presevo, no sul da Sérvia, e as margens orientais de Montenegro.
Isso deixaria a Macedônia truncada e quase irreconhecível como Estado. Restaria, então, a questão das minorias na Albânia: os gregos, no sul, poderiam reivindicar sua inclusão na Grécia, enquanto os albaneses expulsos de Épiro, no norte da Grécia, após 1945, se levantariam para defender seus direitos esquecidos. Os sérvios da Bósnia-Herzegóvina retornariam a seu país natal. Isso destruiria a Bósnia, especialmente se os croatas do oeste de Herzegóvina e da Bósnia central retornassem à Croácia. Restaria um micro-Estado bósnio-muçulmano.
A Sérvia teria conquistado a Republika Srpska, da Bósnia-Herzegóvina, além das áreas sérvias no norte de Montenegro. Além disso, teria um acordo com Vojvodina. Essa região autônoma no norte da Sérvia abriga cerca de 20 minorias, quase 50% da população total.
Sua maior comunidade é húngara, e voltaria para a Hungria, a não ser que Vojvodina decidisse declarar sua independência e se tornasse a única ilha multiétnica nos Bálcãs. É pouco provável que tais transformações se dessem de modo pacífico. Seriam necessárias tropas da UE encarregadas de manter a paz. Mas o deslocamento de populações não poderia ser visto como efeito indesejável, pois seria o objetivo de toda a movimentação.

A grande ilusão
Esse cenário pode parecer altamente improvável, mas partes do roteiro já foram escritas, no que diz respeito às questões ligadas à Bósnia-Herzegóvina e à nacionalidade albanesa. A idéia de que problemas de nacionalidade possam ser resolvidos com a reorganização de fronteiras é baseada na ilusão de que as fronteiras podem ser redefinidas com precisão segundo linhas étnicas. Todas as fronteiras nacionais são criações históricas, legado de manobras políticas e militares.
O uso do termo "Bálcãs" se difundiu no século 19. Quando o Império Otomano começou a se fragmentar, as reivindicações inconciliáveis de suas populações antes súditas abalaram essa região da Europa. Os Bálcãs passaram a ser vistos como sinônimo de sentimento nacionalista, transtornos e fragmentação -em outras palavras, a "balcanização".
A emergência de Estados e a definição de suas fronteiras marcaram a entrada dos Bálcãs na política moderna. Os novos Estados eram, de modo geral, nacionalistas, baseados nos modelos fornecidos pela história da Europa Ocidental. A diversidade que caracterizara a era otomana, as identidades múltiplas de língua, "nacionalidade" e religião, começou a perder força.
As fronteiras internas traçadas em 1945 para a República Federal Socialista da Iugoslávia foram a menos negativa de todas as soluções conciliatórias, segundo o político que foi o responsável principal por elas, o dissidente Milovan Djilas, nascido em Montenegro. O sistema dependia da manutenção de uma distinção clara entre cidadania e nacionalidade e tinha suas origens no pensamento marxista austríaco. Os iugoslavos eram cidadãos da república federal em que viviam (e também da Federação Socialista), mas permaneciam livres para escolher sua comunidade nacional: não havia obrigação no recenseamento iugoslavo.
A experiência dos Bálcãs mostra que as reivindicações de populações diferentes não podem ser apresentadas em termos de Estados sem causar confrontos. Em Kosovo só existem duas soluções possíveis: ou a vitória de uma população sobre a outra, suscitando frustrações e buscas de vingança, ou a invenção de novas formas de coexistência e co-soberania política. O contexto europeu poderia gerar novas oportunidades políticas capazes de superar esses conflitos territoriais.
As grandes potências sempre exerceram papel essencial na determinação das fronteiras nos Bálcãs. Hoje Kosovo é um peão na batalha planetária entre Rússia e Estados Unidos, de modo que pouca atenção será dada aos interesses reais dos albaneses, sérvios e outros que vivem em Kosovo. Qualquer tentativa de solucionar os problemas através de novos planos de partilha afetaria a Europa inteira. É tempo de encontrar uma resposta melhor do que traçar novas linhas no mapa.

JEAN-ARNAULT DÉRENS é editor do "Courrier des Balkans"

Tradução de CLARA ALLAIN


NA INTERNET: Leia a íntegra do artigo em www.folha.com.br/080465


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