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ARTIGO
O começo do fim dos Bálcãs
Caso de Kosovo ameaça desencadear novos conflitos na região, onde fronteiras sempre foram solução ruim e precária para desafios da convivência multiétnica
JEAN-ARNAULT DÉRENS
DO "MONDE DIPLOMATIQUE"
A declaração de independência de Kosovo [prevista para
hoje ou amanhã] terá conseqüências sérias para toda a região. Os sérvios da Bósnia-Herzegóvina enxergarão o acontecimento como precedente que
confirma seu próprio direito de
separar-se. A independência
também vai provocar inquietude em Estados vizinhos, especialmente Macedônia e Montenegro, e terá efeito caótico sobre o mapa dos Bálcãs.
Apesar dessa perspectiva, diplomatas e especialistas sugerem que já chegou a hora de
derrubar o tabu das fronteiras
intocáveis. Será que chegou a
hora de definir fronteiras mais
representativas da geografia étnica? A idéia não é nova, mas se
nega a ser descartada.
A impossibilidade de uma solução conciliatória entre albaneses e sérvios sobre Kosovo
fez ressuscitar idéias antigas
sobre uma divisão da região. A
idéia parece lógica: se as populações não querem viver juntas,
por que não deixá-las viver separadamente, mesmo que implique deslocamentos de pessoas de modo a ajustar as fronteiras à distribuição étnica?
A grande confusão
Imagine-se que uma conferência internacional chegasse a
um acordo sobre novas fronteiras nos Bálcãs ocidentais, definidas segundo critérios étnicos. Seriam necessários planos
para unir as áreas com maioria
albanesa: Albânia, Kosovo e a
parte noroeste da Macedônia,
além do vale do Presevo, no sul
da Sérvia, e as margens orientais de Montenegro.
Isso deixaria a Macedônia
truncada e quase irreconhecível como Estado. Restaria, então, a questão das minorias na
Albânia: os gregos, no sul, poderiam reivindicar sua inclusão
na Grécia, enquanto os albaneses expulsos de Épiro, no norte
da Grécia, após 1945, se levantariam para defender seus direitos esquecidos.
Os sérvios da Bósnia-Herzegóvina retornariam a seu país
natal. Isso destruiria a Bósnia,
especialmente se os croatas do
oeste de Herzegóvina e da Bósnia central retornassem à
Croácia. Restaria um micro-Estado bósnio-muçulmano.
A Sérvia teria conquistado a
Republika Srpska, da Bósnia-Herzegóvina, além das áreas
sérvias no norte de Montenegro. Além disso, teria um acordo com Vojvodina. Essa região
autônoma no norte da Sérvia
abriga cerca de 20 minorias,
quase 50% da população total.
Sua maior comunidade é húngara, e voltaria para a Hungria,
a não ser que Vojvodina decidisse declarar sua independência e se tornasse a única ilha
multiétnica nos Bálcãs.
É pouco provável que tais
transformações se dessem de
modo pacífico. Seriam necessárias tropas da UE encarregadas
de manter a paz. Mas o deslocamento de populações não poderia ser visto como efeito indesejável, pois seria o objetivo
de toda a movimentação.
A grande ilusão
Esse cenário pode parecer altamente improvável, mas partes do roteiro já foram escritas,
no que diz respeito às questões
ligadas à Bósnia-Herzegóvina e
à nacionalidade albanesa.
A idéia de que problemas de
nacionalidade possam ser resolvidos com a reorganização
de fronteiras é baseada na ilusão de que as fronteiras podem
ser redefinidas com precisão
segundo linhas étnicas. Todas
as fronteiras nacionais são criações históricas, legado de manobras políticas e militares.
O uso do termo "Bálcãs" se
difundiu no século 19. Quando
o Império Otomano começou a
se fragmentar, as reivindicações inconciliáveis de suas populações antes súditas abalaram essa região da Europa. Os
Bálcãs passaram a ser vistos como sinônimo de sentimento
nacionalista, transtornos e
fragmentação -em outras palavras, a "balcanização".
A emergência de Estados e a
definição de suas fronteiras
marcaram a entrada dos Bálcãs
na política moderna. Os novos
Estados eram, de modo geral,
nacionalistas, baseados nos
modelos fornecidos pela história da Europa Ocidental. A diversidade que caracterizara a
era otomana, as identidades
múltiplas de língua, "nacionalidade" e religião, começou a perder força.
As fronteiras internas traçadas em 1945 para a República
Federal Socialista da Iugoslávia
foram a menos negativa de todas as soluções conciliatórias,
segundo o político que foi o responsável principal por elas, o
dissidente Milovan Djilas, nascido em Montenegro. O sistema dependia da manutenção
de uma distinção clara entre cidadania e nacionalidade e tinha
suas origens no pensamento
marxista austríaco. Os iugoslavos eram cidadãos da república
federal em que viviam (e também da Federação Socialista),
mas permaneciam livres para
escolher sua comunidade nacional: não havia obrigação no
recenseamento iugoslavo.
A experiência dos Bálcãs
mostra que as reivindicações
de populações diferentes não
podem ser apresentadas em
termos de Estados sem causar
confrontos. Em Kosovo só existem duas soluções possíveis: ou
a vitória de uma população sobre a outra, suscitando frustrações e buscas de vingança, ou a
invenção de novas formas de
coexistência e co-soberania política. O contexto europeu poderia gerar novas oportunidades políticas capazes de superar esses conflitos territoriais.
As grandes potências sempre
exerceram papel essencial na
determinação das fronteiras
nos Bálcãs. Hoje Kosovo é um
peão na batalha planetária entre Rússia e Estados Unidos, de
modo que pouca atenção será
dada aos interesses reais dos albaneses, sérvios e outros que
vivem em Kosovo. Qualquer
tentativa de solucionar os problemas através de novos planos
de partilha afetaria a Europa
inteira. É tempo de encontrar
uma resposta melhor do que
traçar novas linhas no mapa.
JEAN-ARNAULT DÉRENS é editor do "Courrier
des Balkans"
Tradução de CLARA ALLAIN
NA INTERNET: Leia a íntegra do artigo em www.folha.com.br/080465
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