São Paulo, sexta-feira, 17 de agosto de 2007

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ARTIGO

"No pico de um movimento ondulatório"

ALONSO CUETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O dia começou com uma surpresa agradável para os moradores de Lima, que viviam o inverno mais severo em muitos anos. O céu estava claro, como que remanescente de outra estação, e isso rapidamente lotou os píeres da cidade de corredores e transeuntes. Ao meio-dia, para surpresa ainda maior, despontou um sol de verão que brilhou por boa parte da tarde. Por volta das 18h40, eu estava sentado diante do computador, ouvindo sem muita atenção uma conversa do meu filho ao telefone. De repente, a tela começou a se mexer de um lado para outro, como as fotografias nas paredes (enquanto escrevo ainda as vejo fora do lugar, como que paralisadas pelo tremor).
Quando ouvi meu filho dizer "vou desligar porque estou sentindo um tremor", achei que ele estivesse exagerando. Viver em Lima faz com que as pessoas se acostumem a tremores, e eles em geral duram apenas alguns segundos.
Continuei diante da máquina, até que comecei a ver as plantas e as cortinas se mexendo. Subitamente, senti uma força imensa por sob o assoalho. Estávamos no pico de um movimento ondulatório, como um barco nas ondas de uma tormenta. As janelas chacoalhavam com um ruído de trem. Postei-me, com um de meus filhos, no vão de uma porta, enquanto me comunicava com o outro (por meio dos gritos mais tranqüilos de que sou capaz), no andar de cima da casa. Quando o movimento pareceu se atenuar, tentei acalmá-los. Mas a realidade me contradisse, porque o movimento em breve se converteu em uma série de sacudidas violentas. "Vamos para a rua", disse meu filho mais velho.
Eu nunca havia demorado tanto para descer as escadas de casa, agarrado ao corrimão, tateando em busca de cada degrau, à procura do caminho para a rua. Na calçada, encontramos nossos vizinhos. Todos estavam falando ao mesmo tempo (nada une mais as pessoas do que uma catástrofe compartilhada). Minha mulher chegou. O terremoto a havia apanhado entre uma ponte e alguns edifícios que oscilavam. Nós nos abraçamos.
Nas horas seguintes, houve uma sucessão de imagens. A mensagem do presidente Alan García, as terríveis notícias sobre Ica, as críticas às empresas de telefonia pela interrupção das comunicações, entrevistas com especialistas, o protocolo do luto. A vida continua, mas não para todos.
Enquanto eu escrevia este texto, senti alguns novos tremores. Outro deles aconteceu neste instante. Mas nada sério. Até daqui a alguns anos, espero. Continuaremos a recordar o sol que apareceu fora de época neste dia de agosto.

ALONSO CUETO, 53, é autor de 12 livros, entre romances e contos. Em 2005, recebeu o prêmio Herralde, da editora espanhola Alfaguara, por "A Hora Azul" (ed. Objetiva, 2005)

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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