São Paulo, domingo, 17 de outubro de 2004

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SOCIEDADE

Déficit crescente de moradias baratas no país leva estudantes a procurar ajuda até de entidades humanitárias

Universitários se tornam "sem-teto" na França

FERNANDO EICHENBERG
FREE-LANCE PARA A FOLHA, EM PARIS

Durante um ano inteiro, a brasileira Flávia Tavares, 34, amargou maus momentos em Paris sem domicílio fixo, pernoitando na casa de amigos e conhecidos. "Eu telefonava para alguém e dizia: "Hoje vou dormir na sua casa'", contou à Folha. Aluna do curso de cinema da Universidade de Paris 8, Flávia é mais uma a engrossar as estatísticas dos estudantes que têm enfrentado dificuldades para encontrar moradia nas cidades universitárias francesas.
Os estudantes têm sido obrigados a passar por uma via-crúcis, num quadro de saturação das residências universitárias, e com o preço dos aluguéis privados aumentando sem cessar.
Sem contar a cada vez mais numerosa documentação exigida pelos proprietários de imóveis, o que não facilita a vida de estudantes em situação precária.
"Não tenho como oferecer meus pais como fiadores, o que funciona aqui para a maioria dos estudantes. E, como estrangeira, do Terceiro Mundo, a condição é ainda pior", justificou Flávia. Atualmente, ela subloca, com mais duas amigas, um apartamento de 45 metros quadrados, por 770 mensais de aluguel.
O cobiçado abrigo foi obtido graças a um amigo, que deixou o local para morar com a namorada. Há pouco, as três moradoras permaneceram um mês sem poder utilizar o chuveiro, por causa de um problema de vazamento. "Como estamos sublocando, os trâmites burocráticos ficam bastante complicados", explicou a universitária brasileira.

Problema generalizado
O problema de moradia estudantil, no entanto, não está restrito a brasileiros ou estrangeiros em geral, e se intensificou de tal maneira que passou a preocupar e a mobilizar o governo.
Para um universitário, hoje, conseguir uma residência universitária ou alugar um modesto apartamento se tornou uma estafante maratona. Segundo as estatísticas oficiais, do total de 2,2 milhões de estudantes universitários franceses, mais da metade, cerca de 1,2 milhão, vive fora do domicílio familiar.
A oferta de alojamentos nas residências universitárias limita-se a cerca de 150 mil unidades. As residências universitárias privadas dispõem de 93 lugares; as pensões, de 33 mil, e os internatos, de 21 mil.
Na Cidade Universitária Internacional de Paris, um parque arborizado abrigando 37 residências para 5.500 estudantes de quase 140 diferentes nacionalidades, os crescentes pedidos anuais de inscrições se acumulam.
No Centro Regional de Obras Universitárias e Escolares (Crous, na sigla em francês), os 158 mil alojamentos disponíveis são insuficientes para atender às mais de 500 mil demandas de estudantes.

Em busca de caridade
O sinal de alerta foi dado quando, mais recentemente, estudantes começaram a bater à porta de associações humanitárias e caritativas, como os centros Sonacotra e Emaús, normalmente acostumadas a atender mendigos e desempregados sem teto.
Num relatório de maio último, o Observatório da Habitação Transitória, que coleta regularmente informações nesses centros, apontava o crescente número de pessoas com dificuldades de acesso à moradia.
"É o caso, principalmente, da população estudantil, que se encontra, paradoxalmente, numa situação semelhante à da população precária."
Segundo o Observatório, as solicitações de alojamento por parte de estudantes às suas organizações filiadas mais do que dobrou em dois anos: de 3,5%, em 2001, para 7,5%, em 2003.
Na associação Emaús, a hospedagem emergencial de estudantes universitários tem sido mais freqüente.
"A cada mês, uns dois ou três aparecem pedindo ajuda, e permanecem, em média, uns 45 dias por aqui", confirmou o diretor do centro parisiense da rua de l'Aube, Souleymane Ba.
O local possui um total de 80 leitos, divididos em quatro por cada quarto, acessíveis por uma módica diária de 1,50. "Estávamos hospedando três jovens universitários, um da Mauritânia, um senegalês e um argelino. Por enquanto, o argelino ainda está aqui, pois não encontra de jeito nenhum outro lugar para ficar", disse o diretor.
O libanês Elie Feghlami, 24, também estudante da Universidade de Paris 8, está há dois anos e meio pulando de sofá em sofá. Sua candidatura a um alojamento foi recusada quatro vezes consecutivas na Cidade Universitária, e hoje ele vive da generosidade de amigos, que o acolhem por algumas noites.
"Sou um estudante sem teto. É um estilo de vida", disse, bem-humorado, à Folha. Sua colega, Sarah Terrise, 20, da Ilha Reunião e há dois anos e meio na França, conta que ficou cinco meses sem domicílio fixo até conseguir uma primeira morada.
"No início, vivi numa "chambre de bonne" (o quarto de empregada francês), de nove metros quadrados, sem aquecimento, chuveiro ou cozinha, e pagando um aluguel de 240 mensais", disse. Hoje, ela vive num apartamento de uma só peça, de 24 metros quadrados, com um aluguel de 550.

Francês também sofre
O francês Roch Giraud, 29, estudante de filosofia na Universidade Sorbonne-Paris 4, é uma prova de que o problema não atinge apenas estrangeiros. Durante seis meses, ele enfrentou a dura concorrência e filas de cerca de duas horas diante de apartamentos em locação, sem sucesso.
"Morei por um tempo num quartinho de empregada e também me socorri na casa da minha mãe", contou. Mas ele pode se considerar um caso de sorte, pois pagou um anúncio classificado num jornal, obteve resposta e, atualmente, divide com a namorada um apartamento de 45 metros quadrados, por 620 de aluguel.
"Não conheço nenhum estudante que não tenha dificuldade em achar um lugar para morar em Paris. Hoje, a situação é muito difícil, não apenas porque há pouca oferta mas porque o que tem é muito caro", disse. De acordo com a Federação Nacional do Imobiliário, os aluguéis aumentaram na França, em média, 8,8%, em 2002, 5,6%, em 2003, e 4,5% só no primeiro trimestre de 2004.
O governo francês anunciou um plano plurianual de construção de 50 mil novos alojamentos estudantis, num prazo total de dez anos.
Mas, por enquanto, cada um vai se virando como pode. Depois de ter sofrido o problema na pele, Flávia Tavares prometeu a si mesma abrigar na sua casa todo estudante sem teto que lhe pedir ajuda. "É muito ruim ficar sem ter onde dormir. Mas o resultado é que minha casa virou um hotel!"


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