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ARTIGO
Uma visita a Fidel Castro
ARTHUR MILLER
Meus sentimentos em relação a
Cuba têm sido ambíguos nas últimas décadas. Além de sabê-lo pela imprensa, descobri por meio de
pessoas de cinema que trabalharam por lá que a sociedade cubana sob o governo Batista era corrupta até não mais poder, um parque de diversões da máfia, um
bordel para americanos e outros
estrangeiros. Assim, o fato de Fidel Castro ter aberto caminho até
o poder à força parecia ser um
vento fresco varrendo para longe
a degradação e a subserviência ao
dólar ianque. O que emergiu, depois de toda a fumaça se esvair no
ar, se converteu em algo diferente,
é claro, e, se optei por não esquecer os motivos que levaram à revolução de Fidel, a repressão movida por seu governo de um homem só nem por isso deixou de
corroer minha simpatia por seu
regime. Ao mesmo tempo, o implacável bloqueio americano empreendido a pedido, ao que parecia, de uma classe derrotada de
exploradores, parecia ser algo diferente de uma resistência democrática baseada em princípios.
O ponto focal dessas contradições todas era o próprio Fidel; esse homem era, de fato, a própria
Cuba. Mas, quando minha mulher, a fotógrafa Inge Morath, e eu
fomos convidados, em março de
2000, para integrar um pequeno
grupo de ""visitantes culturais"
numa viagem breve à ilha, partimos sem qualquer idéia de termos algum encontro com o Líder,
ele próprio, e sim pensando apenas em conhecer um pouco do
país. O que acabou por acontecer
foi que, pouco após nossa chegada, ele convidou nosso grupinho
de nove pessoas para jantar e, no
dia seguinte, apareceu de repente,
no lugar onde estávamos almoçando, na zona rural, para continuar a conversa.
Em março de 2000, quando
aconteceu nosso encontro, o futuro de Cuba era a grande dúvida na
cabeça de qualquer pessoa que
pensasse sobre o país. Nosso grupinho não era exceção. Além de
minha mulher e eu, éramos William Luers, ex-diretor do Metropolitan Museum of Art, de Nova
York, e sua mulher, Wendy, uma
ativista dos direitos humanos; o
romancista William Styron e sua
mulher, Rose; o agente literário
Morton Janklow e a mulher dele,
Linda, e Patty Cisneros, organizadora filantropa de
um grupo dedicado a salvar a cultura amazônica.
Prevendo apenas caminhar pela
cidade e possivelmente nos encontrar com alguns
escritores, ficamos surpresos, no
segundo dia na
ilha, com o convite recebido de Fidel para jantar
com ele. Mais tarde, ficaria claro
que ""Gabo" (Gabriel García Márquez), amigo e
partidário de Fidel, tinha provavelmente sido o
responsável por
esse ato de hospitalidade. Eu tinha
enorme curiosidade sobre Fidel e,
ao mesmo tempo,
era um pouco
cauteloso em minhas expectativas.
Os líderes não-eleitos costumam ser incomumente sensíveis à contradição, e a
companhia deles pode ser dolorosamente enfadonha. Mas Fidel já
era uma figura mítica, e a perspectiva de passar uma ou duas horas
com ele era algo a ser antecipado
com interesse.
Vou mencionar apenas duas ou
três observações que fiz em Havana antes de nosso jantar. A cidade
em si possui a beleza de uma ruína que está voltando a desfazer-se
na areia, na mica, nas pedras e nas
árvores das quais nasceu. A pobreza da população é evidente,
mas, ao mesmo tempo, uma certa
garra parece sobreviver. Por pobres que sejam os cubanos, percebe-se muito pouco do clima de
desesperança morta que se vê em
tantas cidades onde a miséria e a
riqueza glamurosa convivem lado
a lado. Mas tudo isso são aparências. Um guia com o qual topei
não conseguiu esconder sua frustração quando explicou que trabalhava para um órgão de turismo do governo que cobrava alto
dos clientes estrangeiros pelo serviços dele, enquanto ele próprio
ganhava pouco.
Mas pode haver um outro lado
nessa situação. Fiz uma caminhada perto do belo e antigo hotel
Santa Isabel e me sentei num banco de frente para o trânsito leve da
Malecón, a avenida larga que
acompanha o traçado do porto.
Pouco depois apareceram dois
sujeitos e se sentaram a meu lado,
mergulhados numa discussão.
Eram extremamente magros, e
nenhum dos dois usava meias;
um calçava sapatos rachados, e o
outro, sandálias que estavam se
desintegrando.
Um táxi parou
na esquina diante
de nós e uma moça belíssima saiu
do carro. Ela carregava dois sacos
de compras repletos de alimentos.
Os dois homens
pararam de conversar para olhar
para ela, embasbacados. Vi que
ela estava vestida
lindamente e com
bom gosto e que, o
que chamava ainda mais a atenção
naquele lugar proletário, usava saltos altos. Uma tulipa branca se erguia de um de
seus sacos de
compras. A mulher fazia malabarismos com os sacos para conseguir abrir a bolsa,
e a tulipa balançava perigosamente,
havendo o risco
de seu caule se
quebrar. Um dos
homens se levantou e segurou um dos sacos, enquanto o outro segurava o segundo. Perguntei-me se eles não
iriam agarrar os sacos e fugir.
Em lugar disso, enquanto a mulher pagava o taxista, um dos homens segurou o caule da tulipa,
até a moça firmar os dois sacos
em seus braços. Ela os agradeceu
com certa dignidade formal e se
afastou. Os dois homens voltaram
ao banco e à sua conversa. Achei
notável o que acabara de acontecer. Tendo passado anos protestando contra a repressão de dissidentes, eu me perguntei se uma
espécie animadora de solidariedade não poderia ter sido gerada,
possivelmente em razão da relativa simetria entre pobreza e a incapacidade generalizada do sistema.
A pobreza se aproxima do catastrófico. Na mesma avenida que
beira o porto, os faróis de trânsito
são o sinal para uma dúzia de meninas e moças se aproximar dos
carros. Elas não se vestem de maneira chamativa. Isso era proibido
durante o domínio soviético.
Agora a pressão da fome, pura e
simples, era grande demais.
Os alunos de uma escola de teatro me fizeram uma apresentação
lindamente modulada de uma peça estudantil surreal, na qual uma
crucificação sugeria uma simbolização da angústia causada pela
Aids, e, depois da apresentação,
tive um encontro com os alunos,
jovens, ávidos e cheios de esperança e energia, todos querendo
saber tudo sobre a Broadway.
Quando eu lhes disse que a
Broadway foi dominada quase exclusivamente por musicais e entretenimento puro, os estudantes
se mostraram tristes e não quiseram ouvir a má notícia. Nada,
aparentemente, é capaz de macular o sucesso e a esperança transmitidos pela maioria das coisas ligadas à América. Se tivessem a
oportunidade, eles correriam todos juntos para a Times Square.
Quando chegamos ao Palácio
da Revolução para o jantar, pediram à minha mulher que entregasse sua Leica antes do encontro
com Fidel. O palácio é anterior a
Fidel, muito moderno e agressivamente opulento. Entramos numa
ante-sala que levava à sala de jantar, e, de repente, ali estava Fidel,
não de uniforme, como nas fotos,
mas usando terno listrado azul.
Minha impressão imediata foi
que, se não tivesse sido político
revolucionário, ele poderia muito
bem ter sido astro de cinema. Ele
possuía aquele auto-envolvimento total, aquela necessidade de
amor e concordância, a sede avassaladora de poder que costumam
acompanhar a aprovação total.
De repente Fidel me olhou por
cima das cabeças dos outros e
quase gritou: ""Quando é seu aniversário?".
"17 de outubro de 1915", respondi, fazendo de conta que não
estava espantado com a pergunta.
Fidel apontou seu longo dedo
indicador para sua têmpora direita. Todos fizeram silêncio. Uma
expressão de sagacidade profunda cobriu seu rosto, enquanto ele
mantinha o dedo apertado contra
a cabeça. Pensei em atuação exagerada, própria de um canastrão,
mas depois recordei as telas que
retratam o Cavaleiro do Semblante Triste, de Cervantes -aquele
olhar voltado ao céu, aquela barba
rala, as sobrancelhas inclinadas, a
eterna melancolia espanhola-, e
Fidel começou a me parecer normal. Ele ergueu o dedo e apontou
para cima, como um professor
em tom de censura. ""Você é 11
anos, cinco meses e 14 dias mais
velho do que eu". Risos de congratulação pipocaram pela sala,
desanuviando o ambiente. Havia
algo de quase comovente nessa
manifestação infantil de sua capacidade de fazer contas.
Agora, com uma expressão maliciosa nos olhos, Fidel se voltou
para Wendy Luers. No meio da
tarde ela nos fizera descer da van
fornecida pelo governo e entrar
em táxis que nos haviam levado à
casa de um dissidente, Elizardo
Sánchez. Ciente de que sua casa
era grampeada, ele se sentia livre
para dizer o que bem entendesse,
já que suas posições já eram amplamente conhecidas. E, caso algum de nós pudesse ter imaginado que nossa visita fosse segredo,
essa idéia foi dissipada pelo simpático cinegrafista de TV que nos
fotografou ao sairmos da casa.
Fidel se inclinou para a frente e
disse: ""Ouvimos dizer que vocês
todos sumiram por algumas horas esta tarde. Estavam fazendo
compras?" Uma expressão de ironia feroz cobriu seu rosto, e então
ele riu conosco. E fomos jantar.
Havia camarões fantásticos e
carne de porco espetacular, de sonhos -os cubanos são famosos
por sua carne de porco (Fidel, porém, comeu verduras, já que pretende viver para sempre). Nosso
grupo se sentou misturado a diversos cubanos, ministros e assessores do governo, entre eles várias
mulheres. Não demorou a ficar
claro que, em lugar de um bate-papo, teríamos o que parecia ser
um conjunto bastante formalizado de abordagens a diversas
idéias que vinham à cabeça do Líder. Recordo-me de Fidel de repente assumindo ar severo quando falou da teimosia estúpida dos
russos em todas as coisas e de ele
imitando as vozes baixas dos russos quando se aferravam a alguma proposta absurda, desafiando
todas as evidências em contrário.
O que ele parecia criticar nos russos era principalmente sua deslealdade, que beirava a perfídia
-eles não tinham aguentado até
o fim, como teriam feito revolucionários de fato.
Durante o jantar, Fidel também
lançou algumas farpas contra a
CIA e as diversas tentativas que
ela fez de assassiná-lo. Era impossível não perceber um certo ar de
confiança calma ou até mesmo
arrogante com relação à América
-era quase como se Cuba fosse a
grande potência e a América alguma espécie de adolescente imprevisível que periodicamente atirava pedras e quebrava suas janelas.
Sentamo-nos para jantar por
volta das 21h30. Às 23h30 eu estava começando a me cansar e me
lembrei de que Fidel, que evidentemente estava ganhando mais
força a cada momento que passava, gostava de passar a noite em
claro, já que dormia a maior parte
do dia. Já era 0h30, e depois, inevitavelmente, 1h30. Vi que García
Márquez estava, pelo que se podia
ver, cochilando profundamente,
sentado ereto em sua cadeira. Fidel estava em pleno vôo, alimentado por uma espécie de entusiasmo maníaco por sua própria performance. Fosse o assunto alguma descoberta científica muito
conhecida ou uma percepção inteligente que alguém tivera, ele falava dela como se estivesse pessoalmente expondo o assunto pela primeira vez. Mas o fazia de
maneira encantadora, não destituída de ironia autocrítica e certa
dose de humor espirituoso. Ele
estava evidentemente ansioso por
ocupar um espaço tão grande
quanto possível à sua volta. E como poderia ser diferente, compreendi, quando ele era chefe de
Estado havia quase meio século
-muito mais tempo do que
qualquer rei ou presidente dos
tempos modernos, com a possível
exceção do imperador Francisco
José, da Áustria. E que efeito seu
domínio interminável tivera sobre os cubanos, a maioria dos
quais nem tinha nascido quando
ele chegou ao poder?
Por volta das 2h,
antes de conseguir
realmente pensar
no que estava fazendo, eu levantei
minha mão e disse: ""Por favor, senhor presidente,
me perdoe, mas o
senhor deve se
lembrar de que,
quando chegamos, disse que sou
11 anos, cinco meses e 14 dias mais
velho do que o senhor". Parei diante de seu olhar repentino de surpresa, talvez mesmo um pouco de
apreensão, diante
da interrupção.
""Agora já são 15
dias."
Fidel ergueu as
mãos. ""Eu transgredi!". Ele riu e se
levantou, pondo
fim ao jantar.
Quando nosso
grupo partiu, fomos aplaudidos
na rua pela comitiva, agradecida.
No dia seguinte estávamos almoçando fora da cidade, na varanda de um instituto de reflorestamento. O ar era puro, o silêncio,
refrescante. De repente ouvimos
o trovejar de vários motores e, em
meio a uma nuvem de poeira, três
Mercedes recentes, de modelos
novos, pararam à frente da casa. A
porta do carro do meio se abriu, e
ali estava Fidel, dessa vez usando
seu uniforme verde. Ele subiu para a varanda em meio às saudações generalizadas, puxou uma
cadeira e se sentou.
Styron parecia ser o alvo de seu
interesse naquele dia, e Fidel lhe
perguntou os nomes dos melhores autores americanos, mas do
século 19. Ele disse que, de fato,
nunca estudara a literatura americana e sabia muito pouco sobre
ela. Essa confissão parecia estranha, em vista da posição de ícone
de Hemingway em Cuba. Eu me
perguntava se Fidel talvez não estivesse tão distante de seu próprio
país quando estava do nosso. Temos o hábito de eternamente atribuir sabedoria ao poder, mas não
deveria um governante sábio reconhecer que, após quase 50 anos
no controle do país, era chegada a
hora de abrir caminho para um
regime com pessoas novas e, possivelmente, idéias melhores?
Observando-o no almoço -ele
comeu duas folhas de alface-,
víamos um homem idoso e solitário, sedento por contatos humanos novos, coisa que só pode se
tornar mais rara à medida que ele
envelhece. Ele pode muito bem
viver ativamente por mais dez
anos, e eu me perguntei o que será
que o impede de executar a saída
que poderia até lhe conquistar a
gratidão de seus conterrâneos.
O encantamento quase sexual
do poder? Talvez. Mas, dada sua
história, é mais provável que a
resposta seja seu compromisso
com a imagem poética da revolução mundial, a insurreição dos
miseráveis da Terra, com ele próprio à sua frente. E, verdade seja
dita, como chefe de uma simples
ilha, Fidel conseguiu elevar-se até
essa condição transcendental, na
cabeça de milhões de pessoas.
Teria sido demais esperar que,
após metade de um século no poder, ele não tivesse se tornado até
certo ponto um anacronismo, um
relógio velho e bonito que já deixou de marcar o tempo com precisão e ressoa fora de hora, no
meio da noite, perturbando a casa. Apesar de seus esforços, a única coisa que se assemelha a uma
revolta dos pobres, hoje, é a antimoderna maré islâmica, que, desde um ponto de vista marxista,
flutua num sonho medieval. Ideologias de lado, parece que Fidel
conserva as ilusões que estruturaram seus sucessos políticos, mesmo que elas nunca tenham contido muita verdade. Até hoje, por
exemplo, ele fala da dissolução da
URSS como sendo desnecessária,
""um erro".
Em suma, não existia nenhuma
contradição inerente ao sistema
soviético que tivesse provocado
sua queda, e, portanto, não existe
nada no sistema criado por Fidel
Castro que esteja
gerando a pobreza
dolorosa da ilha.
O embargo americano gerou a pobreza de Cuba diretamente, além
dos russos, pelo
fato de a terem
abandonado. É
Dom Quixote lançando-se contra
moinhos de vento
que, o que é ainda
pior, já desabaram.
A praça diante
do hotel Santa Isabel é ladeada por
15 a 20 barracas de
livros que oferecem à venda surrados exemplares
de velhos tratados
marxistas-leninistas que dois responsáveis enchem
todas as manhãs e
esvaziam todas as
noites. É possível
que alguém no governo imagine
que pessoas em sã
consciência sintam a tentação
comprar, muito menos de ler, esses artefatos representativos de
uma era passada? O que, indagamo-nos, ainda mantém tudo isso
vivo? Será o amor patriótico dos
cubanos -conformistas ou dissidentes- por seu país, ou o ódio
maníaco e petrificado dos políticos americanos, cujo embargo
simplesmente proporciona a Fidel uma apólice de seguro contra
as mudanças necessárias, injetando na população a energia do desafio justo? Será preciso o patos de
um novo Cervantes para superar
essa história profundamente triste de sofrimento desnecessário.
Arthur Miller, 88, é um dos maiores dramaturgos americanos, autor de "A Morte
do Caixeiro-Viajante".
Tradução de Clara Allain
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