São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2004

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ARTIGO

Uma visita a Fidel Castro

ARTHUR MILLER

Meus sentimentos em relação a Cuba têm sido ambíguos nas últimas décadas. Além de sabê-lo pela imprensa, descobri por meio de pessoas de cinema que trabalharam por lá que a sociedade cubana sob o governo Batista era corrupta até não mais poder, um parque de diversões da máfia, um bordel para americanos e outros estrangeiros. Assim, o fato de Fidel Castro ter aberto caminho até o poder à força parecia ser um vento fresco varrendo para longe a degradação e a subserviência ao dólar ianque. O que emergiu, depois de toda a fumaça se esvair no ar, se converteu em algo diferente, é claro, e, se optei por não esquecer os motivos que levaram à revolução de Fidel, a repressão movida por seu governo de um homem só nem por isso deixou de corroer minha simpatia por seu regime. Ao mesmo tempo, o implacável bloqueio americano empreendido a pedido, ao que parecia, de uma classe derrotada de exploradores, parecia ser algo diferente de uma resistência democrática baseada em princípios.
O ponto focal dessas contradições todas era o próprio Fidel; esse homem era, de fato, a própria Cuba. Mas, quando minha mulher, a fotógrafa Inge Morath, e eu fomos convidados, em março de 2000, para integrar um pequeno grupo de ""visitantes culturais" numa viagem breve à ilha, partimos sem qualquer idéia de termos algum encontro com o Líder, ele próprio, e sim pensando apenas em conhecer um pouco do país. O que acabou por acontecer foi que, pouco após nossa chegada, ele convidou nosso grupinho de nove pessoas para jantar e, no dia seguinte, apareceu de repente, no lugar onde estávamos almoçando, na zona rural, para continuar a conversa.
Em março de 2000, quando aconteceu nosso encontro, o futuro de Cuba era a grande dúvida na cabeça de qualquer pessoa que pensasse sobre o país. Nosso grupinho não era exceção. Além de minha mulher e eu, éramos William Luers, ex-diretor do Metropolitan Museum of Art, de Nova York, e sua mulher, Wendy, uma ativista dos direitos humanos; o romancista William Styron e sua mulher, Rose; o agente literário Morton Janklow e a mulher dele, Linda, e Patty Cisneros, organizadora filantropa de um grupo dedicado a salvar a cultura amazônica.
Prevendo apenas caminhar pela cidade e possivelmente nos encontrar com alguns escritores, ficamos surpresos, no segundo dia na ilha, com o convite recebido de Fidel para jantar com ele. Mais tarde, ficaria claro que ""Gabo" (Gabriel García Márquez), amigo e partidário de Fidel, tinha provavelmente sido o responsável por esse ato de hospitalidade. Eu tinha enorme curiosidade sobre Fidel e, ao mesmo tempo, era um pouco cauteloso em minhas expectativas. Os líderes não-eleitos costumam ser incomumente sensíveis à contradição, e a companhia deles pode ser dolorosamente enfadonha. Mas Fidel já era uma figura mítica, e a perspectiva de passar uma ou duas horas com ele era algo a ser antecipado com interesse.
Vou mencionar apenas duas ou três observações que fiz em Havana antes de nosso jantar. A cidade em si possui a beleza de uma ruína que está voltando a desfazer-se na areia, na mica, nas pedras e nas árvores das quais nasceu. A pobreza da população é evidente, mas, ao mesmo tempo, uma certa garra parece sobreviver. Por pobres que sejam os cubanos, percebe-se muito pouco do clima de desesperança morta que se vê em tantas cidades onde a miséria e a riqueza glamurosa convivem lado a lado. Mas tudo isso são aparências. Um guia com o qual topei não conseguiu esconder sua frustração quando explicou que trabalhava para um órgão de turismo do governo que cobrava alto dos clientes estrangeiros pelo serviços dele, enquanto ele próprio ganhava pouco.
Mas pode haver um outro lado nessa situação. Fiz uma caminhada perto do belo e antigo hotel Santa Isabel e me sentei num banco de frente para o trânsito leve da Malecón, a avenida larga que acompanha o traçado do porto. Pouco depois apareceram dois sujeitos e se sentaram a meu lado, mergulhados numa discussão. Eram extremamente magros, e nenhum dos dois usava meias; um calçava sapatos rachados, e o outro, sandálias que estavam se desintegrando.
Um táxi parou na esquina diante de nós e uma moça belíssima saiu do carro. Ela carregava dois sacos de compras repletos de alimentos. Os dois homens pararam de conversar para olhar para ela, embasbacados. Vi que ela estava vestida lindamente e com bom gosto e que, o que chamava ainda mais a atenção naquele lugar proletário, usava saltos altos. Uma tulipa branca se erguia de um de seus sacos de compras. A mulher fazia malabarismos com os sacos para conseguir abrir a bolsa, e a tulipa balançava perigosamente, havendo o risco de seu caule se quebrar. Um dos homens se levantou e segurou um dos sacos, enquanto o outro segurava o segundo. Perguntei-me se eles não iriam agarrar os sacos e fugir.
Em lugar disso, enquanto a mulher pagava o taxista, um dos homens segurou o caule da tulipa, até a moça firmar os dois sacos em seus braços. Ela os agradeceu com certa dignidade formal e se afastou. Os dois homens voltaram ao banco e à sua conversa. Achei notável o que acabara de acontecer. Tendo passado anos protestando contra a repressão de dissidentes, eu me perguntei se uma espécie animadora de solidariedade não poderia ter sido gerada, possivelmente em razão da relativa simetria entre pobreza e a incapacidade generalizada do sistema.
A pobreza se aproxima do catastrófico. Na mesma avenida que beira o porto, os faróis de trânsito são o sinal para uma dúzia de meninas e moças se aproximar dos carros. Elas não se vestem de maneira chamativa. Isso era proibido durante o domínio soviético. Agora a pressão da fome, pura e simples, era grande demais.
Os alunos de uma escola de teatro me fizeram uma apresentação lindamente modulada de uma peça estudantil surreal, na qual uma crucificação sugeria uma simbolização da angústia causada pela Aids, e, depois da apresentação, tive um encontro com os alunos, jovens, ávidos e cheios de esperança e energia, todos querendo saber tudo sobre a Broadway. Quando eu lhes disse que a Broadway foi dominada quase exclusivamente por musicais e entretenimento puro, os estudantes se mostraram tristes e não quiseram ouvir a má notícia. Nada, aparentemente, é capaz de macular o sucesso e a esperança transmitidos pela maioria das coisas ligadas à América. Se tivessem a oportunidade, eles correriam todos juntos para a Times Square.
Quando chegamos ao Palácio da Revolução para o jantar, pediram à minha mulher que entregasse sua Leica antes do encontro com Fidel. O palácio é anterior a Fidel, muito moderno e agressivamente opulento. Entramos numa ante-sala que levava à sala de jantar, e, de repente, ali estava Fidel, não de uniforme, como nas fotos, mas usando terno listrado azul. Minha impressão imediata foi que, se não tivesse sido político revolucionário, ele poderia muito bem ter sido astro de cinema. Ele possuía aquele auto-envolvimento total, aquela necessidade de amor e concordância, a sede avassaladora de poder que costumam acompanhar a aprovação total.
De repente Fidel me olhou por cima das cabeças dos outros e quase gritou: ""Quando é seu aniversário?".
"17 de outubro de 1915", respondi, fazendo de conta que não estava espantado com a pergunta.
Fidel apontou seu longo dedo indicador para sua têmpora direita. Todos fizeram silêncio. Uma expressão de sagacidade profunda cobriu seu rosto, enquanto ele mantinha o dedo apertado contra a cabeça. Pensei em atuação exagerada, própria de um canastrão, mas depois recordei as telas que retratam o Cavaleiro do Semblante Triste, de Cervantes -aquele olhar voltado ao céu, aquela barba rala, as sobrancelhas inclinadas, a eterna melancolia espanhola-, e Fidel começou a me parecer normal. Ele ergueu o dedo e apontou para cima, como um professor em tom de censura. ""Você é 11 anos, cinco meses e 14 dias mais velho do que eu". Risos de congratulação pipocaram pela sala, desanuviando o ambiente. Havia algo de quase comovente nessa manifestação infantil de sua capacidade de fazer contas.
Agora, com uma expressão maliciosa nos olhos, Fidel se voltou para Wendy Luers. No meio da tarde ela nos fizera descer da van fornecida pelo governo e entrar em táxis que nos haviam levado à casa de um dissidente, Elizardo Sánchez. Ciente de que sua casa era grampeada, ele se sentia livre para dizer o que bem entendesse, já que suas posições já eram amplamente conhecidas. E, caso algum de nós pudesse ter imaginado que nossa visita fosse segredo, essa idéia foi dissipada pelo simpático cinegrafista de TV que nos fotografou ao sairmos da casa.
Fidel se inclinou para a frente e disse: ""Ouvimos dizer que vocês todos sumiram por algumas horas esta tarde. Estavam fazendo compras?" Uma expressão de ironia feroz cobriu seu rosto, e então ele riu conosco. E fomos jantar.
Havia camarões fantásticos e carne de porco espetacular, de sonhos -os cubanos são famosos por sua carne de porco (Fidel, porém, comeu verduras, já que pretende viver para sempre). Nosso grupo se sentou misturado a diversos cubanos, ministros e assessores do governo, entre eles várias mulheres. Não demorou a ficar claro que, em lugar de um bate-papo, teríamos o que parecia ser um conjunto bastante formalizado de abordagens a diversas idéias que vinham à cabeça do Líder. Recordo-me de Fidel de repente assumindo ar severo quando falou da teimosia estúpida dos russos em todas as coisas e de ele imitando as vozes baixas dos russos quando se aferravam a alguma proposta absurda, desafiando todas as evidências em contrário. O que ele parecia criticar nos russos era principalmente sua deslealdade, que beirava a perfídia -eles não tinham aguentado até o fim, como teriam feito revolucionários de fato.
Durante o jantar, Fidel também lançou algumas farpas contra a CIA e as diversas tentativas que ela fez de assassiná-lo. Era impossível não perceber um certo ar de confiança calma ou até mesmo arrogante com relação à América -era quase como se Cuba fosse a grande potência e a América alguma espécie de adolescente imprevisível que periodicamente atirava pedras e quebrava suas janelas.
Sentamo-nos para jantar por volta das 21h30. Às 23h30 eu estava começando a me cansar e me lembrei de que Fidel, que evidentemente estava ganhando mais força a cada momento que passava, gostava de passar a noite em claro, já que dormia a maior parte do dia. Já era 0h30, e depois, inevitavelmente, 1h30. Vi que García Márquez estava, pelo que se podia ver, cochilando profundamente, sentado ereto em sua cadeira. Fidel estava em pleno vôo, alimentado por uma espécie de entusiasmo maníaco por sua própria performance. Fosse o assunto alguma descoberta científica muito conhecida ou uma percepção inteligente que alguém tivera, ele falava dela como se estivesse pessoalmente expondo o assunto pela primeira vez. Mas o fazia de maneira encantadora, não destituída de ironia autocrítica e certa dose de humor espirituoso. Ele estava evidentemente ansioso por ocupar um espaço tão grande quanto possível à sua volta. E como poderia ser diferente, compreendi, quando ele era chefe de Estado havia quase meio século -muito mais tempo do que qualquer rei ou presidente dos tempos modernos, com a possível exceção do imperador Francisco José, da Áustria. E que efeito seu domínio interminável tivera sobre os cubanos, a maioria dos quais nem tinha nascido quando ele chegou ao poder?
Por volta das 2h, antes de conseguir realmente pensar no que estava fazendo, eu levantei minha mão e disse: ""Por favor, senhor presidente, me perdoe, mas o senhor deve se lembrar de que, quando chegamos, disse que sou 11 anos, cinco meses e 14 dias mais velho do que o senhor". Parei diante de seu olhar repentino de surpresa, talvez mesmo um pouco de apreensão, diante da interrupção. ""Agora já são 15 dias."
Fidel ergueu as mãos. ""Eu transgredi!". Ele riu e se levantou, pondo fim ao jantar. Quando nosso grupo partiu, fomos aplaudidos na rua pela comitiva, agradecida.
No dia seguinte estávamos almoçando fora da cidade, na varanda de um instituto de reflorestamento. O ar era puro, o silêncio, refrescante. De repente ouvimos o trovejar de vários motores e, em meio a uma nuvem de poeira, três Mercedes recentes, de modelos novos, pararam à frente da casa. A porta do carro do meio se abriu, e ali estava Fidel, dessa vez usando seu uniforme verde. Ele subiu para a varanda em meio às saudações generalizadas, puxou uma cadeira e se sentou.
Styron parecia ser o alvo de seu interesse naquele dia, e Fidel lhe perguntou os nomes dos melhores autores americanos, mas do século 19. Ele disse que, de fato, nunca estudara a literatura americana e sabia muito pouco sobre ela. Essa confissão parecia estranha, em vista da posição de ícone de Hemingway em Cuba. Eu me perguntava se Fidel talvez não estivesse tão distante de seu próprio país quando estava do nosso. Temos o hábito de eternamente atribuir sabedoria ao poder, mas não deveria um governante sábio reconhecer que, após quase 50 anos no controle do país, era chegada a hora de abrir caminho para um regime com pessoas novas e, possivelmente, idéias melhores?
Observando-o no almoço -ele comeu duas folhas de alface-, víamos um homem idoso e solitário, sedento por contatos humanos novos, coisa que só pode se tornar mais rara à medida que ele envelhece. Ele pode muito bem viver ativamente por mais dez anos, e eu me perguntei o que será que o impede de executar a saída que poderia até lhe conquistar a gratidão de seus conterrâneos.
O encantamento quase sexual do poder? Talvez. Mas, dada sua história, é mais provável que a resposta seja seu compromisso com a imagem poética da revolução mundial, a insurreição dos miseráveis da Terra, com ele próprio à sua frente. E, verdade seja dita, como chefe de uma simples ilha, Fidel conseguiu elevar-se até essa condição transcendental, na cabeça de milhões de pessoas.
Teria sido demais esperar que, após metade de um século no poder, ele não tivesse se tornado até certo ponto um anacronismo, um relógio velho e bonito que já deixou de marcar o tempo com precisão e ressoa fora de hora, no meio da noite, perturbando a casa. Apesar de seus esforços, a única coisa que se assemelha a uma revolta dos pobres, hoje, é a antimoderna maré islâmica, que, desde um ponto de vista marxista, flutua num sonho medieval. Ideologias de lado, parece que Fidel conserva as ilusões que estruturaram seus sucessos políticos, mesmo que elas nunca tenham contido muita verdade. Até hoje, por exemplo, ele fala da dissolução da URSS como sendo desnecessária, ""um erro".
Em suma, não existia nenhuma contradição inerente ao sistema soviético que tivesse provocado sua queda, e, portanto, não existe nada no sistema criado por Fidel Castro que esteja gerando a pobreza dolorosa da ilha. O embargo americano gerou a pobreza de Cuba diretamente, além dos russos, pelo fato de a terem abandonado. É Dom Quixote lançando-se contra moinhos de vento que, o que é ainda pior, já desabaram.
A praça diante do hotel Santa Isabel é ladeada por 15 a 20 barracas de livros que oferecem à venda surrados exemplares de velhos tratados marxistas-leninistas que dois responsáveis enchem todas as manhãs e esvaziam todas as noites. É possível que alguém no governo imagine que pessoas em sã consciência sintam a tentação comprar, muito menos de ler, esses artefatos representativos de uma era passada? O que, indagamo-nos, ainda mantém tudo isso vivo? Será o amor patriótico dos cubanos -conformistas ou dissidentes- por seu país, ou o ódio maníaco e petrificado dos políticos americanos, cujo embargo simplesmente proporciona a Fidel uma apólice de seguro contra as mudanças necessárias, injetando na população a energia do desafio justo? Será preciso o patos de um novo Cervantes para superar essa história profundamente triste de sofrimento desnecessário.


Arthur Miller, 88, é um dos maiores dramaturgos americanos, autor de "A Morte do Caixeiro-Viajante".

Tradução de Clara Allain


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