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OPINIÃO
Haiti, que ajuda?
OMAR RIBEIRO THOMAZ
OTÁVIO CALEGARI JORGE
ESPECIAL PARA A FOLHA,
EM PORTO PRÍNCIPE
O TERREMOTO no Haiti,
que afetou de forma
particularmente arrasadora sua capital, foi há cerca
de uma semana. O pouco de um
Estado já frágil foi destruído, a
missão das Nações Unidas foi
incapaz de ir além de resgatar
seus próprios mortos e feridos,
a ajuda internacional tarda, e o
que vemos são haitianos ajudando haitianos.
Entre quarta-feira e sábado, caminhar pelas
ruas do centro de Porto Príncipe e de Pétionville era observar
o civismo dos haitianos que,
muitas vezes, e como nós, sem
entender claramente o que havia acontecido, procuravam
cuidar dos feridos, resgatar
aqueles que ainda estavam vivos sob os escombros, e dispor
de seus mortos. O que vimos
foi, de um lado, solidariedade,
de outro a ausência quase que
total e absoluta das forças da
ONU e da ajuda internacional.
Por quê? Afinal, a Minustah
não estava no Haiti há cerca de
seis anos e não dizia estar agindo no sentido de estabilizar o
país e reconstruir o Estado haitiano? Quando nos perguntávamos do porquê da demora de
disponibilizar comida e remédios já no aeroporto de Porto
Príncipe para as centenas de
milhares de pessoas que se
aglomeravam nos campos de
refugiados improvisados por
todos os lados, a resposta era
que não existiam canais locais
capazes de serem mobilizados
para a tarefa.
Homens e mulheres que tinham vindo para ajudar, e as coisas que traziam, se
aglomeravam num aeroporto
controlado por forças militares
americanas, como se de uma
operação de guerra se tratasse.
Após seis anos no Haiti,
aqueles que diziam que estavam ali para reconstruir o país,
não tinham entendido nada, ou
muito pouca coisa. Quando fomos às praças e campos de futebol transformados em campos
de refugiados, eram as "dame
sara", mulheres que controlam
as redes comerciais existentes
no país, que garantiam o acesso
dos haitianos a produtos; eram
aquelas que cozinham na rua,
"chein jambe", que ofereciam
galinha, espaguete, arroz, feijão
e verduras aos haitianos e haitianas aglomerados; eram caminhões pertencentes a empresários locais que distribuíam água potável. Haitianos
ajudando haitianos.
Por que não aproveitar esta
energia e estas redes existentes
para fazer chegar a ajuda? Por
desconhecimento, talvez, ou
talvez por duvidar de sua eficácia, ou da possibilidade de uma
vítima ser mais do que uma vítima passiva à espera de ajuda.
O desconhecimento, no entanto, é duvidável. Em nossa visita
ao batalhão brasileiro da Minustah, horas antes do terremoto, pudemos ver na apresentação do coronel João Bernardes um extremo conhecimento
do funcionamento da sociedade haitiana. Infelizmente, a falta de ajuda parece estar mais ligada às disputas internacionais
pelo controle do futuro do povo
haitiano do que à emergência
da situação.
Sim, os haitianos são vítimas,
mas estão longe da passividade:
pra cima e pra baixo, entre as
"dame sara" e o "chein jambe",
vimos jovens escoteiros removendo entulho, jovens pedido
ajuda com alto-falantes, médicos haitianos dando atendimento aos feridos nas ruas,
freira haitianas prestando os
primeiros socorros quando
possível. Paralelamente, o aparato da Minustah, cerca de
5.500 militares de diferentes
nacionalidades, ou estava parado, ou mobilizado na atenção
dos próprios quadros da ONU.
Os haitianos ajudam haitianos,
a ONU ajuda a ONU.
Culpas internacionais
Duas reações foram recorrentes nos dias que se seguiram
aos terremotos. Uma, talvez a
mais primária, era a de responsabilizar a natureza. A outra, a
de responsabilizar os próprios
haitianos pelo caos que sucedeu ao cataclismo. Afinal, foram incapazes de construir um
Estado e, por isso, são incapazes de reagir.
Ambas as reações são perversas. Não estamos só diante de
um cataclismo natural, mas
também de uma catástrofe social. E o desmantelamento do
Estado haitiano não é responsabilidade exclusiva dos haitianos, muito pelo contrário. País
com pouca margem de manobra no contexto caribenho ao
longo das décadas de Guerra
Fria, viu as grandes potências
apoiarem uma ditadura regressiva e particularmente violenta; concomitantemente, e especialmente a partir do fim dos
anos 1970 e ao longo dos anos
1980, o Haiti, como tantos outros países, foi vítima de profissionais engravatados que aplicavam a mesma receita em
qualquer lugar: desregulamentação, estado mínimo, livre comércio.
Foram as pressões do FMI e
do Banco Mundial que obrigaram o Haiti a desproteger a
produção de arroz no início dos
anos 1980. O Haiti era, até então, autossuficiente em arroz.
Em pouco tempo não só se viu
obrigado a importar este produto, como massas de camponeses foram expulsas do campo
para a capital do país, aglomerando-se em habitações precárias, as mesmas que foram abaixo com o terremoto.
Tal como ocorreu com o arroz, o cimento também foi afetado. Antes era produzido no
país, e desde finais de 1980 foi
importado dos EUA, o que obrigou os haitianos a fazerem uso
de tijolos pobremente produzidos com areia. Tais tijolos são
frágeis e acabam afetando a
própria condição das construções. E podemos seguir adiante
para demonstrar que o desmantelamento do Estado haitiano foi obra da "comunidade
internacional".
Somente uma crítica sistemática ao próprio caráter da
ajuda internacional nas últimas décadas poderá ajudar o
Haiti a sair de um atoleiro que
não foi construído apenas por
ele. O que pudemos observar,
além da passividade da própria
comunidade internacional, capaz de mobilizar mundos e fundos, mas incapaz de conversar
com as "dame sara" para imaginar uma saída criativa para a
distribuição da ajuda, foi um
movimento mais do que preocupante.
Milhares de soldados
americanos ocupam, mais uma
vez, o país, como se houvesse
uma situação de guerra civil, e o
Brasil, já imerso há seis anos
em toda essa lama, entra no circo das potências que querem
"ajudar" o Haiti.
Sem termos presente o fato
de que o Haiti é um país soberano, e que os haitianos não são
vítimas passivas de catástrofes
naturais, dificilmente sairemos
do circulo de pobreza e miséria
criada pela própria "comunidade internacional", no qual o
Brasil ocupa um trágico lugar
central.
OMAR RIBEIRO THOMAZ, 44, é professor de
antropologia da Unicamp; OTÁVIO CALEGARI
JORGE , 21, é estudante de ciências sociais na
mesma universidade.
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