|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ENTREVISTA DA 2ª
ROBERT FATTON JR.
Terremoto pode ser uma oportunidade
Para cientista político haitiano, auxílio deveria ser dirigido a criar e fortalecer as instituições nacionais, e não ONGs que atuam no país
A DESTRUIÇÃO provocada pelo terremoto
pode ser transformada em oportunidade
para um novo "contrato social" entre os
haitianos e para a mudança das políticas
prescritas ao Haiti pelos doadores internacionais e organismos multilaterais, afirma Robert Fatton Jr.
Na avaliação do cientista político haitiano radicado
nos EUA, essas políticas reforçaram a debilidade das
instituições nacionais e contribuíram para o declínio
da agricultura local, obrigada a concorrer com importações subsidiadas em seus países de origem.
CLAUDIA ANTUNES
DA SUCURSAL DO RIO
Robert Fatton Jr. é professor
da Universidade da Virgínia e
autor de "A República Predatória do Haiti: a Transição sem
Fim para a Democracia" (sem
tradução no Brasil), entre outros textos sobre o país onde
nasceu e viveu até o final da
adolescência, quando deixou
Porto Príncipe para estudar na
França, a antiga metrópole colonial, e depois nos EUA.
Escreveu ainda quatro livros
sobre política africana, entre
eles "Consciência Negra na
África do Sul" (1986) e "Revolução Passiva no Senegal" (1987).
Quando conversava com a
Folha, o professor foi interrompido pela ligação de um sobrinho que mora em Miami.
"Nos falamos há três horas,
mas ele queria saber se há mais
notícias. A comunicação está
difícil." Por mensagens curtas
de celular ou e-mail, Fatton Jr.
soube que sua família, que vive
em Pétionville, subúrbio nobre
da capital haitiana, havia sobrevivido. "Tiveram sorte. Mas há
amigos que não sei se estão vivos ou mortos."
FOLHA - Como avalia a situação do
Haiti antes do terremoto e o que pode mudar agora?
ROBERT FATTON JR. - A situação
política havia se estabilizado, a
violência havia diminuído, mas
a situação como um todo ainda
era muito precária. Eleições estavam programadas para este
ano [legislativas em fevereiro e
presidencial em novembro],
mas não imagino que possam
ser realizadas. O terremoto pode ser um desastre completo
ou uma oportunidade para mudar algo. O fato de que todos os
haitianos estão diante da catástrofe pode levar a um contrato
social diferente, numa sociedade muito dividida.
Do seu lado, a comunidade
internacional precisa mudar
algumas políticas, que em última instância limitaram a capacidade do Estado haitiano. Hoje, nas operações de socorro,
você pode ver que não há instituições nacionais, só ONGs.
Espero também que a ajuda
internacional dê mais ênfase à
área rural. Embora ela não tenha sido tão afetada pelo tremor, 60% da população ainda
vive lá. O fato de quase 3 milhões de pessoas se aglomerarem em Porto Príncipe em
condições terríveis é consequência de não haver política
agrícola.
FOLHA - Uma das críticas à política
dos EUA para o Haiti é a de que,
quando Jean-Bertrand Aristide foi
reconduzido à Presidência com
apoio militar americano (1994),
uma das condições foi que ele implantasse uma política econômica liberalizante. Isso teria dizimado a
agricultura. É uma crítica correta?
FATTON - Isso é absolutamente
verdade. Mesmo antes da volta
de Aristide, os militares começaram a abrir a economia, em
particular para o arroz americano. Esse arroz, que é subsidiado, era vendido muito mais
barato do que a produção local,
que entrou em declínio. Quando Aristide voltou, ele assinou
um acordo com o FMI e o Banco Mundial consolidando o
projeto neoliberal.
A abertura teve um impacto
devastador na produção de comida e nas pequenas indústrias
que produziam para o mercado
interno. A estratégia continua
sendo a mesma, voltada para a
criação de núcleos urbanos de
confecção de produtos baratos
para exportação aos EUA, principalmente têxteis.
FOLHA - Como as maquiladoras
mexicanas?
FATTON - É o modelo. Na minha visão, não funciona. Já foi
tentado sob [o ditador] Jean-Claude Duvalier [1971-1985] e
levou a uma catástrofe. Não é
que o Haiti não tenha que ter
uma base exportadora, mas ela
não deve ser o motor do desenvolvimento do país. Se esse rumo for mantido, haverá pequenos encraves, com trabalhadores mal pagos, e o campo continuará negligenciado.
FOLHA - O Haiti é dependente de
ajuda internacional. Por que esse dinheiro não produziu resultados na
redução da pobreza, por exemplo?
FATTON - Se você olhar os últimos 15, 20 anos, muito dinheiro foi enviado ao Haiti, mas boa
parte dele ligado a companhias
americanas. Há um círculo vicioso, porque o dinheiro volta
para os EUA. Em meados dos
anos 90, os EUA davam anualmente US$ 3 bilhões ao Haiti,
mas uma parte significativa ia
para os soldados americanos
que estavam lá, para os assessores americanos e para a compra
de produtos americanos. As
doações também evitavam o
Estado e eram dadas a instituições não governamentais, porque a premissa era a de que o
governo era corrupto e ineficaz.
O problema é que ONGs em
geral têm base local, e suas atividades não são filtradas através de um programa nacional
abrangente. E, apesar de haver
ONGs que prestam ótimos serviços a pessoas pobres, há outras que são igualmente corruptas. E não se sabe o quanto
do que recebem vai de fato para
ajuda ao desenvolvimento.
FOLHA - A debilidade do Estado é
fenômeno recente no Haiti ou sempre foi assim?
FATTON - A ideia de um Estado
fraco é complicada. Sob os Duvalier [1957-1985] havia um Estado incompetente e corrupto,
mas forte na repressão. Após a
queda da ditadura, houve uma
série de crises, com eleições
fracassadas e golpes, que minaram o Estado por dentro.
Essa tendência se agravou
sob a orientação dos principais
doadores, que viam o Estado
como um problema. Agora, se a
comunidade internacional tem
intenções sérias de reconstruir
o país, deve contribuir para a
implantação de um serviço público efetivo. Do contrário, haverá alívio, mas não desenvolvimento.
FOLHA - Como avalia o trabalho da
Minustah, a força de paz da ONU?
FATTON - Se não fosse pela Minustah, o país estaria sob caos
ainda maior. Goste-se ou não,
ela é elemento essencial da situação atual. Foi criticada às
vezes por ser muito violenta,
outras vezes por não ser violenta o suficiente.
Não é surpreendente que os
haitianos tenham uma relação
de amor e ódio com a Minustah. Não gostamos de tropas
estrangeiras em nosso solo,
mas sabemos que não podemos
ficar sem ela. O ponto-chave é
como fazer a transição da Minustah para uma força local.
FOLHA - Países como o Brasil, com
posição de comando na Minustah,
podem influenciar políticas de instituições multilaterais para o Haiti?
FATTON - Tenho a esperança de
que possam mover os EUA para uma orientação diferente da
política econômica prescrita
para o Haiti. Se têm o poder para fazer isso, é outra questão.
A Minustah é em grande parte um assunto latino-americano, com o Brasil no centro. Os
EUA gostam disso, porque não
precisavam mandar seus próprios soldados. Isso dá peso ao
Brasil. Mas, pelo discurso de
[Barack] Obama [na última
quinta-feira], haverá de novo
um enorme envolvimento
americano no Haiti.
FOLHA - O senhor disse que o terremoto poderia produzir um novo
contrato social no Haiti. Por quê?
FATTON - O terremoto afetou a
todos, pobres e ricos. Claro que
muitos dos ricos têm mais condições de reagir à catástrofe,
mas há outros que perderam
tudo. Acho que isso pode forçar
a minoria rica a ver a situação
do país com olhos diferentes,
com mais simpatia pelos haitianos comuns. Claro, a experiência histórica não recomenda otimismo, mas a catástrofe é
tão grande que talvez possa
mudar percepções e a maneira
como as pessoas se tratam.
FOLHA - A clivagem entre pobres e
ricos é a principal na sociedade haitiana?
FATTON - Certamente, é a chave. Estamos falando de 5% a
10% da população com algum
recurso, 5% que vão muito bem
e 70%, 80% que não têm nada.
Temos divisões de cor, mas elas
são menores se comparadas à
clivagem entre pobres e ricos.
FOLHA - Mas os ricos ainda controlam o sistema político?
FATTON - Agora não há mais
sistema político, não há governo. A comunidade internacional está no comando, o aeroporto está sob controle dos
americanos. Antes do terremoto, apesar de o governo ter algumas tendências populistas, a
situação estava claramente nas
mãos da minoria rica.
FOLHA - Grupos ligados a Aristide
haviam sido excluídos das eleições
deste ano. Como vê isso?
FATTON - Acho que o presidente [René] Préval conseguiu dividir o Lavalas [movimento de
Aristide] de tal forma que ele
não pode mais mobilizar grandes segmentos da população.
Aristide continua sendo popular, mas o movimento foi dizimado. Ao mesmo tempo, é improvável que as principais potências, EUA e França, aceitem
a volta de Aristide.
FOLHA - E isso o senhor considera
positivo ou negativo?
FATTON - Difícil dizer. Aristide
é uma figura muito carismática, mas ao mesmo tempo há
hoje uma forte oposição a ele,
que não vem só da elite, mas de
setores que costumavam
apoiá-lo. Seu poder diminuiu.
Por outro lado, o terremoto
pode dar a ele uma chance de
se reafirmar, o que vai depender do resultado da operação
de socorro e do que virá depois
dela. Se a operação for mal administrada, pode haver uma
reemergência do Lavalas, se
não necessariamente da figura
de Aristide.
FOLHA - Se Préval foi tão hábil em
dividir o Lavalas, por que seu governo é instável, já no terceiro premiê?
FATTON - O governo se tornou
instável depois dos distúrbios
contra o aumento do preço dos
alimentos [em março de 2008].
Foi um momento de crise. Mas
não acho que você deva olhar
para as trocas de primeiro-ministro como sintoma de instabilidade. Elas geralmente significam apenas transferir pessoas para novos cargos, mas não mudam a estrutura.
Texto Anterior: Eleições: Candidatos pró-Rússia vão disputar 2º turno na Ucrânia Próximo Texto: Frases Índice
|