São Paulo, domingo, 18 de março de 2007

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Pequim e Seul fortalecem ditador, diz dissidente

Norte-coreano que passou dez anos preso critica acordo com regime de Kim Jong-il

Kang Chol-hwan relata fome e execuções em campo de trabalho forçado; para ele, só isolamento total muda a Coréia do Norte

DO ENVIADO A SEUL

Kang Chol-hwan tinha nove anos quando foi levado junto com sua família para um campo de prisioneiros na Coréia do Norte. Nos dez anos em que ficou preso, passou fome, testemunhou execuções e espancamentos e jurou que, se sobrevivesse, dedicaria a vida a denunciar os abusos cometidos pelo regime comunista. Kang foi libertado em 1987 e, quatro anos depois, conseguiu escapar subornando guardas na fronteira com a China, onde ficou escondido seis meses antes de seguir para Seul. Contada no livro "Aquariums of Pyongyang" (aquários de Pyongyang), sua experiência no campo de concentração de Yodok chamou a atenção do presidente dos EUA, George W. Bush, que o recebeu em 2005. Hoje Kang vive com a mulher e o filho de um ano em Seul, onde trabalha como repórter no jornal "Chosun Ilbo". Leia a seguir trechos de sua conversa com a Folha, em um hotel no centro de Seul. (MN)

FOLHA - Por que o sr. foi preso?
KANG CHOL-HWAN
- Fui levado para o campo de prisioneiros de Yodok quando tinha nove anos, em agosto de 1977. Meu avô era um alto burocrata do governo e foi acusado de colaborar com o governo japonês.

FOLHA - Como eram as condições no campo de Yodok?
KANG
- Havia soldados por todos os lados, que nos xingavam o tempo todo. Muita gente era espancada. Era como um campo de concentração nazista, com uma diferença: os prisioneiros não eram mandados para as câmaras de gás, mas morriam de fome ou de tanto trabalhar na lavoura, nas minas de ouro e no corte de lenha. A fome era a pior tortura. Meu cálculo é de que um terço dos prisioneiros morreu de fome. Execuções públicas eram comuns.

FOLHA - Se só o seu avô foi acusado, por que sua família foi presa?
KANG - O critério para as prisões era a relação familiar. Quando alguém era acusado, três gerações de sua família eram presas junto com ele. O avô, seus filhos e seus netos, para evitar rebeliões.

FOLHA - No seu livro, o sr. diz que passou a acreditar que Deus era bom quando o presidente Bush o convidou a ir à Casa Branca e permitiu que o mundo conhecesse sua história. Agora que EUA e Coréia do Norte chegaram a um acordo, o sr. sente que foi usado?
KANG
- Entendo que na política nem sempre é possível fazer o que se quer, mas acredito que uma pressão internacional seria suficiente para dobrar a Coréia do Norte. Infelizmente, não há coerência. O mundo parece não ver que o regime norte-coreano é comparável aos de Hitler e de Stálin e muito pior que o de Saddam Hussein. Estou muito desapontado com as negociações entre os seis países que levou ao acordo de fevereiro. Em vez de cooperação, deveria haver pressão para derrubar o regime.

FOLHA - O que o sr. acha dos projetos conjuntos entre as duas Coréias?
KANG
- Está claro que eles ajudam o regime norte-coreano. O salário mensal dos trabalhadores norte-coreanos nesses projetos é de US$ 60, mas eles só recebem US$ 2. O restante vai para os líderes de suas comunas. O dinheiro acaba sendo usado para fortalecer o regime.

FOLHA - Como a situação no Norte mudou desde que o sr. escapou?
KANG
- Após a morte de Kim Il-sung, em 1994, o sistema de distribuição de alimentos entrou em colapso. Era através dele que o regime controlava o povo. Para não perder o controle, o regime entregou ao Exército a função de controlar a população. Isso criou uma elite de privilegiados: os militares recebem todos os benefícios e o resto da população é abandonada à própria sorte. Foi isso também que levou o regime a querer a bomba atômica. O enfraquecimento da economia atingiu o Exército e, para se defender das ameaças internas e externas, restou desenvolver a bomba.

FOLHA - Há algum foco de oposição na Coréia do Norte?
KANG
- Sim, nas universidades e no Exército há pessoas que gostariam de mudar o regime. Para ter sucesso, elas precisam de apoio externo. Mas a Coréia do Sul e a China fortalecem o regime ao enviar alimentos e combustível.

FOLHA - O ex-presidente sul-coreano Kim Dae-jung crê que a reunificação pode ocorrer em dez anos. Qual a sua previsão?
KANG
- A política de reconciliação do ex-presidente atrasou o processo de reunificação, pois fortaleceu o regime e evitou o seu colapso. Kim Dae-jung diz que [o ditador norte-coreano] Kim Jong-il é um líder de visão. Alguém diria o mesmo hoje sobre Hitler?


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