São Paulo, domingo, 18 de maio de 2008

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ARTIGO

Junta de Mianmar persevera no ostracismo

RENAUD EGRETEAU
DO "MONDE"

Nem a resposta nacionalista da junta militar à catástrofe que Mianmar acaba de sofrer nem sua vontade de seguir uma agenda política própria, ilustrada pelo não adiamento do referendo constitucional de 10 de maio, deveriam surpreender.
Para muitos, essas atitudes parecem suicidas. Mas, pelo contrário, o regime militar dispõe hoje de numerosas cartas que permitirão que perdure e conduza como deseja a instauração de uma democracia civil "disciplinada e próspera".
As duas grandes crises que a junta militar que governa Mianmar desde 1962 sofreu recentemente serviram para reforçar sua posição ante o mundo exterior. Nem os protestos dos monges budistas em 2007 nem o desastre humanitário recente causado pelo ciclone Nargis permitiram à comunidade internacional conquistar vantagens ante a atitude xenófoba e inflexível dos generais.
Explorando com perfeição o ostracismo, especialmente o ocidental, do qual são vítimas há duas décadas, os líderes se protegem em uma máscara isolacionista cômoda, sempre que a pressão externa se agrava.
Em segundo lugar, a prisão domiciliar a que a líder da Liga Nacional pela Democracia (LND), Aung San Suu Kyi, está submetida desde 2003 decapitou a oposição democrática.
Aprisionada entre o mutismo forçado de sua única liderança carismática, a retórica exagerada de ativistas exilados e radicais e uma repressão eficaz, a oposição sofre de uma cruel ausência de renovação.

Minorias
Em terceiro lugar, a marginalização das minorias étnicas -um terço da população de Mianmar- assegura à junta uma estabilidade que, embora frágil, é necessária para manter a forte centralização em torno da etnia majoritária, os bamas.
Divididas em grupos rebeldes que lutam até o fim movidos pela honra (como os karen, shan e naga) e grupos partidários de acordos de cessar-fogo com a junta (kachin, mon, was), as minorias estão afastadas dos monges revoltosos, cuja base de apoio é o coração étnico do país, e isso sublinha a persistência de uma questão étnica que solapa a situação de Mianmar desde a independência.
Em quarto lugar, um certo equilíbrio de forças se mantém no seio do Exército e da junta.
As rivalidades internas causaram fortes divisões nas últimas duas décadas, mas não ameaçaram a unidade do regime. A possibilidade de uma "revolução dos capitães" parece por enquanto longe de factível e, desde a chegada ao poder, a junta conseguiu fazer prontamente seus expurgos.

Apoio chinês
Por fim, o regime atual dispõe, na China, de um apoio político essencial para o programa de transição proposto. Pequim está pronta a endossá-lo.
Frustrados com a atitude intransigente da junta, ao contrário do que pode supor o Ocidente, os chineses aconselharam aos generais que promovessem reformas econômicas, que facilitariam ainda mais aos chineses a penetração no país.
Com isso, o regime se vê em posição favorável para aplicar seu plano de transição política gradual, sob controle do Exército. Os militares compreenderam que é de seu interesse promovê-la, antes que ela lhe seja imposta do exterior.
O referendo de 10 de maio marca uma nova etapa do processo, depois que o regime criou uma convenção para propor os princípios de uma nova Constituição, que o país espera desde 1988, e cujo texto foi redigido por uma comissão indicada pelo regime.
O resultado deve colocar em curso de adoção uma Carta que instaurará um regime presidencialista "civil" no qual as Forças Armadas continuarão predominantes. Um quarto dos assentos nos Legislativos nacional e estaduais serão de militares (e o resto será disputado em eleições, em 2010).
O chefe de Estado deve ter 15 anos de experiência militar (o que descarta Aung San Suu Kyi, mas não os demais nomes da LND), e os eleitos não poderão estar "ligados" ao exterior por casamento ou aliança nacional.
O texto conserva para o Exército o direito de retomar o poder em caso de ameaça à unidade ou integridade e de bloquear emendas constitucionais.
A nova Constituição de Mianmar, assim, parece imperfeita e pouco democrática, mas é a única carta política disponível no momento. O país se dirige, dessa maneira, a uma "democracia disciplinada", nos termos que a junta mesma define, que talvez venha a ser a primeira etapa de um longo percurso para a democracia real.
É necessário que o impulso provenha do interior do regime, que a oposição repense sua estratégia e que a comunidade internacional aproveite essa oportunidade e renuncie ao isolamento do país, porque é ela que paga o preço quando vê fechadas as portas mesmo nos casos em que deseja prestar assistência, como agora.


RENAUD EGRETEAU é pesquisador do Centro de Estudos e de Pesquisas Internacionais, em Paris

Tradução de PAULO MIGLIACCI



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