São Paulo, domingo, 18 de junho de 2006

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Estado falido, Somália sucumbe a milícias

Karel Prinsloo/Associated Press
Milícia da União de Tribunais Islâmicos controla multidão na capital


Paupérrimo, país africano vive guerra civil e assiste ao desaparecimento de todas as instituições de governo desde 1991

Nação onde expectativa de vida é de 48 anos e 62% são analfabetos vira palco de disputa entre senhores da guerra e tribunais islâmicos

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Imagine que um ladrão tente arrombar a porta de sua casa. Você então pega o telefone e liga para a polícia. Inútil. O telefone, há anos, só funciona de vez em quando em boa parte do país. E também não há nenhuma polícia estruturada.
O exemplo se aplica de modo concreto à Somália, país no nordeste da África um pouco maior que Minas Gerais, 8,8 milhões de habitantes, expectativa de vida de apenas 48 anos, 62% de analfabetos e caso agudo no estudo publicado no mês passado pela revista americana "Foreign Policy" sobre os Estados falidos.
Na relação de 60 países nessa deprimente condição (o Brasil não faz parte do grupo), a Somália é o único em que não há mais nenhum serviço público e nenhuma força de segurança. Empata com a Costa do Marfim nos itens de máxima deslegitimização do governo e fracionamento das elites.
Ela nasceu em 1960, com a junção de protetorados italiano e britânico. E começou a se esfacelar após a queda da ditadura pró-soviética de Siad Barre, em 1991. Desde então, uma guerra civil intermitente matou dezenas de milhares, agravando a fome endêmica e desrespeitando direitos humanos, do assassinato ao estupro.
Território em que nada deu certo -por falta de condições, as Nações Unidas se retiraram em 1995, e as tropas americanas, dois anos antes-, a Somália voltou ao noticiário há duas semanas, quando milícias muçulmanas se apoderaram da capital, Mogadício, 1 milhão de habitantes, desalojando os senhores da guerra que até então dividiam entre eles o butim.
Senhor da guerra é um chefe tribal que destruiu o Estado e em seguida ofereceu, com suas milícias, proteção a um conjunto desorientado de cidadãos.
As milícias muçulmanas também são algo complicado. Chamam-se, oficialmente, União de Tribunais Islâmicos e são integradas por 11 correntes, que a partir de 1992 passaram a resolver conflitos nas mesquitas, em razão do colapso do Legislativo e do Judiciário. Tornaram-se também cartório, para o registro de casamentos ou venda de veículos e imóveis.
Mas a France Presse revela que a população de Mogadício sentiu-se segura com a derrota dos senhores da guerra. Um cidadão disse, por exemplo, que entre sua casa e seu comércio, ele, um privilegiado que tem automóvel, era detido em 12 pedágios por milicianos que cobravam o direito de passagem. A extorsão também vitimava qualquer dona de casa, por vezes assaltada em troca de comida ou dinheiro para "ter o direito" de voltar viva para casa.
Os pedágios e os assaltantes desapareceram. O problema é saber até onde os tribunais islâmicos pretendem chegar.
Segundo o governo americano, quatro executantes dos atentados de 1998 contra as embaixadas dos Estados Unidos no Quênia e na Tanzânia - morreram 224 pessoas- saíram da Somália e para lá voltaram sem serem incomodados.

Temor internacional
O principal líder do grupo, xeque Sherif Ahmed, tem dito a diplomatas ocidentais que não quer criar uma República islâmica. Mas afirmou a um jornal saudita que "daria uma lição aos americanos" caso eles intervenham militarmente.
De qualquer modo, não há provas que justifiquem o temor de que seu grupo seja uma espécie de Taleban africano, ou que a Somália se transforme numa cópia do Afeganistão.
Mas os Estados Unidos e os países vizinhos se movimentam. Do lado americano, foi convocada uma reunião, em Nova York, do Grupo de Contato sobre a Somália, encarregado de encontrar uma solução conciliatória e que é formado pela Suécia, Noruega, Reino Unido, Itália, Tanzânia e ainda um representante da ONU.
Depois de ter apoiado os senhores da guerra em nome de um mal menor, a administração Bush não quer entrar isoladamente na Somália.
Os países africanos da região formaram há dois anos um grupo, a Autoridade Intergovernamental em Desenvolvimento (Igad, sigla em inglês) que também se reuniu esta semana.
O ministro das Relações Exteriores do Quênia, Raphael Tuju, criticou indiretamente os Estados Unidos por seu apoio aos senhores da guerra (seriam US$ 100 mil mensais) e qualificou a tomada de Mogadíscio pelas milícias islâmicas de vitória de um "levante popular".
O Igad bem que tentou estabilizar a Somália por meio da diplomacia e da pressões sobre os clãs, que atuam sem tomar conhecimento das fronteiras herdadas do colonialismo europeu. Funcionou só em parte.
Em outubro de 2004 elegeu-se presidente do Governo Nacional de Transição, no plenário de um Parlamento escolhido com muitas dificuldades logísticas, Abdullahi Yusuf.
Como a capital, Mogadício, não era segura, a eleição se deu em Nairobi, a capital queniana.
Ele e seu primeiro-ministro, Ali Mohamed Gedi, nunca despacharam na capital somali. Estão baseados em Baidoa, a 200 km mais a noroeste, onde os senhores da guerra e os tribunais islâmicos não ameaçam suas precárias legitimidades.


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