São Paulo, quarta-feira, 18 de junho de 2008

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ANÁLISE

Todos querem protestar e ninguém negocia

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

Como um dos principais pesquisadores da Argentina, o sociólogo Manuel Mora y Araujo vive de entender a sociedade argentina. Não obstante, sente-se compelido a confessar, em artigo para o site Infolatam:
"Não é fácil entender esta sociedade que sabe protestar melhor que qualquer outra mas não sabe encontrar uma fórmula para gerar consensos sociais mínimos e estáveis e traduzi-los em governabilidade".
Bingo. Eis, no fundo, a raiz da crise: todo mundo quer protestar, inclusive o governo, que acusa a oposição de "golpismo", mas ninguém quer ceder um milímetro para gerar os "consensos mínimos". Ao contrário, o que ocorre é uma escalada de protestos, manifestações e contramanifestações que tende a chegar a um pico hoje, quando o governo promove sua própria manifestação, liderada pelo ex-presidente Néstor Kirchner, enquanto os líderes ruralistas atacam com fechamento do comércio, mobilização nas cidades e apagões, entre outras formas de protesto.
Resumo político da situação, na palavra de Roberto Lavagna, responsável por tirar o país da grande crise anterior, a de 2001, como ministro da Economia: "O governo não quer dialogar, e a oposição revela um horrível oportunismo".
Lavagna está se referindo ao fato de que a crise, embora iniciada pelo protesto dos ruralistas contra o aumento da tributação sobre exportações de soja e oleaginosas, transformou-se claramente em crise política.
A oposição estava paralisada, desarticulada pelo fracasso do peronismo menemista (do ex-presidente Carlos Menem) e do radicalismo, alternativa até então ao peronismo. A oposição não-peronista, aliás, continua semiparalisada. Não emergiram na crise, a não ser perifericamente, nem o prefeito de Buenos Aires, Maurício Macri, estrela em ascensão da direita, nem Elisa Carrió, de centro-esquerda, segunda colocada na eleição presidencial de 2007.
A novidade é velha, velhíssima. Chama-se Eduardo Duhalde, um dos presidentes da fileira dos que entraram e saíram rapidamente da Casa Rosada, na esteira da crise de 2001. Mentor de Kirchner, tornou-se seu maior inimigo e foi por ele virtualmente esmagado na disputa interna peronista.
O movimento do campo lhe serviu de balão de oxigênio. Tanto que Luis D'Elía o acusa de ser "chefe da conspiração" para um "golpe de Estado econômico". D'Elía é um líder dos piqueteiros (movimento social com parentesco com os sem-terra e sem-teto do Brasil), mas que o governo Kirchner cooptou e hoje lidera a tropa de choque que dissolve à força as manifestações oposicionistas.
Quanto ao fato original da crise, as retenções sobre exportações, tem-se o mesmo diálogo de surdos. Para o governo, o que os ruralistas não querem é dividir a renda auferida com as exportações de commodities, que se tornaram extremamente rentáveis com a disparada de preços. Por isso, impôs um aumento nas retenções já cobradas antes do campo.
O novo nível de retenções é, no entanto, "claramente confiscatório", depõe Lavagna, com a relativa isenção de quem acaba de publicar carta aberta ao governo e aos ruralistas, pedindo o diálogo e fazendo propostas que ele chama de técnicas para resolver o foco inicial do que virou uma crise política.
A proposta passa por fixar um teto de 50% para as retenções (contra os 95% que, segundo Lavagna, configuram o "confisco") e por diferenciar pequenas e médias propriedades das grandes. Para não falar de programas de médio e longo prazo, que não conseguem a menor vaga na agenda em função da crise conjuntural.
Lavagna admite, porém, que a crise "excede os limites do campo" e só tomou o tamanho que tem hoje devido a uma "acumulação de erros econômicos, institucionais e de relações internacionais. Cada um deles, por si só, não causaria a crise. Mas dois anos de erros acumulados fizeram com que o problema das retenções fosse a gota que encheu o copo".
Daí, no entanto, a agitar o fantasma de 2001 e sua sucessão de presidentes entrando e saindo da Casa Rosada vai imensa distância. Primeiro, porque o governo pode ter perdido apoio, mas não está desmoralizado como toda a classe política ficou há sete anos. Segundo porque a situação econômica se deteriora, mas está longe, muito longe, de se aproximar do colapso de 2001.
Resta, portanto, concordar com o sociólogo Mora y Araujo: "Não é fácil entender um governo ganhador faz poucos meses de uma eleição presidencial, que dispunha de forte respaldo na opinião pública, que tinha a sua disposição uma economia de produção, um mercado mundial demandando com avidez seus produtos, recursos suficientes para exercer o poder com uma comodidade que a muitos já parecia excessiva, mas era inquestionável".


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