São Paulo, quinta-feira, 18 de junho de 2009

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depoimento

"Sem ninguém para ver, que será de nós?"

RAUL JUSTE LORES
ENVIADO ESPECIAL A TEERÃ

A Primavera de Teerã está nas ruas, mas não posso usar nem celular nem internet em minhas últimas oito horas na cidade. Está tudo bloqueado.
Pensei que fosse problema no hotel, então fui à casa de um amigo em outro bairro. E depois à de outro. Ambos desconectados.
Em teoria, não posso nem circular. O governo cancelou a credencial dos jornalistas estrangeiros, e sou aconselhado a deixar o país o quanto antes.
O trânsito é mínimo. Por medo de mais distúrbios e das milícias pró-Ahmadinejad que circulam armadas em motos pela cidade, várias lojas e empresas fecharam às 16h.
Há viaturas da polícia diante do hotel, um dos poucos cinco estrelas da cidade, todos abertos antes da revolução de 1979. Como cartões de crédito internacionais não são aceitos no Irã, preciso pagar tudo em dólar.
O moço que carrega minha mala sussurra: "Isto é o início de um golpe de Estado, tem militar por todo lado, querem vocês jornalistas fora daqui".
Na recepção, outro funcionário emenda: "Quando não tiver mais ninguém de fora para ver, o que será de nós?".
Antes de partir, aproveito para visitar o Museu de Arte Contemporânea de Teerã, que fica ao lado do meu hotel.
Sou o único visitante. É talvez uma das melhores coleções de arte do Oriente Médio, com obras de Picasso, Van Gogh, Gauguin, Magritte e vários artistas influentes nos anos 70, como LeWitt e Warhol.
As 400 obras foram escolhidas pela então imperatriz Farah Diba. Ela foi deposta em 1979 junto com seu marido, o xá Reza Pahlevi e vive no exílio em Paris.
De 1979 até hoje, o museu só adquiriu mais cinco obras de estrangeiros. Na gestão Ahmadinejad, o orçamento foi reduzido -ele transformou várias galerias de arte em locais de oração.
No acervo, há dois quadros pintados por Mir Hossein Mousavi, o atual líder da oposição. Mas eles não estão em exibição.
Como o Irã não é a Arábia Saudita, há bienais de arte, de cartuns, de escultura. As funcionárias, todas cobertas de xador preto, obrigatório no funcionalismo público, explicam que, em dias normais, o museu recebe até 2.000 pessoas.
Mas contam que diversos quadros com nudez, obras de Francis Bacon a David Hockney, encontram-se esquecidos em um depósito, censurados pelo regime.
"É uma pena, afinal arte não deveria estar escondida", dizem as jovens, meio encabuladas.
Em 1979, quando os aiatolás chegaram ao poder, o Irã tinha 36 milhões de habitantes, e 53% da população vivia na zona rural. Hoje são 66 milhões, 70% vivem em cidades.
Muita coisa mudou. Amigos ligam ao telefone do hotel para se despedir. Contam que continuarão a me enviar vídeos e fotos das manifestações e da repressão "para que a Primavera de Teerã não seja esquecida".
Chego a Dubai. Leio que o governo iraniano reduziu a banda larga para impedir que essas imagens circulem no exterior. O povo continua na rua. O que será deles?


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