São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 2006

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AMÉRICA LATINA

Levantamento indica 41 mortes na Grande Buenos Aires em 2005

Argentina vive onda de violência contra idosos

FLÁVIA MARREIRO
DE BUENOS AIRES

Na caixa de madeira, com cadeado, José dell Uomo guardava o que conseguia. Juntava dinheiro para visitar a Itália pela primeira vez desde 1947, quando deixou o país para viver na Argentina.
"Não sei quanto tinha, mas juntava há anos", conta Uomo, 79, mostrando nos braços e no rosto os sinais do ataque. Há 15 dias, três homens pularam o muro da casa no bairro pobre da localidade de Francisco Solanas, na Grande Buenos Aires, bateram nele e na mulher e levaram a poupança da viagem.
Ele diz ter ouvido falar na onda de violência contra velhos no país, mas não imaginou que fosse ser vítima: quase não sai de casa e recebe cerca de 200 pesos (R$ 138) de pensão mais 300 pesos de um aluguel.
O noticiário televisivo e impresso exibe diariamente os números da modalidade de crime -o governo se recusa a passar estatísticas, mas admite que o tema "preocupa": em 2005, foram 41 mortes de idosos na Província de Buenos Aires contabilizadas pelo jornal argentino "Clarín". Segundo a Telam, a agência de notícias oficial, foram mais de 1.200 assaltos no mesmo período.
A onda instalou um debate sobre os limites morais do crime na capital mais velha, proporcionalmente, da América Latina: 17% dos habitantes de Buenos Aires têm mais de 65 anos, mais que o dobro da taxa de São Paulo (quase 7%).
O clássico "Diário de la Guerra del Cerdo" (1968), do amigo de Jorge Luiz Borges, Adolfo Bioy Casares, foi lembrado por um colunista. "Hordas de atléticos rapazes percorrem as ruas de Buenos Aires à caça de velhos débeis e lentos", narra o livro.
Aos fatores que levam os idosos de toda parte a serem alvo de ladrões (frágeis, abertos a quem oferece ajuda) se junta mais um na Argentina: a maior expectativa dos bandidos de encontrar somas embaixo do colchão.
"Levando em conta as sucessivas crises, é comum que essas pessoas não tenham confiança em banco. Esse é um tema que nos preocupa e nos ocupa, mas não é alarmante", diz Daniel Rodriguez, comissário-maior e porta-voz da Policia Federal.
Na mais recente e mais grave crise que o país já passou, iniciada em 2001, o governo restringiu as movimentações bancárias - o "corralito". Em 2004, um estudo da American Express mostrava que, em 82% dos lares argentinos, há pelo menos uma pessoa que mantém poupança caseira por falta de confiança no governo ou no sistema financeiro.

Tortura
É esse o dado que tem transformado as ações dos ladrões em show de horrores, com espancamento e até tortura. "Eles começaram a me bater perguntando onde eu guardava o dinheiro", disse à Folha José Cuadras, 76, na sexta-feira, na clínica onde está internado em Quilmes, na região metropolitana de Buenos Aires.
Na quarta-feira, um casal e um homem se apresentaram na casa dele como amigos do filho mais velho. Cuadras foi espancado, acumulou líquido nos órgãos internos e estava rouco de tanto que apertaram sua garganta.
"Não havia muito dinheiro. Gastamos na reforma da casa, que é tão linda como as outras da rua", diz Tamara Cuadras, interrompendo o marido. "Eles sabiam que eu não estava, que tinha ido para a casa de praia. José confia demais", afirma ela, que é 16 anos mais nova que o marido.
"A casa é segura, eu fui tonto", martiriza-se Cuadras, sob olhares da mulher. Ele enumera as jóias que os ladrões levaram: "A cada ano de casamento, eu dei a ela uma pulseira de ouro, de 6 gramas cada uma. Eles levaram umas 15. Calculem quanto deve valer? Nossas alianças de verdade, que deixávamos guardadas por segurança, levaram. Uma medalhinha de namoro, um anel que tinha um rubi". "O que importa é que ele está vivo", diz Tamara.
Um casal italiano em Boedo, bairro classe média de Buenos Aires, foi morto a tiros e a facadas em dezembro. Antonio Ferro, 71, atacado por ladrões no fim de janeiro, ainda está no hospital: foi torturado com água fervente. Uma mulher de 91 anos foi quase asfixiada e recebeu jatos de spray inseticida no rosto na quinta-feira passada. No mesmo dia, Antonio Lamensa, italiano de 91 anos, recebeu uma facada de um ladrão.
Tanto o governo nacional como o da Província de Buenos Aires afirmaram mover campanha de prevenção com os idosos, distribuindo folhetos com dicas de segurança. A Polícia Federal gravou um vídeo que simula situações de risco para ser exibido em clubes de aposentados.
Para a PF argentina, não é coincidência que muitos dos atacados sejam de origem européia. Muitos recebem euros ou dólares da família ou a aposentadoria é mais gorda nessas moedas.
Na cama de casa, com parte do corpo direito paralisado, José dell Uomo diz desconfiar de que foi a antiga empregada que informou aos ladrões de sua poupança para ir à Itália. Ainda tem esperança de ir? "Esperança eu tenho...", sorri. "Mas é que só para chegar até ao banheiro eu levo dez minutos."


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