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AMÉRICA LATINA
Levantamento indica 41 mortes na Grande Buenos Aires em 2005
Argentina vive onda de violência contra idosos
FLÁVIA MARREIRO
DE BUENOS AIRES
Na caixa de madeira, com cadeado, José dell Uomo guardava o
que conseguia. Juntava dinheiro
para visitar a Itália pela primeira
vez desde 1947, quando deixou o
país para viver na Argentina.
"Não sei quanto tinha, mas juntava há anos", conta Uomo, 79,
mostrando nos braços e no rosto
os sinais do ataque. Há 15 dias,
três homens pularam o muro da
casa no bairro pobre da localidade de Francisco Solanas, na Grande Buenos Aires, bateram nele e
na mulher e levaram a poupança
da viagem.
Ele diz ter ouvido falar na onda
de violência contra velhos no país,
mas não imaginou que fosse ser
vítima: quase não sai de casa e recebe cerca de 200 pesos (R$ 138)
de pensão mais 300 pesos de um
aluguel.
O noticiário televisivo e impresso exibe diariamente os números
da modalidade de crime -o governo se recusa a passar estatísticas, mas admite que o tema
"preocupa": em 2005, foram 41
mortes de idosos na Província de
Buenos Aires contabilizadas pelo
jornal argentino "Clarín". Segundo a Telam, a agência de notícias
oficial, foram mais de 1.200 assaltos no mesmo período.
A onda instalou um debate sobre os limites morais do crime na
capital mais velha, proporcionalmente, da América Latina: 17%
dos habitantes de Buenos Aires
têm mais de 65 anos, mais que o
dobro da taxa de São Paulo (quase
7%).
O clássico "Diário de la Guerra
del Cerdo" (1968), do amigo de
Jorge Luiz Borges, Adolfo Bioy
Casares, foi lembrado por um colunista. "Hordas de atléticos rapazes percorrem as ruas de Buenos
Aires à caça de velhos débeis e lentos", narra o livro.
Aos fatores que levam os idosos
de toda parte a serem alvo de ladrões (frágeis, abertos a quem
oferece ajuda) se junta mais um
na Argentina: a maior expectativa
dos bandidos de encontrar somas
embaixo do colchão.
"Levando em conta as sucessivas crises, é comum que essas pessoas não tenham confiança em
banco. Esse é um tema que nos
preocupa e nos ocupa, mas não é
alarmante", diz Daniel Rodriguez,
comissário-maior e porta-voz da
Policia Federal.
Na mais recente e mais grave
crise que o país já passou, iniciada
em 2001, o governo restringiu as
movimentações bancárias - o
"corralito". Em 2004, um estudo
da American Express mostrava
que, em 82% dos lares argentinos,
há pelo menos uma pessoa que
mantém poupança caseira por
falta de confiança no governo ou
no sistema financeiro.
Tortura
É esse o dado que tem transformado as ações dos ladrões em
show de horrores, com espancamento e até tortura. "Eles começaram a me bater perguntando
onde eu guardava o dinheiro",
disse à Folha José Cuadras, 76, na
sexta-feira, na clínica onde está
internado em Quilmes, na região
metropolitana de Buenos Aires.
Na quarta-feira, um casal e um
homem se apresentaram na casa
dele como amigos do filho mais
velho. Cuadras foi espancado,
acumulou líquido nos órgãos internos e estava rouco de tanto que
apertaram sua garganta.
"Não havia muito dinheiro.
Gastamos na reforma da casa, que
é tão linda como as outras da
rua", diz Tamara Cuadras, interrompendo o marido. "Eles sabiam que eu não estava, que tinha
ido para a casa de praia. José confia demais", afirma ela, que é 16
anos mais nova que o marido.
"A casa é segura, eu fui tonto",
martiriza-se Cuadras, sob olhares
da mulher. Ele enumera as jóias
que os ladrões levaram: "A cada
ano de casamento, eu dei a ela
uma pulseira de ouro, de 6 gramas cada uma. Eles levaram umas
15. Calculem quanto deve valer?
Nossas alianças de verdade, que
deixávamos guardadas por segurança, levaram. Uma medalhinha
de namoro, um anel que tinha um
rubi". "O que importa é que ele
está vivo", diz Tamara.
Um casal italiano em Boedo,
bairro classe média de Buenos Aires, foi morto a tiros e a facadas
em dezembro. Antonio Ferro, 71,
atacado por ladrões no fim de janeiro, ainda está no hospital: foi
torturado com água fervente.
Uma mulher de 91 anos foi quase
asfixiada e recebeu jatos de spray
inseticida no rosto na quinta-feira
passada. No mesmo dia, Antonio
Lamensa, italiano de 91 anos, recebeu uma facada de um ladrão.
Tanto o governo nacional como
o da Província de Buenos Aires
afirmaram mover campanha de
prevenção com os idosos, distribuindo folhetos com dicas de segurança. A Polícia Federal gravou
um vídeo que simula situações de
risco para ser exibido em clubes
de aposentados.
Para a PF argentina, não é coincidência que muitos dos atacados
sejam de origem européia. Muitos
recebem euros ou dólares da família ou a aposentadoria é mais
gorda nessas moedas.
Na cama de casa, com parte do
corpo direito paralisado, José dell
Uomo diz desconfiar de que foi a
antiga empregada que informou
aos ladrões de sua poupança para
ir à Itália. Ainda tem esperança de
ir? "Esperança eu tenho...", sorri.
"Mas é que só para chegar até ao
banheiro eu levo dez minutos."
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