São Paulo, domingo, 19 de março de 2006

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COMENTÁRIO

Cada dia é um novo suplício para os iraquianos

KAREN MARÓN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Já se vão longe os ecos das manifestações maciças contra a invasão do Iraque promovidas nas capitais do mundo nos dias que se seguiram ao 20 de março de 2003.
Hoje, essa parte do mundo, em muitos casos, se pergunta, ansiosa, onde vai estourar o próximo conflito -na Síria? No Irã? Na Coréia? Para os iraquianos, entretanto, a guerra está em suas casas, mentes, corações. Foi enganosa a declaração de 1º de maio de 2003, que falou do fim da guerra e que os meios de comunicação repetiram, sem grandes cuidados. A guerra se vive diariamente, como um estigma que atormenta a população do Iraque. Porque a bênção deles, reiteram os iraquianos, é também seu castigo. "Se não tivéssemos o petróleo, jamais nos teriam invadido."
Cada dia é um novo suplício. Isso é algo que se manifesta nos rostos, na postura cansada dos corpos, no olhar lúgubre dos adultos e na tristeza precoce das crianças.
Três anos atrás, a caixa de Pandora se abriu, e dela saíram todos os males. Cada retorno ao Iraque constitui uma tortura para a alma. O espírito não pode permanecer impávido diante da obscenidade do conflito. Obsceno é o termo mais exato para qualificar a situação no Iraque, depois de cinco viagens ao país e quase 12 meses nele nos últimos dois anos.
É uma obscenidade que arrepia, que repugna, que entristece. Depois de três anos da democracia prometida, esta não passa de um recurso discursivo que não convence. Nas ruas de Bagdá as pessoas repetem: "Preferimos Saddam, e não o ocupante". E isso não o absolve de suas atrocidades, que foram das mais cruéis.
Mas os "Martelos de Ferro" e "Ciclones Ascendentes" se multiplicam e fazem suas vítimas de maneira descarada. Assim foram batizados, nesses 36 meses, alguns dos massacres de iraquianos comandados pelas forças multinacionais, deixando um saldo de mais de 150 mil vítimas civis que nada sabem de armas químicas ou rotas do petróleo.
Se o papel do Exército dos EUA consiste em manter a segurança no mundo em favor da economia americana, como disse o major Ralph Peters, e se, "para alcançar esse objetivo, estamos dispostos a matar um número aceitável de pessoas", qual é o número aceitável de vítimas que terá que ser feito no Iraque? "Queremos um Iraque sem iraquianos", eu ouvi repetidas vezes da boca dos protagonistas nestes três anos, a ponto de a idéia já não soar tão descabida quanto antes.


A bênção, dizem os iraquianos, é também seu castigo. "Se não tivéssemos o petróleo, jamais teriam invadido"

Prova disso são os desaparecimentos, as prisões arbitrárias, as centenas de mortos em circunstâncias suspeitas, as vítimas causadas pela destruição do sistema de assistência à saúde, da rede hidráulica e a devastação das plantações.
Da rede de água e esgotos, 40% foi destruída, resultando numa falta de água potável. Mais de um 250 mil crianças não foram vacinadas e correm o risco de morrer de doenças que poderiam ser evitadas. A freqüência escolar caiu em 65%, e o urânio empobrecido aumentou os casos de câncer em 1.200%.
É normal que, depois de três anos de ocupação, ainda ocorram cortes de energia elétrica a cada duas horas, as escolas estejam semidestruídas, os lixões a céu aberto se multipliquem e a falta de medicamentos tenha aumentado, juntamente com o número de crianças com disenteria? Os iraquianos falam de um plano sistemático de castigo e morte. Quando se é testemunha dos fatos, começa-se a duvidar que essa não seja uma realidade programada.

1991
"Essa é uma pergunta difícil. Mas, sim, achamos que valeu a pena", disse a ex-secretária de Estado norte-americana Madeleine Albright, quando, em 1996, lhe perguntaram sobre a morte de 500 mil crianças no Iraque.
É que esta guerra começou em 17 de janeiro de 1991, com os primeiros ataques norte-americanos ao Iraque, que fizeram 200 mil vítimas. O embargo foi o assassino que espreitava em silêncio e matava sem parar, fazendo com que meio milhão de iraquianos morressem entre 1991 e 1998 de desnutrição e falta de medicamentos. Em 2006, as cifras se multiplicaram, e o assassino já não é o embargo, mas a ocupação, que fumiga os iraquianos com armas químicas, como o fósforo branco empregado em Fallujah.
E fumigar não é uma palavra escolhida arbitrariamente. Rush Limbaugh, conselheiro de Bush, disse: "É possível que tenhamos que utilizar outras armas, além das convencionais, contra essas pessoas. É como se você quisesse se livrar de suas baratas com inseticida". Essas palavras dão a medida do cotidiano mais terrível suportado pelos iraquianos, que, sob o olhar do ocupante, perderam sua condição humana.

A população rejeita grupos islâmicos como a Al Qaeda, que os iraquianos vêem como invenção dos EUA

Enquanto a ocupação fez o estado jurídico das mulheres retroceder em séculos, foi destruída a tessitura social, econômica, sanitária e educativa e aniquilada a cultura. Foi desencadeada uma onda de mortes ilegais de rebeldes, nacionalistas e opositores da ocupação, além de civis que tenham integrado o partido Baath, de Saddam.
Mas o interesse em provocar uma guerra civil é o desafio ao qual os iraquianos resistem, para que não se proceda à programada balcanização da sociedade e da cultura islâmica e árabe.
Os iraquianos estão submersos numa onda de atentados nos quais se suspeita da ingerência da inteligência dos EUA, da Grã-Bretanha e de Israel, de agentes árabes, dos chamados loucos desvairados do Grupo de Operações Preventivas Pró-ativas, o P2OG de Rumsfeld, criado para estimular a reação terrorista. Procura-se usar a guerra civil como parte da estratégia de retirada. "Rejeitamos a guerra civil", me disseram 90% dos iraquianos consultados.
O próprio Saddam Hussein, homem mais amado e mais odiado do país, exortou os iraquianos, do tribunal em que está sendo julgado, a não caírem em uma guerra fratricida que os levaria às trevas.
A limpeza étnica está em curso. Os curdos árias de religião sunita, apoiados por Israel e CIA e assentados na região de Kirkuk -rica em petróleo-, levam a cabo o inverso da arabização promovida pelo regime de Saddam. Foram muitos os depoimentos de árabes sobre torturas -pude ver suas conseqüências- cometidas por curdos para que deixassem o norte do país, um processo que já inclui a expulsão e matança de caldeus católicos e turcomanos.
Desatada a "guerra das mesquitas" no último mês, as conseqüências até agora foram a destruição de 90 templos sunitas e centenas de mortos e feridos. Foi denunciado, dentro e fora do Iraque, que a colaboração da inteligência dos EUA e do Irã -que, dentro do território iraquiano, trabalham em conjunto- seria a responsável por essas matanças, com o objetivo de gerar o caos.

"Resistência"
Os erros estão à vista. Os ocupantes e seus sequazes matam, torturam e violam todos os direitos humanos, distanciando-se irremediavelmente da população, que rechaça cada vez mais a infame ocupação e decide colaborar com as crescentes forças de resistência. Ao mesmo tempo, ela rejeita a ingerência de grupos islâmicos como a Al Qaeda, que nada tem em comum com a situação iraquiana e que os iraquianos vêem como invenção dos EUA.
Durante a invasão, os EUA erroneamente identificaram todos os sunitas com o Baath. Vem daí a aliança estratégica com o Irã, que fez com que mais de 2 milhões de persas se instalassem no país. Há bairros de Bagdá onde o rial é moeda de câmbio, e o farsi, língua corrente, enquanto, em nível mundial, os EUA vêem nos iranianos seus inimigos mais temíveis.
Nos últimos oito meses os EUA decidiram dialogar com a resistência, composta de vários grupos unificados -desde o momento em que admitiram que, com sua estratégia de guerrilha, ela estava pondo em xeque o Exército supostamente mais poderoso do mundo. "O poder está com a resistência", disse Ahmed, de Samarra, nas eleições de 15 de dezembro. A prova foi que, quando a resistência garantiu que nesse dia não haveria atentados, o país viveu uma paz rara.
Depois de três anos de ocupação, as palavras de Hakima ecoam em minha mente: "Suplico aos soldados americanos que me devolvam meus filhos. Por favor, não os torturem mais", disse diante dos portões da prisão de Abu Ghraib. E também recordo Ali, 4, sem sua perna e seu braço esquerdos. E Ahmed, Jassim, Mohammed e todas as vítimas desta guerra e de todas as guerras que a humanidade trava, inconsciente.

A jornalista argentina Karen Marón é especializada em cobertura de conflitos armados e esteve no Iraque escrevendo sobre a guerra, a ocupação e as eleições

Tradução de Clara Allain


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