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ENTREVISTA DA 2ª
JOHN ALLEN JR.
Crise expõe paradoxo do papado de Bento 16
Para vaticanista americano que biografou o papa quando ele ainda era o cardeal Ratzinger, Santa Sé é inepta ao tratar de escândalos
O PAPADO DE Bento 16, que completa hoje
cinco anos, é um grande paradoxo. De um
lado, a mensagem de amor divino, compaixão e humildade que ele tenta transmitir aos fiéis e a um público mais amplo. De outro, a
inépcia do Vaticano, que em idas, vindas e declarações
dúbias impede essa mensagem de ser ouvida.
Não há exemplo melhor desse paradoxo do que o
atual escândalo de pedofilia na Igreja Católica e o modo como ele engolfou o atual pontificado, avalia o vaticanista John Allen Jr.
LUCIANA COELHO
DE GENEBRA
Uma das vozes mais ponderadas no turbilhão de críticas e
contra-ataques, o jornalista
americano que biografou Bento 16 quando ele era o cardeal
Joseph Ratzinger vê desse embate um saldo que julga "estapafúrdio": o homem que mais
combateu os abusos por sacerdotes é agora o rosto da inoperância da igreja ante os crimes.
"Bento 16 pensa em séculos,
e isso lhe dá liberdade, pois ele
não se preocupa com as manchetes de hoje", diz.
Em tempos de imediatismo,
porém, o erro tático do Vaticano pode ter efeito perpétuo.
Prevaleceriam então não os
preceitos filosóficos que o "papa professor" quer legar ao
mundo, mas os escândalos e as
gafes.
Allen conversou com a Folha
por telefone de Roma na sexta-feira, antes de seguir para Malta, onde acompanhou a visita
papal do fim de semana.
FOLHA - Quando Bento 16 se tornou papa, suas declarações apontavam para uma abordagem mais retilínea do catolicismo, focada nos
"verdadeiros fieis". Essa ideia funcionou?
JOHN ALLEN JR. - Não sei se concordo que fosse esse exatamente o projeto, mas, se a pergunta
é se ele conseguiu alcançar os
católicos mais fiéis, acho que
sim. Até aí qualquer papa pode
fazê-lo. A dúvida é se ele conseguiu alcançar alguma outra
pessoa, e eu diria que o grande
paradoxo deste pontificado é
que ele tem uma mensagem
muito atraente para o mundo lá
fora, mas que infelizmente ninguém está ouvindo. Afinal, para
o mundo lá fora este é um papado definido por seus desastres,
que pula de crise em crise. A
dos abusos sexuais é só o exemplo mais recente.
FOLHA - O problema de comunicação deste papado não aliena os fiéis
e os demais?
ALLEN - Depende de como você
define os fiéis. Claramente, há
fiéis que veem essas críticas como uma campanha difamatória, então é capaz que tudo isso
os esteja tornando até mais
fiéis ao papa.
Para a maioria do mundo, no
entanto, este papado é visto
apenas como uma fileira de escândalos e desastres de relações públicas. O que chama
atenção neste pontificado é o
contraste entre a percepção de
dentro e a de fora.
FOLHA - E o sr. discorda da percepção dos escândalos.
ALLEN - Discordo, acho que há
uma história bastante positiva
para contar sobre Bento 16. Só
que o Vaticano é totalmente incapaz de contá-la.
FOLHA - E o que, nestes cinco anos,
não esteve na mídia?
ALLEN - Este é um papa professor. A coisa com o que Bento 16
mais se preocupa, que lhe é
mais cara e pela qual ele se define são seus ensinamentos. Suas
três encíclicas, os discursos que
ele faz em suas viagens, os ensinamentos católicos que ele
transmite em suas audiências
às quartas-feiras.
Se você ler o que ele produz,
vai perceber como é inteligente
e bem articulado, profundo, independentemente de concordar ou não.
Mas pouco desses ensinamentos chega ao público. O
emaranhado de crises dominou
a percepção pública.
FOLHA - Isso não tem um pouco a
ver com a personalidade do papa e o
fato de ele não ser midiático como
João Paulo 2º? É algo que venha
mesmo do Vaticano como um todo
ou há culpa parcial da imprensa?
ALLEN - É uma combinação de
tudo. A imprensa, com algumas
exceções, tem sido descuidada
e parcial na cobertura, e Bento
16 não é o astro pop que João
Paulo 2º era. E também é verdade que as pessoas ao redor do
papa, no Vaticano, têm mais
atrapalhado do que ajudado.
Combinação fatídica.
FOLHA - Como o sr. vê a atuação do
Vaticano na crise? Na carta do papa
aos católicos irlandeses, ele condena
os sacerdotes pedófilos e os bispos
que os acobertaram e se desculpa.
Mas vem o cardeal Tarcisio Bertone
e relaciona pedofilia à homossexualidade, e você vê bispos e cardeais dizendo que tudo que está acontecendo é uma mera campanha difamatória. Um pouco confuso, não?
ALLEN - Quando me perguntam
sobre a estratégia de comunicação do Vaticano, digo que, assim que eu vir algum sinal de
sua existência, eu comentarei.
A tática deles para lidar com a
crise piorou tudo significativamente. [Veja] os comentários
públicos que têm sido feitos
por outras autoridades eclesiásticas que parecem ter a tendência de meter os pés pelas
mãos.
FOLHA - E o papa? Qual o papel dele em relação à crise em si, às acusações de que teria ajudado a abafar
alguns dos casos, e que tal sua reação agora?
ALLEN - Recentemente ele não
tem falado muito, e isso é parte
do problema: deixar que outros
falem por ele. Mas, historicamente, para alguém que cobre
esse assunto há 15 anos, a ideia
de que Bento 16 vire o símbolo
do problema é surrealista, estapafúrdia.
Aqui todo mundo sabe que,
há uma década, quando ninguém em Roma queria levar esse problema a sério, foi Ratzinger [à frente da Congregação
para a Doutrina da Fé] que o fez
e que muitas vezes insistiu sozinho em reformas que permitiriam à igreja impedir que padres abusadores trabalhassem
no ministério.
Sabe o Rudolph Giuliani?
FOLHA - Sim, o prefeito nova-iorquino que reduziu a violência urbana nos anos 90 com um plano de tolerância zero e depois protagonizou
escândalos.
ALLEN - Pois é. Falar do Ratzinger como símbolo do problema
do abuso sexual é o mesmo que
acusar o Giuliani de ser mole
com a criminalidade. É absurdo. É a completa inépcia do Vaticano em relação à comunicação. Pois este papa é a melhor
história que eles têm para contar sobre o combate aos abusos
sexuais, e deixaram que ele passasse a ser definido como símbolo do problema.
FOLHA - Há cerca de duas décadas
vemos eclodir escândalos sobre pedofilia na igreja, e não me lembro de
João Paulo 2º ser atingido. Por que
com Ratzinger é diferente, se ele é a
melhor história sobre o caso?
ALLEN - Eu queria conseguir
explicar porque eles deixaram a
peteca cair. Se dependesse de
mim, na última década eles teriam promovido entrevistas
coletivas a cada seis meses só
para falar de quantos casos foram levados ao Vaticano e o que
foi feito a respeito, o que aconteceu com as reformas que Ratzinger iniciou... Por que eles
não fizeram isso é um mistério.
De qualquer forma há dois
fatos: um, mesmo que você
ache a resposta da igreja ruim
ou insuficiente, e Deus sabe
que há muita crítica legítima,
seria muito pior se não fosse
Bento 16; dois, o Vaticano falhou ao contar essa história.
FOLHA - A Igreja Católica é hoje
mais vulnerável do que era 10 ou 20
anos atrás?
ALLEN - É. Com João Paulo 2º
eles tinham uma grande história para a mídia nas mãos. E o
próprio João Paulo 2º tinha
uma personalidade tão envolvente que conseguia que a igreja, o Vaticano e seu pontificado
tivessem uma cobertura positiva, mesmo havendo críticas.
FOLHA - O sr. citou coisas boas deste pontificado. O que ele conseguiu
em cinco anos?
ALLEN - Bento 16 se vê -e provavelmente é assim que a história o verá- como o papa professor. Logo, seu maior feito são
seus ensinamentos. Agora, se
você diz feitos no sentido de reformas internas, mudanças
tangíveis na forma como a igreja funciona, muito pouco foi
mudado, exatamente por ser
um papa professor, não um papa governante. Não é com liturgia que ele se preocupa.
FOLHA - Quando ele foi escolhido,
falou-se que em termos ideológicos
seria a continuidade do papado de
João Paulo 2º. Tem sido, até agora?
ALLEN - Acho que em termos de
ideias, sim. A principal diferença é que João Paulo 2º era um
papa ativista, queria mudar a
história aqui e agora, e algumas
vezes conseguiu, como é evidente no caso do colapso do comunismo. Com Bento 16, ao invés de um ativista, você tem um
papa intelectual, interessado
em contribuir para o debate de
seus dias -coisa que ele fez,
aliás, mas é muito menos visível, com o imediatismo.
Acho que há continuidade
nas ideias, mas muita diferença
no estilo e, logo, no impacto.
FOLHA - Mas vivemos na era do
imediatismo, parece.
ALLEN - Pois esse é o ponto.
Porque Bento 16 pensa em termos de séculos, isso lhe dá uma
tremenda liberdade, pois ele
não se preocupa com as manchetes de hoje, o que é algo positivo, de certa forma. Por outro
lado, não vivemos em um mundo dos séculos, vivemos no
mundo do hoje. E no mundo de
hoje este é um papado em crise.
FOLHA - O sr. argumenta que o papa no futuro será visto pelo legado
de ensinamentos. Isso não pode ser
ofuscado pelo imediatismo?
ALLEN - Pode ser. Entendo o
que Bento 16 acha que está fazendo e aprecio a importância.
Mas também vejo a crise de governança neste papado, que
quase destruiu sua imagem pública. Eis a ironia: Bento 16
quer que seus ensinamentos se
disseminem, mas precisa parar
um pouco de ensinar e lidar
com a crise de governança.
FOLHA - Essa atitude pode mudar
nos próximos anos?
ALLEN - Poder, pode. Se eu vejo
algum movimento nessa direção neste momento? Não.
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