São Paulo, domingo, 19 de maio de 2002

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GEOPOLÍTICA

Desde Guerra de Kosovo, EUA evitam acionar aliança para não perder autonomia; organização quer modernizar-se

Desprestigiada, Otan vive crise de identidade

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Apesar da semana de festa que viveu graças à criação de uma nova aliança estratégica com a Rússia e de ter dez nomes na lista de países que pleiteiam aderir a seus quadros, a Otan atravessa uma grave crise de identidade, como admitiram seu secretário-geral, George Robertson, e o secretário de Estado dos EUA (o país mais influente da aliança militar), Colin Powell, na última quarta-feira.
Nesse dia, ambos e o chanceler russo, Igor Ivanov, decretaram "o fim da Guerra Fria" e selaram a criação do Conselho Otan-Rússia, que permitirá a Moscou participar de processos de tomada de decisão da aliança ligados a temas de interesse mútuo, como o terrorismo e o controle da proliferação de armas de destruição em massa.
Todavia Robertson e Powell não deixaram de reconhecer as falhas das atuais estruturas da Otan. Para o primeiro, que lançou a chamada "agenda de mudança", a aliança "deverá transformar-se radicalmente se quiser manter-se eficaz no novo ambiente da segurança mundial". "Se não se modernizar, ela será marginalizada."
De acordo com Powell, os aliados europeus de Washington deverão comprometer-se a realizar um esforço considerável para elevar suas despesas com a segurança do continente e com a internacional, buscando coordenar a alocação de seus recursos para consolidar o ainda virtual "aparato de segurança" da União Européia.
Do ponto de vista simbólico, a fundação do novo órgão é um fato histórico, segundo especialistas ouvidos pela Folha. Afinal, em 1949, a Otan foi criada para garantir a manutenção das fronteiras geopolíticas européias e para conter o avanço do bloco comunista. Ademais, Moscou liderava o Pacto de Varsóvia (a aliança militar rival, fundada em 1955).
"Desde que Bill Clinton começou a insistir em expandir a aliança para o leste da Europa, na década passada, Washington busca convencer os russos de que isso não visa a ameaçá-los nem a minar seus interesses na região. Ora, não há nada mais simbólico para reiterar essa posição do que acolher a Rússia dentro dos quadros da Otan", explicou Ole Holsti, co-autor de "Unity and Disintegration in International Alliances" (unidade e desintegração em alianças internacionais).
Contudo, apesar de toda a pompa, os especialistas suspeitam que o novo conselho possa constituir um órgão estéril, como foi seu predecessor, o Conselho Permanente Conjunto Otan-Rússia (1997), criado para atenuar a oposição russa à primeira expansão da aliança para o leste do continente europeu (1999).
"Como hoje a Otan não é mais tão importante quanto foi no passado, é mais fácil aceitar a presença da Rússia em alguns de seus fóruns. Porém o papel de Moscou será bastante limitado, já que se restringirá a temas que os países-membros da Otan, sobretudo os EUA, considerarem passíveis de debate com os russos", apontou Bruno Tertrais, da Fundação para a Pesquisa Estratégica (Paris).

Fórum caótico
É irrefutável que o aspecto militar ofensivo da Otan vem sendo esvaziado desde a ofensiva contra os sérvios, ocorrida em 1999. Prova disso foi a campanha militar no Afeganistão. Nela, apesar de os aliados terem acionado a cláusula de defesa mútua da aliança após os ataques de 11 de setembro último, Washington preferiu formar uma aliança com parceiros específicos, desconsiderando a oferta da organização como um todo.
"Na Guerra de Kosovo, o governo dos EUA percebeu que, em situações de guerra, a estrutura decisória da Otan se tornava um entrave, um fórum caótico. Afinal, cada etapa de uma ofensiva militar tinha de ser debatida com todos os outros 18 membros da aliança, havendo a obrigação jurídica de que a resolução final fosse consensual", explicou Tertrais.
"Os europeus estranharam a atitude de Washington. Todavia, de uma ótica realista, ela foi normal, já que o comando militar americano não queria ver suas decisões contestadas por estrangeiros, mesmo aliados", analisou Jonathan Stevenson, do Instituto Internacional para Estudos Estratégicos (Londres). Para ele, na cúpula de Praga, em novembro, o tema terá de ser tratado.
De acordo com Joseph Nye, reitor da Kennedy School of Government, da Universidade Harvard (EUA), a transformação da aliança é normal num quadro em que não há mais os riscos da Guerra Fria. "Com o fim da ameaça soviética, a Otan era fadada a ver seu papel político fortalecido em detrimento do aspecto militar."
Assim, lentamente, a aliança se torna uma instituição mais política. Contudo seu papel militar ainda existe. Isso sobretudo no que se refere à manutenção da segurança no continente europeu e ao intercâmbio de informações entre as Forças Armadas de seus países-membros. Este, aliás, também permitiu que forças canadenses, britânicas e alemãs participassem da campanha no Afeganistão.
"Como os EUA estão cada vez mais preocupados com a instabilidade da Ásia e menos interessados na "estabilidade européia", há uma mudança de foco dentro da Otan. Robertson percebeu isso e tentou relançar a aliança como um órgão mais adaptado às novas ameaças que pesam sobre a comunidade internacional, como o terrorismo", afirmou Tertrais.
Senão a aliança correrá o risco de transformar-se numa instituição responsável quase exclusivamente pela segurança européia. "Com isso, os EUA poderiam forçar os europeus a tomar conta de seu "quintal'", disse Tertrais. O problema é que isso já existe na Organização para Segurança e Cooperação na Europa, da qual já fazem parte, além dos países europeus, os EUA, a Rússia e alguns países da Ásia central.
Para Nye, apesar de todas as críticas, o papel político da aliança não pode ser negligenciado. "Não podemos esquecer que a Otan, amparada por seu potencial militar, tem um valor político crucial no que concerne a criar estabilidade na Ásia central", lembrou.

Contrapeso?
Pensando justamente na crescente influência dos EUA na Ásia central a Rússia anunciou, na última quarta-feira, o fortalecimento de sua cooperação militar com outras cinco ex-repúblicas soviéticas da região, formando uma organização que lembra a Otan.
Ademais, Ivanov reiterou que a expansão da Otan para o Leste Europeu seria "um vestígio de um modo de pensar ultrapassado". Assim, a tão comentada crise de identidade da aliança ocidental -por causa do final do confronto bipolar da Guerra Fria- talvez tenha ocorrido cedo demais.



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