São Paulo, domingo, 19 de agosto de 2007

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EUA são ignorantes, diz ex-detido em Guantánamo

Para Moazzam Begg, CIA desconhece diferenças entre os grupos muçulmanos

Britânico deixou prisão americana em 2005; para ele, Brown mudou posição do Reino Unido a fim de ganhar "corações e mentes"

Kieran Doherty - 14.mar.2005/Reuters
Begg, que afirma ter visto dois colegas morrerem no cárcere


NATALIA VIANA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE LONDRES

Em 2005, a pedido do ex-premiê Tony Blair, nove cidadãos britânicos foram libertados da prisão americana na base militar de Guantánamo, em Cuba, para suspeitos de terrorismo. Um deles foi Moazzam Begg, 38, hoje presidente da associação Cage Prisoners, que milita pelo fechamento da prisão.
Begg passou três anos sob custódia americana, mas até hoje não teve acesso às provas que o levaram a Guantánamo. Em 2006, ele publicou o livro "Enemy Combatant -My Imprisonment at Guantanamo, Bagram, and Candahar" (Combatente inimigo: meu encarceramento em Guantánamo, Bagram e Candahar), em que relata sua experiência desde a captura, no Paquistão. De sua casa em Birmingham, no oeste inglês, Begg conversou com a Folha por telefone:

 

FOLHA - Como vê a atuação de Londres no caso dos residentes do Reino Unido em Guantánamo?
MOAZZAM BEGG -
Eu não poderia ter sido preso sem o governo saber ou colaborar. Desde o dia em que eu fui mandado para Candahar, para Bagram [ambas no Afeganistão], havia oficiais britânicos lá, eles sabiam de tudo. Mesmo assim, escreveram a meu pai falando que não tinham acesso a mim. Foram muitas mentiras todo o tempo.

FOLHA - Há 11 dias o governo britânico pediu pela primeira vez a retirada de Guantánamo de prisioneiros não-britânicos com residência no Reino Unido. Como avalia a mudança de política?
BEGG -
Isso faz parte da campanha para conquistar corações e mentes da comunidade muçulmana, que está cada vez mais alienada neste país. Estou feliz com a mudança. Mas não é o fim: onde estão as provas do crime de que foram acusados? Ao contrário do que se diz, não acho que Guantánamo fechará.

FOLHA - Como você foi preso?
BEGG -
Não fui preso, fui seqüestrado. Era 31 de janeiro de 2002, meia-noite, chegou um grupo na minha casa, vestido como civis mas apontando armas. Simplesmente me empurraram para um carro.

FOLHA - Ninguém falou: você está sendo preso por tal razão...
BEGG -
Não. Só comecei a entender quando um cara me mostrou as algemas e disse que as recebeu de uma das vítimas do 11 de Setembro. Só aí soube que era suspeito de terrorismo.

FOLHA - Para onde o levaram?
BEGG -
Pra uma prisão em Candahar, onde fiquei sob custódia americana e recebi o tratamento mais desumano. Eles batiam, sentavam sobre nós, xingavam. Deixavam-nos expostos, com cachorros latindo. E sempre tirando fotos. Já em Bagran foi uma operação da CIA, mais sinistra. Não havia luz do sol, fiquei preso quase 11 meses sem ver luz. Ficava amarrado de cócoras. Vi ali dois presos morrerem. Um deles foi espancado até a morte porque tentou fugir; o outro, foi amarrado de pé com as mãos suspensas sobre a cabeça e não resistiu.

FOLHA - Quando você foi enviado para Guantánamo, sabia o que era?
BEGG -
Sim, haviam me mostrado algumas fotos. Estava ansioso para ir pra lá. Achava que não poderia haver nada pior do que onde estava. Mas a viagem já foi muito dolorida, estávamos amarrados com correntes, de cócoras no chão. Tive que pedir um sedativo. Quando acordei já estava na minha cela.

FOLHA - Qual a sua ligação com a Al Qaeda? A inteligência americana alegava que foi encontrada uma transferência em seu nome para um integrante da Al Qaeda.
BEGG -
Olha, o primeiro homem da Al Qaeda que eu conheci na vida foi em Guantánamo. Essa acusação é incorreta.

FOLHA - Por que o prenderam?
BEGG -
Não posso responder. Creio que acharam justo me prender porque tive papel ativo no apoio aos muçulmanos na Bósnia e na Tchetchênia nos anos 90. Dei apoio financeiro, mas jamais peguei em armas. Então acharam que eu tinha o perfil de um terrorista envolvido no 11 de Setembro.

FOLHA - De que forma Guantánamo o afetou?
BEGG -
Acho que me deixou mais forte. Ser interrogado por todo mundo -MI5 [serviço secreto britânico], FBI, CIA... Também deixou mais claro a ignorância que existe, e, como resultado, quanto ódio e violência. Eles não entendem a diferença entre os vários grupos no Afeganistão e no Paquistão, acham que todos fazem parte da Al Qaeda. Al Qaeda é usada para descrever uma diversidade tão grande de pessoas que é impossível ela ser tão abrangente. Ou eles não entendem nada do que acontece no Oriente Médio, ou fingem não saber.


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