São Paulo, Domingo, 19 de Setembro de 1999
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Ramos do cristianismo divididos há mais de quatro séculos assinam no mês que vem um documento que encerra a divergência sobre a salvação
Católicos e luteranos se reconviliam

ARMANDO ANTENORE
da Reportagem Local

Em outubro, depois de quatro séculos de separação e de 32 anos de conversações, católicos e luteranos assinam, na Alemanha, acordo que estabelece um consenso sobre a principal questão teológica que os afastou.
O documento conjunto vai explicar de que modo as duas denominações encaram hoje a salvação -o instante em que, após a morte, os cristãos se libertariam de todos os pecados e se encontrariam com Deus na eternidade.
Quando se rebelou contra o papa Leão 10º, o monge agostiniano Martinho Lutero (1483-1546) produziu 95 teses que tratavam do tema e as tornou públicas. O gesto desencadeou o movimento da Reforma, que deu origem às igrejas protestantes.
À época, católicos defendiam que, para atingir a salvação, os fiéis deveriam praticar boas obras. Ou melhor: entregar-se às ações solidárias e respeitar um sem-número de ritos (orações, donativos, peregrinações, jejum, adoração de relíquias etc).
A salvação dependeria do mérito de cada cristão. Quem fizesse mais obras "somaria mais pontos" no céu.
Tal doutrina acabou gerando uma série de abusos, como a venda de indulgências. Em troca de recursos para a reconstrução da basílica de São Pedro (Roma), o papa Leão 10º oferecia a remissão total ou parcial das penas que o doador do dinheiro iria sofrer, na Terra ou no purgatório, por ter cometido pecados.
As 95 teses questionavam as vendas, lançando mão de palavreado firme e direto, o que as tornava bastante compreensíveis pelos leigos. Lutero as afixou, em 1517, diante da igreja do castelo de Wittenberg (Alemanha).
Daqueles escritos brotava uma nova doutrina: a de que a salvação (ou a "justificação") deriva da graça divina e não das obras humanas. Para o monge alemão, Deus se revelava muitíssimo generoso. Salvava os fiéis gratuitamente e por amor, sem exigir nenhuma contrapartida.
Os cristãos que desejassem alcançar o perdão dos pecados e se "justificar" necessitavam somente da fé. Suas obras não influenciariam Deus nem o coagiriam.
O monge costumava contar que formulou a doutrina com base na carta de são Paulo aos romanos. Uma frase do texto bíblico lhe chamava especialmente a atenção: "o justo viverá pela fé".
Em janeiro de 1521, Leão 10º excomungou Lutero. No decorrer dos séculos, as duas igrejas trocaram violentas acusações. Católicos taxavam os luteranos de omissos. Diziam que se mostravam passivos diante do sofrimento alheio por não acreditarem nas boas ações. Luteranos, em resposta, insistiam que os católicos duvidavam da graça de Deus, porque impunham condições humanas para a salvação.
Foi há menos de quatro décadas que as distâncias começaram a diminuir. Em 1967, criou-se a Comissão Mista Internacional Católico-Luterana, que desde então se reúne periodicamente para analisar pendências teológicas.
Há dois anos, o grupo finalizou a declaração que deverá ser assinada agora. Trata-se do primeiro documento, entre os muitos produzidos pela comissão, que receberá o aval de representantes do Vaticano e da Federação Luterana Mundial (FLM) -a entidade que congrega 95% dos 61 milhões de luteranos.
Com o acordo, ambas as partes passam a professar que:
- A salvação decorre da graça de Deus e não das boas obras.
- Só se chega à salvação pela fé.
- Embora não levem à salvação, as boas obras são consequência natural da fé. Em outras palavras, o verdadeiro cristão faz boas obras não para se salvar, mas como um testemunho de fé.
Pelo menos de imediato, o consenso teórico não mudará nada na organização e na liturgia das duas igrejas, que permanecerão separadas.
A assinatura ocorrerá no dia 31 de outubro, data em que Lutero divulgou as 95 teses. A cidade de Augsburgo, onde o monge sofreu um interrogatório por ordem do papa, sediará a cerimônia.


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