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IRAQUE SOB TUTELA
Para um dos principais jornalistas americanos, "as coisas poderão mudar" se houver guerra civil
Só desastre "livra" EUA do Iraque, diz Hersh
"The Washington Post"/Associated Press
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Foto sem data mostra cachorro acuando preso em Abu Ghraib |
LUCIANA COELHO
DE NOVA YORK
Os EUA estão presos em uma
fantasia neoconservadora, e, por
mais irônico que isso possa soar,
apenas uma guerra civil no Iraque
conseguirá libertá-los dali.
O diagnóstico é do jornalista
Seymour Hersh, ícone da reportagem investigativa americana que
detalhou, em abril, os horrores
ocorridos na prisão iraquiana de
Abu Ghraib. Foi o texto ácido de
Hersh para a revista "New Yorker" que deu a dimensão da tortura e da humilhação sexual de prisioneiros iraquianos por militares
dos EUA, ilustradas em fotos dos
próprios soldados.
Premiado com o Pulitzer por
sua cobertura do massacre americano em My Lai (1968), na Guerra
do Vietnã, Hersh expõe em seu
novo livro, "Cadeia de Comando", suas investigações sobre as
torturas e todo o contexto político
que possibilitou os abusos.
"Não há nada mais perigoso do
que idealistas com poder de guerra nas mãos e completamente errados sobre o mundo", afirma.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista à Folha.
Folha - Até que nível vai a cadeia
de comando envolvendo as torturas ocorridas em Abu Ghraib?
Seymour Hersh - Se o que você
quer saber é se [o secretário da
Defesa] Donald Rumsfeld ou o vice-presidente [Dick Cheney] ou o
presidente [George W. Bush] sabiam de algo sobre Abu Ghraib, a
resposta é não. Não há razão para
alguém em pleno juízo permitir
aquilo. Mas, se você está falando
das condições, da idéia de que a
Casa Branca sabia que havia algo
de errado com o tratamento dos
prisioneiros e não fez nada para
impedir, aí vai lá em cima.
O problema é que as pessoas lá
em cima têm um modo errado de
pensar. Um dos problemas que
nós jornalistas nos EUA temos é
que a Casa Branca tem suas próprias definições. Num documento da Casa Branca, um advogado
do Departamento da Justiça diz
que, se você machucar alguém
num interrogatório a ponto de
quebrar um membro ou até matar a pessoa, isso não será considerado tortura caso sua intenção
seja proteger a segurança nacional. Eles é que definem tortura.
Eles têm suas próprias palavras
para descrever o que fazem.
Folha - Como o sr. chegou até a
história de Abu Ghraib?
Hersh - A [rede de TV] CBS conseguiu as fotos, e eu fiquei sabendo. Fiquei feliz, porque era uma
história importante. Só que a reportagem não aparecia. Então alguém em contato com a CBS me
disse que eles estavam sob pressão, e eu comecei a investigar.
Logo descobri não só as fotos,
mas também o primeiro relatório
do general [Antonio] Taguba, que
é uma coisa fantástica, pois foi escrito para nunca vir a público. Ele
diz logo de cara que tudo começou no Afeganistão. É um relatório interno, cheio de julgamentos
contundentes. O ponto é que Taguba vê o que houve em Abu
Ghraib como um problema institucional, e não como sete meninos levados aprontando.
Foi só muito depois que outros
relatórios disseram que a inteligência "podia" estar envolvida.
Mas a verdadeira história é que
ninguém, nem nenhum dos relatórios, tratou da cadeia de comando. Ninguém chegou a Rumsfeld
ou à Casa Branca.
Folha - O sr. acredita que o caso
esteja sendo realmente investigado, como prometido, ou esse processo visa só o baixo escalão?
Hersh - Visa o baixo escalão, a
realidade é sempre essa com os
militares. Quando eu escrevi sobre My Lai, só um tenente foi para
a cadeia. Havia 500 pessoas mortas, e generais por perto. Isso é
institucional. Quando me perguntam se estão acobertando alguém, se Donald Rumsfeld pediu
para ficar de fora do processo, a
resposta é não. Porque ele não
precisa fazer isso, ninguém vai investigá-lo.
Folha - O sr. citou o Vietnã, onde
esteve. Quanto falta para Iraque se
tornar um Vietnã?
Hersh - Na verdade acho que o
Iraque está muito pior, embora
para os americanos seja difícil entender isso, já que 68 mil meninos
americanos morreram no Vietnã
e mil no Iraque. Lá a guerra toda
foi um erro colossal, mas era uma
área em que entramos e perdemos sem nenhuma conseqüência
negativa para os EUA.
Dois anos depois da guerra, o
novo governo vietnamita estava
nos pedindo para montar uma
embaixada e fazer negócios, porque é uma cultura onde o que acabou fica para trás.
No Iraque não. Nós começamos
uma coisa no Oriente Médio que
será uma guerra estratégica. Fomos à guerra contra o islã. É por
isso que Abu Ghraib é tão importante, porque mesmo nossos melhores amigos no mundo islâmico, gente que faz negócio conosco
e manda seus filhos para nossas
escolas, estão se perguntando
"que tipo de país é esse, onde pegam homens e os expõem em fotografias homossexuais"?
Folha - O escândalo de Abu
Ghraib foi pior do que ir à guerra
sem provas e legitimidade?
Hersh - É a conseqüência de ir à
guerra quando não devíamos.
Folha - Se Bush for reeleito, a
Doutrina Bush será endurecida?
Hersh - Com certeza. Eu sou
contra a reeleição. Acho que ele
foi um desastre na Presidência.
Mas, neste momento, parece que
ele vai ser reeleito. Acho que o
único jeito de nos livrarmos dessa
gente, desses neoconservadores, é
ter uma tragédia colossal, e estamos perto disso no Iraque.
Folha - O sr. acha que a imprensa
americana se perdeu na cobertura
desses fatos? Afinal, chegou-se a
um ponto em que havia jornais do
porte de um "New York Times" fazendo mea-culpa...
Hersh - Eu trabalhei muito tempo para o "New York Times" e
acho que todos os jornais se perderam. Uma das coisas que esse
governo fez foi assustar os jornais.
Nos últimos três anos eu tenho escrito reportagens muito críticas
sobre essa guerra [contra o terror], e elas sempre são ignoradas.
Mesmo agora quando estou aparecendo na TV por causa do livro.
É difícil os repórteres escreverem.
Uma das coisas que conto é que
há unidades secretas montadas
por Rumsfeld sumindo com pessoas pelo mundo, como acontecia
na Argentina e no Brasil durante
as ditaduras. Isso está acontecendo agora em vários lugares, mas
meus colegas ignoram.
Folha - A imprensa americana
deixou passar coisas como o caso
de Ahmed Chalabi, empresário iraquiano que serviu de fonte do governo dos EUA e de vários jornais
cujos relatos se provaram falsos. O
que aconteceu?
Hersh - Sou cauteloso ao criticar
a imprensa, porque parece que estou me gabando. Mas eu fiz o livro
e vem a Casa Branca e põe gente
para dizer na imprensa que ele
tem como base fontes anônimas.
Tem, e daí? Qual é o ponto? Eu
não entendo a imprensa.
Folha - O sr. acha que, após o escândalo, a cobertura melhorou?
Hersh - Não está tão bom, mas
melhorou um pouquinho no geral, porque agora as coisas estão
ficando difíceis. A guerra foi obviamente um desastre, e pode haver uma guerra civil no Iraque.
Você está fazendo uma pergunta essencial mais uma vez, mas
neste caso sua opinião vale tanto
quanto a minha. A questão é como essa gente, esse pessoal neoconservador, utópicos irracionais
que acham que a democracia é
imposta, como eles passam a controlar a situação? Como eles derrotam não só a imprensa, mas
também calam os militares e o
Congresso? É por causa do medo.
O 11 de Setembro e o medo. Em
vez de dizer que não há o que temer, o governo Bush fica manipulando esse medo, alimentando.
Folha - Não estamos chegando a
um ponto em que as pessoas começam a se cansar dessa retórica?
Hersh - Acho que, neste momento, Bush fez o suficiente para ganhar a eleição. Depois, acho que
teremos de ter um desastre no Iraque, e aí as coisas poderão mudar.
Folha - Guerra civil?
Hersh - Sim, eu estou extremamente pessimista. Como você
acha que eu me sinto? Eu estou
cansado desse sujeito. Vou ter de
fazer mais quatro anos de reportagens sobre ele, e eu quero voltar
para o mundo real e parar de escrever sobre isso. Há outras coisas
que eu quero fazer. Mas não. Agora tem essa história das italianas
seqüestradas, há rumores de que
o próprio governo iraquiano as
teria seqüestrado para que a insurgência pareça pior... Não há
como alguém como [o premiê]
Iyad Allawi governar o Iraque.
Folha - O sr. acredita que o governo americano realmente esperava
que alguém que trabalhou para a
CIA, como Allawi, gozasse da confiança dos iraquianos?
Hersh - Sim, eles esperavam. Isso
é o mais impressionante. Estamos
vivendo em uma fantasia e chegamos a um beco do qual não podemos sair. O que vamos fazer?
Bombardear tudo?
Folha - Eles ainda crêem estar fazendo o melhor para os EUA?
Hersh - Claro, isso é óbvio. Eles
deliram. Eles não foram para o
Iraque por causa de petróleo ou
de Israel. Eles foram porque são
utópicos. Você pode chamá-los
de idealistas, mas não há nada
mais perigoso do que idealistas
com poder e guerra nas mãos e
completamente errados sobre o
mundo.
Eles achavam que podiam invadir o país com 5.000 soldados e as
forças especiais, jogar umas bombas, fincar umas bandeiras americanas e Saddam Hussein ia sair
correndo e a democracia ia brotar
como água do chão. E eles acreditavam nisso. Existe algo mais perigoso do que gente que não entende o mundo?
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