São Paulo, domingo, 19 de setembro de 2004

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IRAQUE SOB TUTELA

Para um dos principais jornalistas americanos, "as coisas poderão mudar" se houver guerra civil

Só desastre "livra" EUA do Iraque, diz Hersh

"The Washington Post"/Associated Press
Foto sem data mostra cachorro acuando preso em Abu Ghraib


LUCIANA COELHO
DE NOVA YORK

Os EUA estão presos em uma fantasia neoconservadora, e, por mais irônico que isso possa soar, apenas uma guerra civil no Iraque conseguirá libertá-los dali.
O diagnóstico é do jornalista Seymour Hersh, ícone da reportagem investigativa americana que detalhou, em abril, os horrores ocorridos na prisão iraquiana de Abu Ghraib. Foi o texto ácido de Hersh para a revista "New Yorker" que deu a dimensão da tortura e da humilhação sexual de prisioneiros iraquianos por militares dos EUA, ilustradas em fotos dos próprios soldados.
Premiado com o Pulitzer por sua cobertura do massacre americano em My Lai (1968), na Guerra do Vietnã, Hersh expõe em seu novo livro, "Cadeia de Comando", suas investigações sobre as torturas e todo o contexto político que possibilitou os abusos.
"Não há nada mais perigoso do que idealistas com poder de guerra nas mãos e completamente errados sobre o mundo", afirma.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista à Folha.
 

Folha - Até que nível vai a cadeia de comando envolvendo as torturas ocorridas em Abu Ghraib?
Seymour Hersh -
Se o que você quer saber é se [o secretário da Defesa] Donald Rumsfeld ou o vice-presidente [Dick Cheney] ou o presidente [George W. Bush] sabiam de algo sobre Abu Ghraib, a resposta é não. Não há razão para alguém em pleno juízo permitir aquilo. Mas, se você está falando das condições, da idéia de que a Casa Branca sabia que havia algo de errado com o tratamento dos prisioneiros e não fez nada para impedir, aí vai lá em cima.
O problema é que as pessoas lá em cima têm um modo errado de pensar. Um dos problemas que nós jornalistas nos EUA temos é que a Casa Branca tem suas próprias definições. Num documento da Casa Branca, um advogado do Departamento da Justiça diz que, se você machucar alguém num interrogatório a ponto de quebrar um membro ou até matar a pessoa, isso não será considerado tortura caso sua intenção seja proteger a segurança nacional. Eles é que definem tortura. Eles têm suas próprias palavras para descrever o que fazem.

Folha - Como o sr. chegou até a história de Abu Ghraib?
Hersh -
A [rede de TV] CBS conseguiu as fotos, e eu fiquei sabendo. Fiquei feliz, porque era uma história importante. Só que a reportagem não aparecia. Então alguém em contato com a CBS me disse que eles estavam sob pressão, e eu comecei a investigar.
Logo descobri não só as fotos, mas também o primeiro relatório do general [Antonio] Taguba, que é uma coisa fantástica, pois foi escrito para nunca vir a público. Ele diz logo de cara que tudo começou no Afeganistão. É um relatório interno, cheio de julgamentos contundentes. O ponto é que Taguba vê o que houve em Abu Ghraib como um problema institucional, e não como sete meninos levados aprontando.
Foi só muito depois que outros relatórios disseram que a inteligência "podia" estar envolvida. Mas a verdadeira história é que ninguém, nem nenhum dos relatórios, tratou da cadeia de comando. Ninguém chegou a Rumsfeld ou à Casa Branca.

Folha - O sr. acredita que o caso esteja sendo realmente investigado, como prometido, ou esse processo visa só o baixo escalão?
Hersh -
Visa o baixo escalão, a realidade é sempre essa com os militares. Quando eu escrevi sobre My Lai, só um tenente foi para a cadeia. Havia 500 pessoas mortas, e generais por perto. Isso é institucional. Quando me perguntam se estão acobertando alguém, se Donald Rumsfeld pediu para ficar de fora do processo, a resposta é não. Porque ele não precisa fazer isso, ninguém vai investigá-lo.

Folha - O sr. citou o Vietnã, onde esteve. Quanto falta para Iraque se tornar um Vietnã?
Hersh -
Na verdade acho que o Iraque está muito pior, embora para os americanos seja difícil entender isso, já que 68 mil meninos americanos morreram no Vietnã e mil no Iraque. Lá a guerra toda foi um erro colossal, mas era uma área em que entramos e perdemos sem nenhuma conseqüência negativa para os EUA.
Dois anos depois da guerra, o novo governo vietnamita estava nos pedindo para montar uma embaixada e fazer negócios, porque é uma cultura onde o que acabou fica para trás.
No Iraque não. Nós começamos uma coisa no Oriente Médio que será uma guerra estratégica. Fomos à guerra contra o islã. É por isso que Abu Ghraib é tão importante, porque mesmo nossos melhores amigos no mundo islâmico, gente que faz negócio conosco e manda seus filhos para nossas escolas, estão se perguntando "que tipo de país é esse, onde pegam homens e os expõem em fotografias homossexuais"?

Folha - O escândalo de Abu Ghraib foi pior do que ir à guerra sem provas e legitimidade?
Hersh -
É a conseqüência de ir à guerra quando não devíamos.

Folha - Se Bush for reeleito, a Doutrina Bush será endurecida?
Hersh -
Com certeza. Eu sou contra a reeleição. Acho que ele foi um desastre na Presidência. Mas, neste momento, parece que ele vai ser reeleito. Acho que o único jeito de nos livrarmos dessa gente, desses neoconservadores, é ter uma tragédia colossal, e estamos perto disso no Iraque.

Folha - O sr. acha que a imprensa americana se perdeu na cobertura desses fatos? Afinal, chegou-se a um ponto em que havia jornais do porte de um "New York Times" fazendo mea-culpa...
Hersh -
Eu trabalhei muito tempo para o "New York Times" e acho que todos os jornais se perderam. Uma das coisas que esse governo fez foi assustar os jornais. Nos últimos três anos eu tenho escrito reportagens muito críticas sobre essa guerra [contra o terror], e elas sempre são ignoradas. Mesmo agora quando estou aparecendo na TV por causa do livro. É difícil os repórteres escreverem.
Uma das coisas que conto é que há unidades secretas montadas por Rumsfeld sumindo com pessoas pelo mundo, como acontecia na Argentina e no Brasil durante as ditaduras. Isso está acontecendo agora em vários lugares, mas meus colegas ignoram.

Folha - A imprensa americana deixou passar coisas como o caso de Ahmed Chalabi, empresário iraquiano que serviu de fonte do governo dos EUA e de vários jornais cujos relatos se provaram falsos. O que aconteceu?
Hersh -
Sou cauteloso ao criticar a imprensa, porque parece que estou me gabando. Mas eu fiz o livro e vem a Casa Branca e põe gente para dizer na imprensa que ele tem como base fontes anônimas. Tem, e daí? Qual é o ponto? Eu não entendo a imprensa.

Folha - O sr. acha que, após o escândalo, a cobertura melhorou?
Hersh -
Não está tão bom, mas melhorou um pouquinho no geral, porque agora as coisas estão ficando difíceis. A guerra foi obviamente um desastre, e pode haver uma guerra civil no Iraque.
Você está fazendo uma pergunta essencial mais uma vez, mas neste caso sua opinião vale tanto quanto a minha. A questão é como essa gente, esse pessoal neoconservador, utópicos irracionais que acham que a democracia é imposta, como eles passam a controlar a situação? Como eles derrotam não só a imprensa, mas também calam os militares e o Congresso? É por causa do medo. O 11 de Setembro e o medo. Em vez de dizer que não há o que temer, o governo Bush fica manipulando esse medo, alimentando.

Folha - Não estamos chegando a um ponto em que as pessoas começam a se cansar dessa retórica?
Hersh -
Acho que, neste momento, Bush fez o suficiente para ganhar a eleição. Depois, acho que teremos de ter um desastre no Iraque, e aí as coisas poderão mudar.

Folha - Guerra civil?
Hersh -
Sim, eu estou extremamente pessimista. Como você acha que eu me sinto? Eu estou cansado desse sujeito. Vou ter de fazer mais quatro anos de reportagens sobre ele, e eu quero voltar para o mundo real e parar de escrever sobre isso. Há outras coisas que eu quero fazer. Mas não. Agora tem essa história das italianas seqüestradas, há rumores de que o próprio governo iraquiano as teria seqüestrado para que a insurgência pareça pior... Não há como alguém como [o premiê] Iyad Allawi governar o Iraque.

Folha - O sr. acredita que o governo americano realmente esperava que alguém que trabalhou para a CIA, como Allawi, gozasse da confiança dos iraquianos?
Hersh -
Sim, eles esperavam. Isso é o mais impressionante. Estamos vivendo em uma fantasia e chegamos a um beco do qual não podemos sair. O que vamos fazer? Bombardear tudo?

Folha - Eles ainda crêem estar fazendo o melhor para os EUA?
Hersh -
Claro, isso é óbvio. Eles deliram. Eles não foram para o Iraque por causa de petróleo ou de Israel. Eles foram porque são utópicos. Você pode chamá-los de idealistas, mas não há nada mais perigoso do que idealistas com poder e guerra nas mãos e completamente errados sobre o mundo.
Eles achavam que podiam invadir o país com 5.000 soldados e as forças especiais, jogar umas bombas, fincar umas bandeiras americanas e Saddam Hussein ia sair correndo e a democracia ia brotar como água do chão. E eles acreditavam nisso. Existe algo mais perigoso do que gente que não entende o mundo?


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