São Paulo, segunda-feira, 19 de outubro de 2009

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Academia reinventa polícia iraquiana

Força pública, que sob Saddam simbolizava opressão e arbitrariedade, investe hoje na qualificação de novos agentes

Atraídos pelos salários de classe média, recrutas, de todas as etnias e regiões do Iraque, têm o passado checado pelo serviço secreto

SAMY ADGHIRNI
ENVIADO ESPECIAL A BAGDÁ

Em um corredor escuro, dezenas de homens de cueca aparentando 20 anos de idade fazem fila na frente de uma porta, enquanto outros colocam de volta suas roupas. O ar é abafado e cheira a suor. Volta e meia a porta se abre, e um médico sai para chamar o próximo rapaz.
Estamos no centro de recrutamento da Academia de Polícia de Bagdá, um dos pontos mais representativos do Iraque pós-Saddam Hussein. A força pública, que por duas décadas simbolizou opressão e arbitrariedade, aposta hoje na qualificação de novos agentes.
Atraídos pela estabilidade e pelo salário de classe média (iniciais US$ 700 por mês), homens e mulheres da polícia iraquiana são preparados para assumir o controle do país quando se completar a retirada americana, em 2011.
O exame médico é o primeiro filtro. A seguir, os candidatos enfrentam testes físicos e psicotécnicos e têm os antecedentes criminais e políticos submetidos ao serviço secreto. Quem foi do partido Baath, de Saddam, ou tem histórico de militância religiosa ou étnica tem quase zero chances.
Na última etapa, os candidatos respondem a perguntas de uma banca de especialistas. A ideia é detectar terroristas que queiram se infiltrar na polícia.
Os recrutas moram, treinam e estudam no complexo que cerca o Ministério do Interior, a poucas quadras da Zona Verde, área ultraprotegida que abriga vários prédios oficiais.
Contrastando com o trânsito caótico das ruas na volta, a academia tem ares de pacata vila militar, com prédios amarelos e marrons de no máximo três andares, estreitos, longos e cercados com telas de arame.
A academia abriga cerca de 9.000 pessoas, incluindo agentes em reciclagem e instrutores. Todas as fardas lembram uniformes militares. Há gente de todas as regiões e comunidades étnico-confessionais do Iraque. As formações variam de nove meses a três anos.
A Folha viu recrutas marchando em direção a salas de aula e jovens correndo sob o sol do meio dia numa pista de treinamento físico que lembra um grande estacionamento vazio.
Nos prédios, há salas para aulas teóricas, de inglês e de informática. Um dos maiores orgulhos da casa é o primeiro laboratório de exames de DNA no Iraque -na versão oficial, Bagdá comprou parte do equipamento e recebeu outra de um "um país amigo".
A presença dos EUA é ostensiva. Oficiais americanos caminham pela academia escoltados por seus próprios agentes, que carregam metralhadoras. A reportagem contou no local seis vans brancas das forças especiais de Washington.
O chefe da academia e principal responsável pela formação da nova polícia iraquiana, major-general Jassim Hassan, interrompeu a entrevista com a Folha para receber uma delegação americana. Na conversa com a reportagem, ele dissera que os EUA só ajudam em treinamentos especiais e dividem informações de inteligência.
A academia é a pedra angular da estratégia de segurança do governo iraquiano, que prefere deixar o Exército fora de Bagdá e das grandes cidades.
Autoridades dizem ter colocado nas ruas do país 500 mil policiais desde 2003 -o regime de Saddam tinha efetivo equivalente a 10% disso.
Segundo o governo, metade dos que trabalharam com o regime anterior continuaram na polícia. Acredita-se que a outra metade tenha fugido do país ou aderido a grupos insurgentes.
Norteada pelos EUA, a nova polícia recrutou mulheres, aboliu a tortura (ao menos oficialmente) e comprou equipamentos de ultima geração.
"O norte da mudança é a assimilação de novos valores, como direitos humanos e profissionalismo", diz Jasim Chalab, um dos chefes da academia. "O desafio é fazer com que a população confie na sua polícia."
Antes impensáveis, cenas de motoristas discutindo com guardas de trânsito ilustram a mudança. Mas a polícia está sujeita a problemas graves.
Os agentes do governo são um dos principais alvos dos atentados. Ao menos 20 mil policiais morreram em ataques desde a mudança de regime.
Apesar do aumento nos salários, a corrupção ainda é estrutural. Os últimos atentados em Bagdá (19 de agosto, 101 mortos) só aconteceram porque policiais de alguns postos de controle foram subornados.
Críticos citam a segurança de Bagdá sob Saddam e dizem valer pouco uma polícia moderna incapaz de conter a violência.


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