São Paulo, quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

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"Preparar minha ausência era a primeira obrigação"

Leia a íntegra do texto da renúncia de Fidel Castro aos cargos que detém na ilha

Ditador diz ter deixado claro que saúde poderia impedir que voltasse ao comando, mas que não queria baixar guarda diante do inimigo

Burt Glinn - 1959/Magnum Photos
Na Revolução Cubana, o líder guerrilheiro Fidel Castro discursa em Santa Clara, a caminho de Havana; ele estava há 49 anos no poder

Queridos compatriotas. Prometi a vocês em 15 de fevereiro que minha próxima reflexão abordaria um tema que interessa a muitos compatriotas. Mas, desta vez, ela toma a forma de uma mensagem. Chegou o momento de propor uma nova eleição para o Conselho de Estado e para os postos de presidente, vice-presidente e secretário.
Desempenhei por muitos anos o honroso cargo de presidente. Em 15 de fevereiro de 1976, a Constituição socialista foi aprovada por mais de 95% dos cidadãos com direito a voto, em uma votação livre, direta e secreta. A primeira Assembléia Nacional foi constituída em 2 de dezembro daquele ano e elegeu um Conselho de Estado e o presidente deste. Anteriormente, eu havia exercido por quase 18 anos o posto de primeiro-ministro. Sempre dispus das prerrogativas necessárias a levar adiante a obra revolucionária, com o apoio da imensa maioria do povo.
Informados de meu estado crítico de saúde, muitos observadores no exterior acreditavam que minha renúncia provisória ao cargo de presidente do Conselho de Estado, em 31 de julho de 2006, com a transferência do posto ao primeiro vice-presidente do Conselho, Raúl Castro Ruz, fosse definitiva. O próprio Raúl, que ocupa também o posto de ministro das Forças Armadas Revolucionárias, por mérito próprio, e os demais companheiros na direção do partido e do Estado relutaram em me considerar afastado dos meus postos, apesar do estado precário de minha saúde.
Minha posição era incômoda, diante de um adversário que fez tudo de imaginável para se livrar de mim, e eu de maneira nenhuma gostaria de satisfazê-lo. Posteriormente, consegui recuperar de forma completa o domínio de minha mente, a possibilidade de ler e meditar muito, por força do repouso compulsório. Restavam-me forças físicas suficientes para escrever por muitas horas, atividade à qual dedicava o tempo que me sobrava depois dos programas de reabilitação e recuperação física. O senso comum mais elementar indicava que essa era uma atividade que estava ao meu alcance. Por outro lado, preocupei-me sempre, ao falar de minha saúde, em evitar ilusões que, em caso de um desfecho adverso, representariam notícias traumáticas para nosso povo em meio à sua luta. Prepará-lo para minha ausência, psicológica e politicamente, era minha primeira obrigação, depois de tantos anos de luta.
Nunca deixei de indicar que se tratava de uma recuperação "não isenta de riscos". Meu desejo foi sempre o de cumprir o dever até o último alento. E é isso o que posso oferecer.
A meus afetuosos compatriotas, que me fizeram a imensa honra de me eleger recentemente para o Parlamento, no seio do qual devem ser adotados acordos importantes para o destino de nossa revolução, comunico que não aspirarei nem aceitarei -repito- não aspirarei nem aceitarei o posto de presidente do Conselho de Estado e comandante-em-chefe das Forças Armadas.
Em breves cartas endereçadas a Randy Alonso, diretor do programa "Mesa Redonda", da Televisión Nacional, cujo conteúdo foi divulgado a meu pedido, já estavam presentes, de maneira discreta, elementos desta mensagem que agora escrevo, mas nem mesmo o destinatário das missivas estava informado sobre o meu propósito. Eu tinha confiança em Randy, porque o conheci bem quando era estudante universitário de jornalismo, em um período no qual me reunia quase todas as semanas com os principais representantes dos estudantes universitários das Províncias, na ampla biblioteca da casa onde estavam alojados, em Kohly. Hoje, o país inteiro é uma imensa universidade.
Parágrafos selecionados da carta enviada a Randy em 17 de dezembro de 2007: "Minha mais profunda convicção é que as respostas aos problemas educacionais da sociedade cubana, cujo nível médio de educação hoje equivale ao 12º grau, com quase 1 milhão de diplomados universitários e possibilidade real de estudo para os cidadãos, sem discriminação alguma, requerem mais variantes de resposta para cada problema concreto do que aquelas que um tabuleiro de xadrez oferece. Não se pode ignorar nem mesmo um detalhe, e não se trata de um caminho fácil, se desejamos que a inteligência do ser humano na sociedade revolucionária prevaleça sobre os seus instintos."
"Meu dever fundamental não é me aferrar a cargos e muito menos obstruir a ascensão de pessoas mais jovens, e sim contribuir com experiências e idéias cujo modesto valor provém da época excepcional em que me coube viver." "Penso como Niemeyer, que é preciso ser conseqüente até o final."
Carta de 8 de janeiro de 2008: "... Sou partidário decidido do voto unificado (um princípio que preserva o mérito ignorado). Foi ele que nos permitiu evitar a tendência a copiar aquilo que vinha dos países do antigo campo socialista, entre os quais o retrato de um candidato único, tão solitário quanto solidário com relação a Cuba. Respeito muito aquela primeira tentativa de construir o socialismo, graças à qual pudemos continuar no caminho que escolhemos."
"Tenho muito claro", eu reiterava naquela carta, "que toda glória do mundo cabe em um grão de milho." Portanto, seria uma traição à minha consciência ocupar uma responsabilidade que requer mobilidade e entrega total, caso eu não esteja em condições físicas de exercê-la. E eu o digo sem qualquer intuito dramático.
Felizmente nosso processo conta ainda com os quadros da velha guarda, bem como com outros que eram muito jovens quando se iniciou a primeira etapa da revolução. Alguns se incorporaram quase meninos aos nossos combates nas montanhas e, mais tarde, com seu heroísmo e suas missões internacionais, conquistaram glória imensa para o país. Eles contam com autoridade e experiência para garantir uma boa substituição. Nosso processo dispõe igualmente da geração intermediária, que aprendeu conosco os elementos da complexa e quase inacessível arte de organizar e dirigir uma revolução.
O caminho será sempre difícil e exigirá o esforço inteligente de todos. Desconfio dos caminhos aparentemente fáceis, da apologia aberta ou da sua antítese, a autoflagelação. É preciso estarmos sempre preparados para a pior hipótese. E manter a prudência no sucesso e a firmeza na adversidade é um princípio do qual não nos devemos esquecer. O adversário a derrotar é muito forte, mas nos mantivemos em campo durante meio século.
Não me despeço de vocês. Desejo combater apenas como soldado das idéias. Continuarei escrevendo sob o título "Reflexões do companheiro Fidel". Será uma arma a mais com que poderemos contar em nosso arsenal. Talvez minha voz seja escutada. Serei cuidadoso.

Obrigado
Fidel Castro Ruz
18 de fevereiro de 2008 17h30


Tradução de PAULO MIGLIACCI


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