São Paulo, quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

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Renúncia gerenciada atrasa mudanças

Segundo conhecedores da ilha, Fidel Castro administra a própria sucessão e segura expectativa popular sobre transição

Despedida prolongada do ditador pode frear planos de reforma de Raúl; vice Carlos Lage pode ser surpresa no processo sucessório

DA REDAÇÃO

Com a carta de renúncia de Fidel Castro -na qual em certo trecho ele diz "não me despeço"-, o regime cubano cumpre importante etapa do estudado processo de transição que já começou há 18 meses na ilha, alimentando expectativas internas sobre melhora das duras condições de vida, mas dilatando o prazo de uma abertura democrática ou do colapso do sistema político construído depois da revolução de 1959.
Essa é a opinião de estudiosos de Cuba ouvidos pela Folha. Para nenhum deles, o passo tomado pelo ditador foi uma surpresa ou acarreta mudanças bruscas no futuro imediato da ilha -não enquanto Fidel viver.
O fato de Fidel decidir estar fora do poder -em vez de uma morte repentina que causaria dias de comoção na ilha em meio a uma transição política indefinida- torna-o, paradoxalmente, administrador e fiador de sua própria sucessão.
"Fidel está conseguindo gerenciar sua própria sucessão, de uma forma constitucional. Ele está observando tudo e promovendo um processo pacífico", disse Julia Sweig, analista para América Latina do Council on Foreign Relations.
Ignácio Ramonet, diretor do jornal "Le Monde Diplomatique", reforça a idéia de transição administrada. "Fidel não está desaparecendo, é uma personalidade enorme, que vai continuar escrevendo. Ele está saindo do poder tradicional para assumir o quarto poder", diz ele, autor de "Fidel Castro: Biografia a duas vozes".

Despedida prolongada
Essa despedida prolongada tem efeito colaterais. Para Sweig, a situação funciona como moderador de expectativas em torno do que pode ser o governo Raúl Castro, seu irmão no poder interinamente desde julho de 2006, quando o ditador adoeceu gravemente.
"Estando de fora e ainda vivo, o que Fidel faz é ajudar Raúl Castro a manejar as expectativas e mantê-las baixas, enquanto põe na mesa o tema do "pão e da manteiga", ou seja, como os cubanos terão acesso a uma vida melhor", diz ela, autora do livro de 2002 "Inside the Cuban Revolution".
Isso porque, se Fidel é o pai intelectual e guia do regime, Raúl sempre foi -e reforçou essa imagem no último ano e meio- o irmão de poucas palavras, que gosta de ser visto como "pragmático".
O perfil, combinado com um chamado amplo ao debate na ilha feito pelo comandante interino em meados do ano passado, contribuíram para sugerir uma atmosfera de que, com Raúl, parte das queixas apresentadas nas reuniões em locais de trabalho ou universidades (salários baixíssimos, economia paralela em dólar, restrições de viagens e internet) pudesse ser resolvida.
Para o cubano Samuel Faber, professor aposentado da Universidade da Cidade de Nova York, um outro efeito da despedida prolongada é justamente brecar eventuais intenções do irmão de acelerar plano de reformas econômicas.
"Enquanto ele ainda tiver suficiente saúde para falar por telefone, escrever artigos e falando com pessoas, sempre vai ser um fator de influência. Não creio que Raúl se atreva a fazer mudanças importantes enquanto for assim", diz Farber.
Tanto o cubano como Sweig dizem que o que está no horizonte são pequenas reformas econômicas, como no regime de terras ou na administração de pequenos negócios.
Quanto aos alcances do chamado ao debate de Raúl, Farber lembra que o regime está num processo que também busca controlar: ouve as queixas, não sabe como responder a elas -como ficou claro no debate gravado com estudantes e o presidente do Parlamento, há duas semanas- e veta divulgação nacional dos debates.
"O governo mantém o monopólio de comunicação entre diferentes grupos de cidadãos. Dessa maneira, não permite que se articulem os grupos insatisfeitos nacionalmente. Mas o fato é que há uma inquietude na ilha", diz o professor.

Sucessão e gerações
No próximo domingo, o sucessor formal de Fidel vai ser escolhido, na sessão inaugural da Assembléia Nacional de Cuba, eleita em 20 de janeiro.
Os parlamentares elegem os 31 membros do Conselho de Estado e o presidente máximo da instância, até ontem Fidel.
Há uma grande expectativa, ecoada nas ruas de Havana, de que Raúl seja simplesmente confirmado no cargo que já ocupa interinamente. Mas Julia Sweig não descarta que um dos vice-presidentes do conselho, o influente Carlos Lage, 56, represente também uma renovação geracional e seja eleito.
De todo modo, mesmo que Raúl seja o novo presidente, com seus 76 anos, abre-se a vaga do posto que ele formalmente ocupa, o de número 2.
Nessa disputa, os analistas citam mais uma vez Lage, que, médico de formação, é quem conduz a economia. O vice-presidente, visto como "premiê de fato", tem cada vez mais participação internacional, além de apreço interno, por ter liderado plano de recuperação energético na crise aguda dos 90.
Lage, para Fidel, é a "geração intermediária", mencionada na carta, que aprendeu "quase inacessível arte de organizar e dirigir uma revolução".
Para Samuel Farber, o líder parece mais "afinado" com Raúl do que o chanceler Felipe Pérez Roque, ex-secretário particular de Fidel e "guardião de suas idéias". O professor diz que será importante acompanhar que papel terá agora Pérez, 43, e outros integrantes de seu grupo, a novíssima geração, os primeiros a integrar a cúpula de poder que já nasceram sob o regime. (FLÁVIA MARREIRO, SAMY ADGHIRNI E ANDREA MURTA)


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