São Paulo, domingo, 20 de março de 2005

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ENTREVISTA

Sharansky, autor do livro de cabeceira do presidente, diz que o melhor para a segurança é não negociar com ditadores

Guru de Bush prega fim do apaziguamento

MARCELO NINIO
DA REDAÇÃO

O ex-dissidente soviético Natan Sharansky jamais imaginou que seu livro ganharia um defensor tão poderoso. Poucos dias após lançar nos EUA "The Case for Democracy" (em defesa da democracia), em novembro de 2004, Sharansky foi chamado ao Salão Oval, onde o presidente americano, George W. Bush, o recebeu com a obra nas mãos, ansioso para discutir suas proposições.
Desde então, Bush já usou trechos inteiros do livro para sustentar sua política externa, inclusive nos dois pronunciamentos mais importantes do ano, o discurso de posse do segundo mandato e o sobre o Estado da União.
Sharansky, 58, ministro israelense para Assuntos de Jerusalém e da Diáspora, ficou mundialmente conhecido ao lutar pelo direito de imigração na antiga URSS, uma campanha pela qual pagou caro, passando nove anos preso, muitos deles na solitária. Em entrevista por telefone à Folha, em Jerusalém, ele explicou as teses que conquistaram Bush, sobretudo a de que o caminho mais curto para obter segurança é a promoção da democracia. Sobre a admiração do presidente americano, comentou: "Agora já não me sinto tão só".

 

Folha - Como o sr. vê a enorme influência de seu livro sobre Bush?
Natan Sharansky -
O livro contém idéias apresentadas durante anos em artigos e discursos meus, mas que infelizmente não tiveram muita influência, nem na direita nem na esquerda, pois todos eram muito céticos em relação à democracia em lugares como o mundo árabe. Achei que o livro fosse despertar algum interesse no mundo acadêmico e que, com o tempo, chegaria a quem toma as decisões políticas. O que certamente eu não esperava é que logo na primeira semana de lançamento nos EUA minha editora ligaria para dizer que o presidente Bush estava lendo o livro e que queria me conhecer.
Quando me encontrei com Bush, no Salão Oval, ele me disse: "A vida inteira eu acreditei que a liberdade não fora uma invenção americana, mas um presente de Deus para a humanidade". E começou a fazer um resumo extremamente fiel de minhas idéias.
Bush foi muito firme no princípio de que, para conseguir segurança e estabilidade, é preciso buscar a liberdade. Acho que ele instintivamente acreditava nessas idéias e encontrou em meu livro uma explicação racional, com teoria, história e confronto moral. Isso o encorajou muito.

Folha - E a contrapartida? Como a Doutrina Bush do pós-11 de Setembro influenciou o sr.?
Sharansky -
Seria mais exato dizer que ela me encorajou. Pouco depois do 11 de Setembro, quando Bush mencionou que os palestinos mereciam uma liderança democrática e que isso levaria à paz, eu disse à CNN que aquele discurso era histórico, por ser a primeira vez desde o fim da URSS que a ligação entre paz e segurança entrava na agenda internacional.
Na verdade, desde que eu saí da prisão, esse foi sempre o principal assunto dos meus artigos. Também foi o que motivou minhas críticas aos Acordos de Oslo [entre israelenses e palestinos], que se baseavam na crença de que, quanto mais forte como ditador fosse Iasser Arafat [líder histórico dos palestinos, morto em novembro de 2004], melhores seriam nossas chances de paz, pois ele combateria o [grupo terrorista] Hamas melhor que Israel. Expus isso em um artigo de 1993 que se parece muito com os discursos que Bush tem feito agora: nós lidaremos com Arafat como um ditador para ele acabar com o Hamas, mas como ditador ele precisará de nós como inimigos para manter sua população sob controle.
A democracia é um interesse dos palestinos, eu dizia, mas também é um interesse de segurança de Israel. Na plataforma de meu partido eu já defendia que o alcance das concessões de Israel deveria ser medido de acordo com o alcance das reformas democráticas dos palestinos.
Quando entrei para o governo tentei introduzir esse princípio nas negociações, mas não consegui. Disseram-me que democracia não tinha nada a ver com segurança, ainda mais no Oriente Médio, e que falar de democracia no mundo árabe era um pretexto para não falar de paz.
Por isso é que continuei me sentindo um dissidente. Então, descobrir um outro dissidente, ainda mais sendo o presidente dos EUA, foi muito encorajador. Bush me perguntou o que era a coisa mais importante que ele poderia fazer. Eu respondi: "Fale aos dissidentes, deixe claro que o líder do mundo livre está com eles, não com os ditadores".

Folha - Quais as principais idéias de seu livro adotadas por Bush?
Sharansky -
Dou respostas para três tipos de ceticismo. Primeiro, defendo que a liberdade é para todos. Hoje dizem que a liberdade política não serve para os árabes, ontem eram os russos que não eram afeitos à democracia, os japoneses, os latino-americanos. Para mim isso não passa de racismo. Meu princípio é o de que qualquer povo, se puder escolher, preferirá a liberdade ao medo.
Segundo: a minha segurança depende do nível de liberdade do meu vizinho. Como eu escrevo no livro, é preferível uma democracia que o odeie a uma ditadura que o ame. O motivo é simples: democracias precisam de paz para se desenvolver, ditaduras precisam de guerra para se manter. Cedo ou tarde, ditadores precisam de um inimigo externo para se legitimar. Já democracias, por mais hostis, têm a guerra como última opção, já que dependem do apoio de seu povo.
Terceiro: o mundo livre pode desempenhar um papel fundamental na propagação da democracia, mesmo sem disparar nem um tiro sequer. Isso porque ditaduras são muito fracas internamente, pois despendem muita energia para controlar sua própria gente. Portanto, o mundo livre deveria parar de apaziguá-las.

Folha - A promoção da democracia justifica tudo, até a força?
Sharansky -
Eu jamais defendi o envio de tropas para promover a democracia. O que eu digo é que, se pararmos de apaziguar as ditaduras, elas desmoronam, deixam de ser perigosas. Se o mundo chegou ao ponto de ter de lutar contra as ditaduras é porque houve um longo período de apaziguamento. Hitler só se tornou tão perigoso porque foi apaziguado pelo mundo livre. O mesmo aconteceu com Stálin e Arafat. Com Saddam Hussein também. Durante anos o Ocidente achou que era bom tê-lo como aliado para conter o Irã.

Folha - É legítimo atacar um país que apóia o terror?
Sharansky -
Países atacados por terroristas têm o direito de contra-atacar. A Síria, por exemplo, abriga bases de grupos terroristas que continuam atacando civis no centro de Jerusalém e Tel Aviv. É claro que é legítimo atacar essas bases. Se Israel não faz isso é porque é muito difícil e perigoso, pois eles usam seus civis como escudo, já que essas bases ficam em centros populacionais. A Síria apóia grupos terroristas porque tem um regime ditatorial. Essa aliança com grupos terroristas é uma parte importante de sua sobrevivência. O papel do mundo livre é encorajar reformas na Síria. Não digo que isso deva ser feito necessariamente por meio da força.

Folha - Seus críticos dizem que suas idéias são simplistas demais.
Sharansky -
Em meu livro reconheço a complexidade do mundo e as diferenças entre os países, mesmo os de diretrizes semelhantes. O mundo tem muitas cores, mas o mundo da opressão é preto e branco. Quando você está preso numa ditadura como a Síria, vê o mundo em preto e branco. Não pode haver meio termo entre liberdade e medo. Entre as tiranias há diferenças e entre as democracias também. Para cada ditadura é preciso uma estratégia diferente.
No caso da URSS, o que ajudou a iniciar o colapso foi a exigência americana de que houvesse liberdade de imigração. É importante entender que o que define o nível de estabilidade no mundo não é a relação entre líderes, mas a relação entre os líderes e sua população.

Folha - Em seu livro, o sr. insiste no termo "clareza moral" para definir o que deve dar o tom na democratização do mundo. Bush tem isso?
Sharansky -
Clareza moral é entender que, com todas as grandes diferenças entre democracias, a diferença mais importante é entre as sociedades livres e as sociedades do medo. Nas democracias também há injustiças, mas elas podem ser corrigidas porque há instrumentos para isso. Sua pergunta é se os EUA têm padrões democráticos altos o suficiente para pregar sobre democracia. É claro que podemos falar de Watergate, de Guantánamo, mas é importante ver o desfecho que esses casos tiveram. Watergate levou ao impeachment de um presidente e [os maus-tratos em] Abu Ghraib levaram a punições. Nas ditaduras, as violações nem chegam ao conhecimento do público.

Folha - Não é contraditório impor a democracia como uma condição?
Sharansky -
Quem lê o meu livro entende que não não proponho a interferência nos assuntos de qualquer país. Repito: é de interesse da segurança de um país que seu vizinho seja democrático. Mas a democracia não pode ser imposta. Ninguém pode ousar impor seus valores a outro povo. Mas pode-se pressionar as ditaduras a darem a chance de escolha a suas populações.

Folha - Os EUA realizaram eleições no Iraque, mas o país continua longe de ter democracia e segurança. Qual sua previsão para o país?
Sharansky -
No Japão de 1945 também não havia segurança, e alguns assessores de Truman [presidente americano, 1945-53] chegaram a dizer que a democracia jamais daria certo no país. Depois que as tropas americanas se retiraram, o Japão se transformou numa das democracias mais estáveis do mundo. Ainda não há democracia no Iraque, que continua sendo uma sociedade do medo. Mas o regime antigo foi destruído, e as pessoas demonstraram nas eleições que estão dispostas a correr riscos para trocar o medo pela liberdade. Acredito que haja uma chance real de que o Iraque implemente reformas democratizantes.

Folha - As eleições iraquianas e palestinas e as manifestações no Líbano produziram a sensação de uma onda democratizante no Oriente Médio. Em que medida isso é verdade e qual o papel das políticas de Bush nesse processo?
Sharansky -
O governo Bush tem uma grande responsabilidade. Em nosso encontro eu ressaltei a importância de os líderes do mundo livre deixarem claro que seus aliados não são os ditadores. Quanto mais o mundo sair da indiferença, mais as vozes dos dissidentes começarão a ser ouvidas. O presidente Bush falou sobre isso, e as coisas começaram a mudar. No Egito, um importante dissidente foi libertado sob pressão dos EUA. Em seguida, [o ditador] Hosni Mubarak anunciou que o processo eleitoral será aberto a outros candidatos. Pode ser só retórica, mas não importa, pois já ficou demonstrado que a pressão no Egito funciona. No Líbano ocorre algo parecido. O fato de que 1 milhão de pessoas estão dispostas a ir às ruas para pedir democracia é uma prova de que elas se sentiram encorajadas pelo apoio do mundo livre.
Ontem acreditava-se que o mundo árabe e a democracia fossem como água e óleo. Hoje já não é possível ignorar que muita gente quer liberdade no Oriente Médio. Não tenho dúvida de que isso é fruto da mudança de política do líder do mundo livre.

Folha - O sr. recomendou a Bush ser mais duro com as ditaduras aliadas dos EUA?
Sharansky -
Claro, eu disse a ele que é uma ilusão achar que ditadores possam ser parceiros confiáveis. Em 1991, depois da Guerra do Golfo, eu disse a políticos americanos que os EUA haviam salvado a Arábia Saudita, pois o país teria deixado de existir se não fosse pela proteção dos EUA. Então, porque não condicionar a aliança a mínimas exigências de democracia? E todos me responderam que o interesse no país não era a democracia, mas a estabilidade, por causa do petróleo. Dez anos depois, no 11 de Setembro, todos puderam ver que tipo de estabilidade a Arábia Saudita é capaz de gerar.

Folha - O que sua experiência como dissidente na URSS lhe ensinou sobre ditaduras e democracia?
Sharansky -
A base de minhas teses é minha experiência como dissidente, algo que eu chamo de "teste da praça". Se você pode ir até a praça de sua cidade e expressar livremente suas idéias, você vive numa sociedade livre. Caso contrário, está numa sociedade do medo.


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