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ENTREVISTA
Sharansky, autor do livro de cabeceira do presidente, diz que o melhor para a segurança é não negociar com ditadores
Guru de Bush prega fim do apaziguamento
MARCELO NINIO
DA REDAÇÃO
O ex-dissidente soviético Natan
Sharansky jamais imaginou que
seu livro ganharia um defensor
tão poderoso. Poucos dias após
lançar nos EUA "The Case for Democracy" (em defesa da democracia), em novembro de 2004,
Sharansky foi chamado ao Salão
Oval, onde o presidente americano, George W. Bush, o recebeu
com a obra nas mãos, ansioso para discutir suas proposições.
Desde então, Bush já usou trechos inteiros do livro para sustentar sua política externa, inclusive
nos dois pronunciamentos mais
importantes do ano, o discurso de
posse do segundo mandato e o sobre o Estado da União.
Sharansky, 58, ministro israelense para Assuntos de Jerusalém
e da Diáspora, ficou mundialmente conhecido
ao lutar pelo direito de imigração na
antiga URSS, uma
campanha pela
qual pagou caro,
passando nove
anos preso, muitos deles na solitária. Em entrevista
por telefone à Folha, em Jerusalém,
ele explicou as teses que conquistaram Bush, sobretudo a de que o caminho mais curto
para obter segurança é a promoção da democracia. Sobre a admiração do presidente americano,
comentou: "Agora já não me sinto tão só".
Folha - Como o sr. vê a enorme influência de seu livro sobre Bush?
Natan Sharansky - O livro contém idéias apresentadas durante
anos em artigos e discursos meus,
mas que infelizmente não tiveram
muita influência, nem na direita
nem na esquerda, pois todos
eram muito céticos em relação à
democracia em lugares como o
mundo árabe. Achei que o livro
fosse despertar algum interesse
no mundo acadêmico e que, com
o tempo, chegaria a quem toma as
decisões políticas. O que certamente eu não esperava é que logo
na primeira semana de lançamento nos EUA minha editora ligaria para dizer que o presidente
Bush estava lendo o livro e que
queria me conhecer.
Quando me encontrei com
Bush, no Salão Oval, ele me disse:
"A vida inteira eu acreditei que a
liberdade não fora uma invenção
americana, mas um presente de
Deus para a humanidade". E começou a fazer um resumo extremamente fiel de minhas idéias.
Bush foi muito firme no princípio de que, para conseguir segurança e estabilidade, é preciso
buscar a liberdade. Acho que ele
instintivamente acreditava nessas
idéias e encontrou em meu livro
uma explicação racional, com
teoria, história e confronto moral.
Isso o encorajou muito.
Folha - E a contrapartida? Como a
Doutrina Bush do pós-11 de Setembro influenciou o sr.?
Sharansky - Seria mais exato dizer que ela me encorajou. Pouco
depois do 11 de Setembro, quando
Bush mencionou que os palestinos mereciam uma liderança democrática e que isso levaria à paz,
eu disse à CNN que aquele discurso era histórico, por ser a primeira
vez desde o fim da URSS que a ligação entre paz e segurança entrava na agenda internacional.
Na verdade, desde que eu saí da
prisão, esse foi sempre o principal
assunto dos meus artigos. Também foi o que motivou minhas
críticas aos Acordos de Oslo [entre israelenses e palestinos], que
se baseavam na crença de que,
quanto mais forte como ditador
fosse Iasser Arafat [líder histórico
dos palestinos, morto em novembro de 2004], melhores seriam
nossas chances de paz, pois ele
combateria o [grupo terrorista]
Hamas melhor que Israel. Expus
isso em um artigo de 1993 que se
parece muito com os discursos
que Bush tem feito agora: nós lidaremos com Arafat
como um ditador
para ele acabar
com o Hamas,
mas como ditador ele precisará
de nós como inimigos para manter sua população
sob controle.
A democracia é
um interesse dos
palestinos, eu dizia, mas também
é um interesse de
segurança de Israel. Na plataforma de meu partido eu já defendia
que o alcance das concessões de
Israel deveria ser medido de acordo com o alcance das reformas
democráticas dos palestinos.
Quando entrei para o governo
tentei introduzir esse princípio
nas negociações, mas não consegui. Disseram-me que democracia não tinha nada a ver com segurança, ainda mais no Oriente Médio, e que falar de democracia no
mundo árabe era um pretexto para não falar de paz.
Por isso é que continuei me sentindo um dissidente. Então, descobrir um outro dissidente, ainda
mais sendo o presidente dos EUA,
foi muito encorajador. Bush me
perguntou o que era a coisa mais
importante que ele poderia fazer.
Eu respondi: "Fale aos dissidentes, deixe claro que o líder do
mundo livre está com eles, não
com os ditadores".
Folha - Quais as principais idéias
de seu livro adotadas por Bush?
Sharansky - Dou respostas para
três tipos de ceticismo. Primeiro,
defendo que a liberdade é para todos. Hoje dizem que a liberdade
política não serve para os árabes,
ontem eram os russos que não
eram afeitos à democracia, os japoneses, os latino-americanos.
Para mim isso não passa de racismo. Meu princípio é o de que
qualquer povo, se puder escolher,
preferirá a liberdade ao medo.
Segundo: a minha segurança
depende do nível de liberdade do
meu vizinho. Como eu escrevo no
livro, é preferível uma democracia que o odeie a uma ditadura
que o ame. O motivo é simples:
democracias precisam de paz para se desenvolver, ditaduras precisam de guerra para se manter. Cedo ou tarde, ditadores precisam
de um inimigo externo para se legitimar. Já democracias, por mais
hostis, têm a guerra como última
opção, já que dependem do apoio
de seu povo.
Terceiro: o mundo livre pode
desempenhar um papel fundamental na propagação da democracia, mesmo sem disparar nem
um tiro sequer. Isso porque ditaduras são muito fracas internamente, pois despendem muita
energia para controlar sua própria gente. Portanto, o mundo livre deveria parar de apaziguá-las.
Folha - A promoção da democracia justifica tudo, até a força?
Sharansky - Eu jamais defendi o
envio de tropas para promover a
democracia. O que eu digo é que,
se pararmos de apaziguar as ditaduras, elas desmoronam, deixam
de ser perigosas. Se o mundo chegou ao ponto de ter de lutar contra as ditaduras é porque houve
um longo período de apaziguamento. Hitler só se tornou tão perigoso porque foi apaziguado pelo
mundo livre. O mesmo aconteceu
com Stálin e Arafat. Com Saddam
Hussein também. Durante anos o
Ocidente achou que era bom tê-lo
como aliado para conter o Irã.
Folha - É legítimo atacar um país
que apóia o terror?
Sharansky - Países atacados por
terroristas têm o direito de contra-atacar. A Síria, por exemplo,
abriga bases de grupos terroristas
que continuam atacando civis no
centro de Jerusalém e Tel Aviv. É
claro que é legítimo atacar essas
bases. Se Israel não faz isso é porque é muito difícil e perigoso, pois
eles usam seus civis como escudo,
já que essas bases ficam em centros populacionais. A Síria apóia
grupos terroristas porque tem um
regime ditatorial. Essa aliança
com grupos terroristas é uma parte importante de sua sobrevivência. O papel do mundo livre é encorajar reformas na Síria. Não digo que isso deva ser feito necessariamente por meio da força.
Folha - Seus críticos dizem que
suas idéias são simplistas demais.
Sharansky - Em meu livro reconheço a complexidade do mundo
e as diferenças entre os países,
mesmo os de diretrizes semelhantes. O mundo tem muitas cores,
mas o mundo da opressão é preto
e branco. Quando você está preso
numa ditadura como a Síria, vê o
mundo em preto e branco. Não
pode haver meio termo entre liberdade e medo. Entre as tiranias
há diferenças e entre as democracias também. Para cada ditadura é
preciso uma estratégia diferente.
No caso da URSS, o que ajudou
a iniciar o colapso foi a exigência
americana de que houvesse liberdade de imigração. É importante
entender que o
que define o nível
de estabilidade no
mundo não é a relação entre líderes,
mas a relação entre os líderes e sua
população.
Folha - Em seu livro, o sr. insiste no
termo "clareza moral" para definir o
que deve dar o tom
na democratização
do mundo. Bush
tem isso?
Sharansky - Clareza moral é entender que, com
todas as grandes
diferenças entre
democracias, a diferença mais importante é entre as sociedades livres e as sociedades do medo. Nas
democracias também há injustiças, mas elas podem ser corrigidas porque há instrumentos para
isso. Sua pergunta é se os EUA
têm padrões democráticos altos o
suficiente para pregar sobre democracia. É claro que podemos
falar de Watergate, de Guantánamo, mas é importante ver o desfecho que esses casos tiveram. Watergate levou ao impeachment de
um presidente e [os maus-tratos
em] Abu Ghraib levaram a punições. Nas ditaduras, as violações
nem chegam ao conhecimento do
público.
Folha - Não é contraditório impor
a democracia como uma condição?
Sharansky - Quem lê o meu livro
entende que não não proponho a
interferência nos assuntos de
qualquer país. Repito: é de interesse da segurança de um país que
seu vizinho seja democrático. Mas
a democracia não pode ser imposta. Ninguém pode ousar impor seus valores a outro povo.
Mas pode-se pressionar as ditaduras a darem a chance de escolha a suas populações.
Folha - Os EUA realizaram eleições no Iraque, mas o país continua
longe de ter democracia e segurança. Qual sua previsão para o país?
Sharansky - No Japão de 1945
também não havia segurança, e
alguns assessores de Truman
[presidente americano, 1945-53]
chegaram a dizer que a democracia jamais daria certo no país. Depois que as tropas americanas se
retiraram, o Japão se transformou
numa das democracias mais estáveis do mundo. Ainda não há democracia no Iraque, que continua
sendo uma sociedade do medo.
Mas o regime antigo foi destruído, e as pessoas demonstraram
nas eleições que estão dispostas a
correr riscos para trocar o medo
pela liberdade. Acredito que haja
uma chance real de que o Iraque
implemente reformas democratizantes.
Folha - As eleições iraquianas e
palestinas e as manifestações no
Líbano produziram a sensação de
uma onda democratizante no
Oriente Médio. Em que medida isso
é verdade e qual o papel das políticas de Bush nesse processo?
Sharansky - O governo Bush tem
uma grande responsabilidade.
Em nosso encontro eu ressaltei a
importância de os líderes do
mundo livre deixarem claro que
seus aliados não são os ditadores.
Quanto mais o mundo sair da indiferença, mais as vozes dos dissidentes começarão a ser ouvidas.
O presidente
Bush falou sobre
isso, e as coisas
começaram a mudar. No Egito, um
importante dissidente foi libertado sob pressão
dos EUA. Em seguida, [o ditador]
Hosni Mubarak
anunciou que o
processo eleitoral
será aberto a outros candidatos.
Pode ser só retórica, mas não importa, pois já ficou demonstrado
que a pressão no
Egito funciona.
No Líbano ocorre algo parecido.
O fato de que 1 milhão de pessoas
estão dispostas a ir às ruas para
pedir democracia é uma prova de
que elas se sentiram encorajadas
pelo apoio do mundo livre.
Ontem acreditava-se que o
mundo árabe e a democracia fossem como água e óleo. Hoje já não
é possível ignorar que muita gente
quer liberdade no Oriente Médio.
Não tenho dúvida de que isso é
fruto da mudança de política do
líder do mundo livre.
Folha - O sr. recomendou a Bush
ser mais duro com as ditaduras
aliadas dos EUA?
Sharansky - Claro, eu disse a ele
que é uma ilusão achar que ditadores possam ser parceiros confiáveis. Em 1991, depois da Guerra
do Golfo, eu disse a políticos americanos que os EUA haviam salvado a Arábia Saudita, pois o país teria deixado de existir se não fosse
pela proteção dos EUA. Então,
porque não condicionar a aliança
a mínimas exigências de democracia? E todos me responderam
que o interesse no país não era a
democracia, mas a estabilidade,
por causa do petróleo. Dez anos
depois, no 11 de Setembro, todos
puderam ver que tipo de estabilidade a Arábia Saudita é capaz de
gerar.
Folha - O que sua experiência como dissidente na URSS lhe ensinou
sobre ditaduras e democracia?
Sharansky - A base de minhas teses é minha experiência como dissidente, algo que eu chamo de
"teste da praça". Se você pode ir
até a praça de sua cidade e expressar livremente suas idéias, você vive numa sociedade livre. Caso
contrário, está numa sociedade
do medo.
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