São Paulo, quarta-feira, 20 de abril de 2005

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O NOVO PAPA

DESAFIOS

Papa é contra o relativismo, diz que é preciso resistir à "tentação do mundo moderno" e quer uma igreja mais coesa, ainda que menor

Globalização é o inimigo, crê Bento 16

DOS ENVIADOS ESPECIAIS A ROMA

Enfrentar o mundo globalizado e oferecer uma alternativa de fé para o homem moderno baseada num paradoxo, a elegia da tradição fundamentalista. Esse é o cenário que se desvenda para Bento 16 e, para a frustração dos analistas que gostariam de ver uma igreja mais antenada com o século 21, tudo indica que Joseph Ratzinger irá aplicar mão de ferro na condução de seu papado.
A globalização é o inimigo, crê Bento 16. Segundo cardeais ouvidos durante a semana de discussões na chamada Congregação Geral, como todo bom demônio, a globalização tem vários nomes e disfarces. Com isso, ela é ouvida tanto em uma conversa com um brasileiro preocupado com justiça social, como dom Cláudio Hummes, como na agora histórica homilia do então decano do Colégio Cardinalício advertindo contra o relativismo sobre todas as coisas -característica básica dos tempos globalizados.
Grande derrotados com a eleição de Ratzinger são os que acreditavam na necessidade de voltar ao espírito modernizante do Concílio Vaticano 2º, encontro entre 1962 e 1965 que flexibilizou a liturgia, abriu espaço para laicos e mulheres e deu poder às igrejas nos países. A seguir, alguns pontos específico que deverão ser enfrentados pela igreja sob Ratzinger:

 

Sexo e bioética -Talvez a faceta pública mais controversa do papado de João Paulo 2º tenha sido o extremo conservadorismo em temas comportamentais, como o casamento homossexual e o divórcio. É de se esperar um aprofundamento dessa rigidez com Ratzinger, não menos porque, na qualidade de guardião da doutrina da igreja por 23 anos, ele perseguiu teólogos que tentaram discutir o tema. A oposição a Bento 16, porém, virá de casa: é na Alemanha a residência do mais forte movimento favorável a algumas flexibilizações, como a de que pessoas divorciadas possam se casar novamente. No campo da bioética, a situação tende a ficar como está. Wojtyla foi um conservador extremos, Ratzinger dificilmente não o será. Na essência da discussão, há o que o Vaticano chama de "defesa da vida". A igreja acredita que um ser humano é um ser humano mesmo no estágio em que é um aglomerado de células. Assim, não há flexibilização visível no horizonte sobre aborto, uso de células embrionárias para pesquisa.
 

Colegialidade - O jargão que indica a descentralização da igreja era a principal preocupação dos cardeais presentes ao conclave e, com a vitória de Ratzinger, fica claro que lado foi majoritário. Os defensores da colegialidade queriam uma maior participação dos sínodos de bispos na gerência da igreja. Com Karol Wojtyla, o poder foi concentrado em Roma ao ponto de que decisões sobre a presença de dançarinos animistas numa missa na África tinha de ser autorizada pela Cúria.
 

Ecumenismo - Uma grande bandeira propagandística de João Paulo 2º, primeiro papa a entrar numa mesquita e numa sinagoga, o ecumenismo agora enfrenta a hora da verdade. Isso porque, por detrás da propaganda wojtyliana, havia a mão pesada de Ratzinger escrevendo tratados e dando ordens exatamente contrárias ao espírito da coisa. Em junho de 2000, Ratzinger mandou uma carta a todas as conferências de bispos do mundo avisando que não era possível falar em "igrejas irmãs" ao se referir a denominações cristãs como anglicanos e ortodoxos. "A única, santa, católica e apostólica igreja universal não é irmã, mas mãe de todas as igrejas universais". Pouco depois, fez publicar um de seus mais importantes documentos, aprovado pelo papa. O "Dominus Iesus" reforçava a visão de uma igreja de Roma superior. Foi tão mal recebido que João Paulo 2º, ao visitar o patriarca ortodoxo grego em Damasco em 2001, ouviu dele uma cobrança pessoal: "O cardeal Ratzinger quis dizer que somente a Igreja Católica é a igreja una verdadeira?", questionou Inácio 4º.

Com 45% do 1 bilhão de fiéis, América Latina é o principal campo de batalha do novo papa, que precisa de uma mensagem factível aos pobres

 

Europa - A eleição de um alemão tem uma razão. Números do próprio Vaticano mostram que em 1900 a Europa concentrava 70% dos católicos do mundo. Hoje, são aproximadamente 25%. Esse declínio abrupto tem muito a ver com o conforto experimentado no continente após duas guerras devastadoras. Na visão propalada na homilia de anteontem de Ratzinger, a igreja tem de resistir à "tentação do mundo moderno". Essa bonança material degenerou-se, na visão dos cardeais, em um consumismo que tomou ares de nova religião. Bento 16 defende uma igreja mais coesa, ainda que seja menor, e que ofereça uma fortaleza moral em tempos do relativismo irrestrito.
 

América Latina - É o principal campo de batalha, até pelo tamanho do rebanho de Roma na região. De 20% dos católicos em 1900, a América Latina virou a maior área sob influência nominal do Vaticano neste começo de século, com algo perto de 45% dos 1 bilhão de fiéis da denominação. Mas há a sangria, como no Brasil, onde os evangélicos neopetencostais abocanharam aproximadamente 10% do mercado da fé da mão dos católicos nos últimos dez anos, justamente em áreas pobres. Bento 16, europeu de país riquíssimo, terá que levar uma mensagem de conforto aos pobres que seja factível.
 

África - As dificuldades são semelhantes na África, que tem 13% dos católicos do mundo (eram menos de 1% em 1900). A mensagem de combate à injustiça social enfrenta concorrência ideológica pesada do islamismo. Há também o martírio da Aids, que assola o continente, e o modo quase indefensável do ponto de vista médico com que a facção de Ratzinger trata do tema -vetando camisinha, por exemplo, por ser também contraceptivo.
 

Islã - A relação com o islamismo é vital numa Europa que tem dificuldades para aceitar o choque cultural da explosão demográfica de imigrantes de países do norte da África e da Turquia, majoritariamente muçulmanos.
 

Ásia e a questão chinesa - No continente asiático, o trabalho de Bento 16 será ainda maior. O crescimento católico é bem mais tímido, de 4,2% para 11% do começo do século 20 para cá, por dois motivos. Primeiro, há religiões muito tradicionais, como hinduísmo, confucionismo e budismo. E há a China, onde o Partido Comunista no poder desde 1949 baniu a Igreja Católica e apadrinhou uma versão local do catolicismo que também reza pela sua cartilha. Está em curso uma aproximação entre Pequim e a Santa Sé, que não se reconhecem.
 

EUA - A igreja acaba de passar por uma traumática experiência, a partir das denúncias seguidas de abusos sexuais por padres. A pecha pegou e é difícil não ver a importância que é dada ao tema no principal país do mundo. Os EUA são a terra por excelência do consumo, embora a freqüência a igrejas católicas seja três vezes maior que na Europa. A queda nas vocações também é brutal, de 20 mil em 1970 para pouco menos de 6.000 agora.
 

Mulheres e leigos - Há uma grande pressão nas bases da igreja para uma maior participação das mulheres, talvez até como sacerdotes. Parece que a discussão ficará congelada enquanto durar o papado de Bento 16, já que ele foi um dos responsáveis pela ortodoxia na gestão de João Paulo 2º. Não existe uma ordem teológica de que mulheres não possam ocupar cargos na hierarquia da igreja, e sim uma tradição pelo fato de Jesus Cristo ter sido descrito como homem no Novo Testamento e Pedro, o primeiro papa. Não se mudam 2.000 anos de rotina do dia para a noite.
(IGOR GIELOW E CLÓVIS ROSSI)


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