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O NOVO PAPA
OPINIÃO
De liberal a linha-dura
MARCO POLITI
Por anos ele foi perseguido
com o apelido "Panzerkardinal", mas Joseph Ratzinger é, no
íntimo, um homem tímido, com
grande senso de humor e exibe a
jovialidade típica da personalidade bávara. É um equívoco confundir os filhos da Baviera com os
prussianos. Os bávaros trazem na
alma alguma coisa melódica e catolicamente misericordiosa que
falta aos rígidos filhos da Prússia.
Mas Joseph Ratzinger não deixou de ser duro em sua função como guardião da ortodoxia. Sobre
isso não se discute e, como diz seu
irmão, Joseph não gosta de brigar
e custa a entrar em conflito, mas
não muda mais de idéia quando
toma uma decisão.
De Markt al Inn, a aldeia bávara
onde ele nasceu em 16 de abril de
1927 (no sábado de Páscoa, em
meio a uma nevasca), até o trono
pontifical, seu caminho foi longo.
E sobretudo inesperado. Uma
mãe muito afetuosa, um irmão
que se tornou padre e condutor
dos célebres Pequenos Cantores
de Ratisbon, uma irmã de quem
muito gosta. O pai era policial.
Mas não devemos imaginar um
homem autoritário que forçasse o
filho a marchar. Era comissário de
polícia em uma cidade de província, e portanto severo, mas repudiava o nazismo e encarava a
França com admiração, preferindo o espírito de sua pequena pátria bávara à frieza prussiana e à
satânica fome de poder de Hitler.
Ratzinger ainda se lembra do pesar que sua família sentiu quando
Hitler deu início à Segunda Guerra Mundial.
Desde a infância, o novo pontífice era apaixonado por música.
Mozart, confessa abertamente,
tem o poder de comovê-lo e de fazê-lo submergir no drama da
existência humana. E entre suas
leituras juvenis estava "O Lobo da
Estepe", de Hermann Hesse, que
o influenciou na medida que o
niilismo do protagonista o levou a
refletir sobre o fato de que a exaltação do eu, levada ao extremo,
resulta em autodestruição. Entre
seus traços menos conhecidos está, igualmente, o apreço pela poesia. Sim, escreveu mais de um
poema, trabalhos dedicados à natureza, às festas religiosas, talvez
um tantinho sentimentais mas reveladores de sua sensibilidade.
Ainda em sua juventude, há a experiência do serviço militar aos 16
ou 17 anos, como membro de bateria antiaérea (não cabia a ele disparar o canhão, porém), e a visão
de bombardeiros aliados abatidos, caindo sobre Munique. Até
que chegou, como uma libertação, a queda da Alemanha nazista, que para ele representou um
breve período de internamento
em um campo norte-americano
de prisioneiros de guerra.
A Baviera é importante para as
raízes de Joseph Ratzinger. Significa uma religião popular viva, repleta de cor e música, de arquitetura barroca, de peregrinações no
campo, de intensa oração, de homenagens aos santos e à misericordiosa Madona, como na Europa meridional. Se Karol Wojtyla,
quando jovem, sonhava se tornar
eremita, Joseph Ratzinger teria
preferido ser sempre professor e
teólogo. Livre-docente em teologia com 32 anos de idade, ele lecionou Dogmática e Teologia em
Freisingen e depois trabalhou em
Bonn, Muenster e Tubingen. Aulas e livros pareciam ser seu destino se, em 1962, o arcebispo de Colônia, cardeal Frings, não o houvesse levado consigo ao Vaticano
como consultor para o recém-instalado Concílio Vaticano 2º.
Foi o período "revolucionário"
para Ratzinger. Hans Kueng era
seu mestre, Karl Rahner seu colega de estudo e trabalho. Os dois
pertenciam à primeira linha da
teologia crítica e faziam parte daquela rede internacional de teólogos que fornecia aos bispos da
Alemanha, França, Bélgica e Holanda (e, na Itália, aos arcebispos
Montini e Lercaro), a munição intelectual e doutrinária de que precisavam para derrubar o controle
dos conservadores sobre a preparação dos documentos conciliares, redigidos pela Cúria Romana,
e conduzir o concílio a uma posição mais reformista. Foram os
anos em que ele reprovaria a hierarquia eclesiástica por "segurar
demais as rédeas" e "impor leis rígidas em excesso".
Alguns anos depois, seria Ratzinger que aplicaria os freios. Assustado com o reformismo radical dos teólogos inovadores, ele
entrou em choque devido ao extremismo dos estudantes cristãos
em 1968, que gerou ataques contra a religião nas universidades,
sob a alegação de que ela representava a ponta de lança das injustiças capitalistas. O padre professor jamais esqueceu os efeitos
perversos de um panfleto intitulado "maldito Jesus". Remonta a esses anos sua rejeição vigorosa a
todas as formas de marxismo.
Nos anos 70, se tornou crítico
daquilo que definia como "o espírito negativo do Concílio", as mudanças que não promoviam a
união, o sentimento de "declínio"
que lhe parecia haver infectado a
vida da igreja. Ratzinger criticou a
decisão de abolir a missa tridentina e a reforma litúrgica que posicionou o altar no centro da assembléia, com o sacerdote voltado na direção dos fiéis. Sob o velho modelo, argumentou, todos
estavam voltados para Cristo, o
ponto focal. Depois, a relação eucarística passou a estar centrada
no elo entre o padre e os participantes. Nesse clima de oposição
aos resultados do Concílio, Ratzinger fundou, com o famoso teólogo De Lubac e com o apoio do
prelado conservador d. Giussani,
a revista "Communio", para combater a "Concilium", publicação
dos reformistas.
Teólogo bávaro, Ratzinger adora a
música de Mozart e ajudou a esquerda
no Concílio Vaticano 2º; tornou-se
intransigente defensor da ortodoxia
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O teólogo bávaro, protagonista
do Concílio e adversário de suas
derivações mais radicais, agradava a Paulo 6º. O papa Montini, para surpresa de muitos, o promoveu a bispo de Munique, na Baviera, e lhe conferiu a mitra cardinalícia, em 1977. Um ano depois,
Ratzinger estaria entre os grandes
eleitores que fariam de Karol
Wojtyla, arcebispo de Cracóvia, o
novo papa. Na véspera do conclave, o cardeal teólogo advertiu, em
longa entrevista, sobre o perigo de
que o marxismo, em sua versão
eurocomunista, pudesse influenciar de alguma forma a escolha da
igreja. Três anos mais tarde, João
Paulo 2º o convocou a Roma e o
nomeou ao segundo posto mais
importante da hierarquia católica, abaixo do papado: o de chefe
do Santo Ofício ou, na nova terminologia, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.
Baluarte da doutrina
Entre Ratzinger e João Paulo 2º
se criou um elo de amizade e afeto
profundo que levou João Paulo 2º,
em seus últimos anos, a receber
insistentes apelos de seu subordinado para que se afastasse do cargo em função de seus problemas
de saúde. Para João Paulo 2º, o
prefeito da Congregação para a
Doutrina da Fé era um baluarte
da doutrina, no qual podia confiar sem qualquer hesitação. João
Paulo 2º viajava e realizava gestos
proféticos, enquanto no Vaticano
o cardeal alemão limpava o terreno de todos os teólogos críticos da
nova postura da igreja: de Schillebeeckxs a Boff, passando por Curran e muitos outros acadêmicos
que perderam suas cátedras em
universidades católicas ou foram
privados do direito de publicar livros ou fazer conferências. No
curso dos anos, o cardeal combateu sistematicamente a Teologia
da Libertação, acusando-a de subordinação ao marxismo, chamou os regimes do Leste Europeu
de "a vergonha de nossa era",
pronunciou todos os vetos de que
João Paulo 2º precisava para manter a ordem na igreja.
Rejeitou o sacerdócio feminino,
o fim do celibato, o aumento da
influência laica na gestão das comunidades cristãs, o casamento
homossexual. Para o papa João
Paulo 2º, que usava uma linguagem menos agressiva, o cardeal
era o parceiro perfeito no grande
jogo contra o socialismo real e, na
América Latina, contra os movimentos cristãos revolucionários
ou simplesmente de esquerda. No
plano interno, Ratzinger concretizou para o pontífice polonês o objetivo de restaurar uma linha doutrinária severa, por meio da redação de um catecismo universal,
destinado a servir, com imprimatur papal, como base de qualquer
catecismo nacional.
O que quer que os bispos internacionais realizassem no campo
da doutrina, catequese ou liturgia,
a mão controladora do prefeito
para a Congregação para a Doutrina da Fé se fazia sentir.
Nos anos 90, causou choque o
documento escrito por Ratzinger
e aprovado por João Paulo 2º que
exaltava a primazia da função de
Cristo como salvador, de preferência a qualquer outra religião, e
a superioridade da Igreja Católica
como guardiã da plenitude e pureza da fé com respeito às demais
igrejas cristãs. "Dominus Jesus"
era o nome do documento, e sua
publicação causou sérias perturbações nas relações ecumênicas.
No entanto, com o passar do
tempo, Joseph Ratzinger se tornou um interlocutor cada vez
mais interessante, mesmo para o
mundo laico. A sua vontade de
instaurar um diálogo entre a fé e a
razão sem impor restrições suscitou respeita e atenção, entre os intelectuais laicos. Sua abordagem
quanto à crise do cristianismo na
sociedade contemporânea não é
banal, e sua reflexão sobre a marginalização da fé na sociedade laica não deixa de exibir certa dose
de autocrítica. Sua sensibilidade
com relação às culturas nacionais
é lúcida e aguda, especialmente as
extra-européias, na era da globalização. Ratzinger reconhece que a
ocidentalização pode provocar
radicalismo, frustração e incentivar o terrorismo, em diversas partes do mundo, exatamente porque não respeita as pessoas e as
tradições nacionais.
Nos últimos anos, o assunto que
mais o interessa é a relação entre
identidade e diálogo, defesa da
cristandade e relacionamento
com a sociedade contemporânea,
em um contexto no qual o relativismo ameaça destruir qualquer
elenco de valores.
Por mais justas ou por mais distorcidas que sejam suas respostas,
o conhecimento religioso e o vigor intelectual do novo papa fascinaram, perturbaram e convenceram o primeiro conclave do terceiro milênio. Na hora da decisão,
foi a ele que os cardeais de todo o
mundo confiaram o timão do
barco de Pedro.
Marco Politi é correspondente no Vaticano do jornal italiano "La Repubblica"
Tradução de Paulo Migliacci
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