São Paulo, quarta-feira, 20 de abril de 2005

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O NOVO PAPA

OPINIÃO

De liberal a linha-dura

MARCO POLITI

Por anos ele foi perseguido com o apelido "Panzerkardinal", mas Joseph Ratzinger é, no íntimo, um homem tímido, com grande senso de humor e exibe a jovialidade típica da personalidade bávara. É um equívoco confundir os filhos da Baviera com os prussianos. Os bávaros trazem na alma alguma coisa melódica e catolicamente misericordiosa que falta aos rígidos filhos da Prússia.
Mas Joseph Ratzinger não deixou de ser duro em sua função como guardião da ortodoxia. Sobre isso não se discute e, como diz seu irmão, Joseph não gosta de brigar e custa a entrar em conflito, mas não muda mais de idéia quando toma uma decisão.
De Markt al Inn, a aldeia bávara onde ele nasceu em 16 de abril de 1927 (no sábado de Páscoa, em meio a uma nevasca), até o trono pontifical, seu caminho foi longo. E sobretudo inesperado. Uma mãe muito afetuosa, um irmão que se tornou padre e condutor dos célebres Pequenos Cantores de Ratisbon, uma irmã de quem muito gosta. O pai era policial. Mas não devemos imaginar um homem autoritário que forçasse o filho a marchar. Era comissário de polícia em uma cidade de província, e portanto severo, mas repudiava o nazismo e encarava a França com admiração, preferindo o espírito de sua pequena pátria bávara à frieza prussiana e à satânica fome de poder de Hitler. Ratzinger ainda se lembra do pesar que sua família sentiu quando Hitler deu início à Segunda Guerra Mundial.
Desde a infância, o novo pontífice era apaixonado por música. Mozart, confessa abertamente, tem o poder de comovê-lo e de fazê-lo submergir no drama da existência humana. E entre suas leituras juvenis estava "O Lobo da Estepe", de Hermann Hesse, que o influenciou na medida que o niilismo do protagonista o levou a refletir sobre o fato de que a exaltação do eu, levada ao extremo, resulta em autodestruição. Entre seus traços menos conhecidos está, igualmente, o apreço pela poesia. Sim, escreveu mais de um poema, trabalhos dedicados à natureza, às festas religiosas, talvez um tantinho sentimentais mas reveladores de sua sensibilidade. Ainda em sua juventude, há a experiência do serviço militar aos 16 ou 17 anos, como membro de bateria antiaérea (não cabia a ele disparar o canhão, porém), e a visão de bombardeiros aliados abatidos, caindo sobre Munique. Até que chegou, como uma libertação, a queda da Alemanha nazista, que para ele representou um breve período de internamento em um campo norte-americano de prisioneiros de guerra.
A Baviera é importante para as raízes de Joseph Ratzinger. Significa uma religião popular viva, repleta de cor e música, de arquitetura barroca, de peregrinações no campo, de intensa oração, de homenagens aos santos e à misericordiosa Madona, como na Europa meridional. Se Karol Wojtyla, quando jovem, sonhava se tornar eremita, Joseph Ratzinger teria preferido ser sempre professor e teólogo. Livre-docente em teologia com 32 anos de idade, ele lecionou Dogmática e Teologia em Freisingen e depois trabalhou em Bonn, Muenster e Tubingen. Aulas e livros pareciam ser seu destino se, em 1962, o arcebispo de Colônia, cardeal Frings, não o houvesse levado consigo ao Vaticano como consultor para o recém-instalado Concílio Vaticano 2º.
Foi o período "revolucionário" para Ratzinger. Hans Kueng era seu mestre, Karl Rahner seu colega de estudo e trabalho. Os dois pertenciam à primeira linha da teologia crítica e faziam parte daquela rede internacional de teólogos que fornecia aos bispos da Alemanha, França, Bélgica e Holanda (e, na Itália, aos arcebispos Montini e Lercaro), a munição intelectual e doutrinária de que precisavam para derrubar o controle dos conservadores sobre a preparação dos documentos conciliares, redigidos pela Cúria Romana, e conduzir o concílio a uma posição mais reformista. Foram os anos em que ele reprovaria a hierarquia eclesiástica por "segurar demais as rédeas" e "impor leis rígidas em excesso".
Alguns anos depois, seria Ratzinger que aplicaria os freios. Assustado com o reformismo radical dos teólogos inovadores, ele entrou em choque devido ao extremismo dos estudantes cristãos em 1968, que gerou ataques contra a religião nas universidades, sob a alegação de que ela representava a ponta de lança das injustiças capitalistas. O padre professor jamais esqueceu os efeitos perversos de um panfleto intitulado "maldito Jesus". Remonta a esses anos sua rejeição vigorosa a todas as formas de marxismo.
Nos anos 70, se tornou crítico daquilo que definia como "o espírito negativo do Concílio", as mudanças que não promoviam a união, o sentimento de "declínio" que lhe parecia haver infectado a vida da igreja. Ratzinger criticou a decisão de abolir a missa tridentina e a reforma litúrgica que posicionou o altar no centro da assembléia, com o sacerdote voltado na direção dos fiéis. Sob o velho modelo, argumentou, todos estavam voltados para Cristo, o ponto focal. Depois, a relação eucarística passou a estar centrada no elo entre o padre e os participantes. Nesse clima de oposição aos resultados do Concílio, Ratzinger fundou, com o famoso teólogo De Lubac e com o apoio do prelado conservador d. Giussani, a revista "Communio", para combater a "Concilium", publicação dos reformistas.


Teólogo bávaro, Ratzinger adora a música de Mozart e ajudou a esquerda no Concílio Vaticano 2º; tornou-se intransigente defensor da ortodoxia

O teólogo bávaro, protagonista do Concílio e adversário de suas derivações mais radicais, agradava a Paulo 6º. O papa Montini, para surpresa de muitos, o promoveu a bispo de Munique, na Baviera, e lhe conferiu a mitra cardinalícia, em 1977. Um ano depois, Ratzinger estaria entre os grandes eleitores que fariam de Karol Wojtyla, arcebispo de Cracóvia, o novo papa. Na véspera do conclave, o cardeal teólogo advertiu, em longa entrevista, sobre o perigo de que o marxismo, em sua versão eurocomunista, pudesse influenciar de alguma forma a escolha da igreja. Três anos mais tarde, João Paulo 2º o convocou a Roma e o nomeou ao segundo posto mais importante da hierarquia católica, abaixo do papado: o de chefe do Santo Ofício ou, na nova terminologia, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.

Baluarte da doutrina
Entre Ratzinger e João Paulo 2º se criou um elo de amizade e afeto profundo que levou João Paulo 2º, em seus últimos anos, a receber insistentes apelos de seu subordinado para que se afastasse do cargo em função de seus problemas de saúde. Para João Paulo 2º, o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé era um baluarte da doutrina, no qual podia confiar sem qualquer hesitação. João Paulo 2º viajava e realizava gestos proféticos, enquanto no Vaticano o cardeal alemão limpava o terreno de todos os teólogos críticos da nova postura da igreja: de Schillebeeckxs a Boff, passando por Curran e muitos outros acadêmicos que perderam suas cátedras em universidades católicas ou foram privados do direito de publicar livros ou fazer conferências. No curso dos anos, o cardeal combateu sistematicamente a Teologia da Libertação, acusando-a de subordinação ao marxismo, chamou os regimes do Leste Europeu de "a vergonha de nossa era", pronunciou todos os vetos de que João Paulo 2º precisava para manter a ordem na igreja.
Rejeitou o sacerdócio feminino, o fim do celibato, o aumento da influência laica na gestão das comunidades cristãs, o casamento homossexual. Para o papa João Paulo 2º, que usava uma linguagem menos agressiva, o cardeal era o parceiro perfeito no grande jogo contra o socialismo real e, na América Latina, contra os movimentos cristãos revolucionários ou simplesmente de esquerda. No plano interno, Ratzinger concretizou para o pontífice polonês o objetivo de restaurar uma linha doutrinária severa, por meio da redação de um catecismo universal, destinado a servir, com imprimatur papal, como base de qualquer catecismo nacional.
O que quer que os bispos internacionais realizassem no campo da doutrina, catequese ou liturgia, a mão controladora do prefeito para a Congregação para a Doutrina da Fé se fazia sentir.
Nos anos 90, causou choque o documento escrito por Ratzinger e aprovado por João Paulo 2º que exaltava a primazia da função de Cristo como salvador, de preferência a qualquer outra religião, e a superioridade da Igreja Católica como guardiã da plenitude e pureza da fé com respeito às demais igrejas cristãs. "Dominus Jesus" era o nome do documento, e sua publicação causou sérias perturbações nas relações ecumênicas.
No entanto, com o passar do tempo, Joseph Ratzinger se tornou um interlocutor cada vez mais interessante, mesmo para o mundo laico. A sua vontade de instaurar um diálogo entre a fé e a razão sem impor restrições suscitou respeita e atenção, entre os intelectuais laicos. Sua abordagem quanto à crise do cristianismo na sociedade contemporânea não é banal, e sua reflexão sobre a marginalização da fé na sociedade laica não deixa de exibir certa dose de autocrítica. Sua sensibilidade com relação às culturas nacionais é lúcida e aguda, especialmente as extra-européias, na era da globalização. Ratzinger reconhece que a ocidentalização pode provocar radicalismo, frustração e incentivar o terrorismo, em diversas partes do mundo, exatamente porque não respeita as pessoas e as tradições nacionais.
Nos últimos anos, o assunto que mais o interessa é a relação entre identidade e diálogo, defesa da cristandade e relacionamento com a sociedade contemporânea, em um contexto no qual o relativismo ameaça destruir qualquer elenco de valores.
Por mais justas ou por mais distorcidas que sejam suas respostas, o conhecimento religioso e o vigor intelectual do novo papa fascinaram, perturbaram e convenceram o primeiro conclave do terceiro milênio. Na hora da decisão, foi a ele que os cardeais de todo o mundo confiaram o timão do barco de Pedro.

Marco Politi é correspondente no Vaticano do jornal italiano "La Repubblica"
Tradução de Paulo Migliacci


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