São Paulo, quarta-feira, 20 de abril de 2005

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Para teólogo, "pesou mais o temor do que a ousadia"

RAFAEL CARIELLO
DA SUCURSAL DO RIO

O teólogo e historiador da Igreja Católica José Oscar Beozzo afirma que, na eleição do papa Bento 16, "pesou mais o temor do que a ousadia". Rompendo uma tradição de quatro papas "pastorais", ou seja, acostumados a conduzir os fiéis de dioceses, a igreja elegeu um papa "da doutrina", da verdade da igreja, temendo o risco do relativismo no campo dos valores.
Devemos ter um papado rígido no campo doutrinal", diz padre Beozzo, autor de "500 Anos de Evangelização da América Latina" (Vozes).
Para ele, no entanto, a própria eleição do cardeal Ratzinger traz riscos à igreja, se de fato se confirmar a rigidez doutrinal. O espaço de diálogo dentro da igreja pode diminuir, e a questão central para a igreja hoje, a seu ver, o Terceiro Mundo, pode ficar deslocada do foco de atenção do novo papa.

 

Folha - Foi uma surpresa a escolha do cardeal Ratzinger?
José Oscar Beozzo -
Num certo sentido, eu diria que sim, pois quebra a tradição dos últimos papas. Todos, depois de Pio 12, não saíram da Cúria Romana. É uma certa ruptura. Os papas vinham sendo escolhidos a partir de bispos que estivessem à frente de uma diocese.

Folha - Havia alguma razão para isso?
Beozzo -
Foi uma opção de que a igreja se guiasse mais pela pastoral. Foi essa a virada de João 23: a de dizer que o centro da igreja não era a doutrina. Claro, ela existe, mas está subordinada à pastoral. Quando elegem agora justamente o cardeal encarregado da doutrina, vejo que o colégio se guiou por um certo receio. Acharam que o desafio maior era uma ameaça à doutrina, e não os desafios que vêm por exemplo do Terceiro Mundo.

Folha - O papa pode ser diferente do cardeal?
Beozzo -
A escolha do cardeal Ratzinger aponta para o fortalecimento da doutrina. Por outro lado, ele era a pessoa mais bem preparada dos que estavam lá dentro. Teologicamente, intelectualmente, é a pessoa mais preparada e de mais visão. Pode até surpreender, porque agora não está mais como guardião da doutrina, mas como bispo da cidade de Roma, que tem que atuar como bispo, como pastor. Ele tem que conduzir pastoralmente a igreja.
Espero que ele assuma as responsabilidades de pastor, e não de guardião da doutrina -outro terá que fazer isso agora. Agora ele mudou de função, então a gente espera que ele mude também de atitude. Inteligente e preparado, ele é.

Folha - O que o sr. acha que pesou na escolha?
Beozzo -
Acho que pesou mais o temor do que a ousadia. O temor de que a doutrina estaria em risco, como o próprio cardeal Ratzinger insiste. No sermão que fez aos cardeais antes do início do Conclave, ele insistiu em que o risco era o relativismo, que seria hoje uma nova forma de fundamentalismo. Devemos ter um papado rígido no campo doutrinal.

Folha - A igreja corre algum risco se assumir uma postura tão dura frente ao que vê como relativismo? Pode diminuir o espaço do diálogo?
Beozzo -
Pode. João 23 percebia muito esse risco, e dizia que uma coisa é a doutrina, outra coisa é a forma de apresentar a doutrina. Uma fala atenta às questões novas que não estavam contempladas. Não é mal que se tenha doutrina, o que não pode é se ter uma doutrina fechada em copas tanto às novas questões como à necessidade de uma reformulação, de uma nova apresentação, um esforço novo de apresentá-la.
O risco maior... O cardeal Ratzinger vem da tradição européia, centro-européia, uma tradição brilhante. De outro lado, hoje dois terços da igreja estão no Terceiro Mundo -e emergiu aí uma teologia que não é aquela. Ele tem muita dificuldade, ou pelo menos teve até agora, de acolher essas novas teologias [entre elas, a Teologia da Libertação], porque elas não fazem parte da longa tradição da teologia européia -que é ensinada na universidade, e lá produzida. Essas teologias da América Latina, da Ásia e da África são produzidas a partir da pastoral. É uma tradição recente que tenta conectar a teologia com a pastoral e com as demandas que vêm da sociedade.

Folha - Essas questões do Terceiro Mundo são centrais para a igreja hoje, a seu ver?
Beozzo -
Sim, porque quase três quartos da igreja estão aqui, no Terceiro Mundo. Ou ela é capaz de dar resposta aos desafios que vêm daqui, e produzir uma teologia capaz de dialogar com as nossas necessidades, ou ela não tem futuro. A missão da igreja é levar respostas às angústias de hoje.


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