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Cubanos absorvem discurso da "mudança sem loucuras"
Otimismo é maior entre mais velhos; para jovens, horizonte ainda é curto demais
Moeda dupla, com peso conversível só para "elite", ainda é nó cuja soltura
será medida do sucesso de transição econômica
FLÁVIA MARREIRO
ENVIADA ESPECIAL A HAVANA
"Por que aquele prédio vai
ser [reparado] primeiro? Só
queremos ser informados do
que acontece, dos critérios.
Não saber das coisas na rua ou
pela antena", diz uma senhora,
cabelos curtos descoloridos,
entre um punhado de gente
reunida quase na esquina da
rua Obispo, na parte antiga de
Havana. A antena é uma referência às parabólicas que captam as TVs de Miami.
Em certo momento, a mesma
senhora cita o discurso de Raúl
Castro ao assumir formalmente o poder em Cuba, há menos
de dois meses, prometendo resolver "as necessidades básicas
materiais e espirituais da população" -essa, como outras, frases repetidas quase literalmente por cubanos nas ruas.
A reunião, ao ar livre, na noite da última quarta-feira, foi
uma prestação de contas do
CDR (Comitê de Defesa da Revolução) da quadra, parte da rede montada nos anos 60 pelo
ditador Fidel Castro -grupos
de vizinhos que fazem vigilância na rua, trabalho político e
serviços comunitários, além de
muitas vezes terem dedurado
os que saíam da linha estrita
traçada pelo regime.
Rotina na vida cubana, os encontros parecem ter sido contaminados pela brisa de mudança e promessas de tolerância à divergência de opinião sopradas pelos discursos de Raúl,
acompanhadas das recentes
medidas liberalizantes, como a
venda de celulares e DVDs, antes vetados aos cubanos.
"Meu sobrinho, que já tinha
celular comprado com um estrangeiro, me avisou e vim
comprar o meu. Assim posso
falar com minha irmã na Espanha. Posso mandar uma mensagem: me liga!", explica a dona-de-casa Berta Fernández,
42, com a aquisição nas mãos
(os telefones recebem ligações
do exterior sem custos até dezembro). Ela diz que está até
otimista, que espera outras medidas como essa. Tudo muito
devagar, "sem loucuras".
Pelo mais barato aparelho
com linha pré-paga, o cubano
desembolsa 171 pesos conversíveis, os CUC (cotados a US$
0,89), que estão nos bolsos dos
funcionários de firmas estrangeiras, dos que ganham abonos
de incentivo em algumas estatais e de quem recebe de parentes que vivem no exterior ou
opera no mercado negro.
"Pior é proibição"
Mas até quem não adquiriu
os produtos liberados entrou
no clima de otimismo cauteloso, ajudado pelos elogios aos
ônibus comprados da China,
estreados em Havana neste
ano. Se os "camelos" -caminhões que puxavam apertadas
cabines duplas adaptadas para
até 400 passageiros- foram o
símbolo da debacle pós-soviética, os Yutong chineses são símbolo da recuperação relativa.
"Quem pode, que compre, eu
não posso, mas pior é proibição", diz o taxista Ernesto, repetindo que os ajustes maiores
na economia vêm depois.
As duas moedas -o peso cubano pago nos empregos estatais e a moeda forte que compra
quase tudo- são apontadas como principal nó da vida cubana.
"Se acabar a moeda dupla e todo mundo tiver dinheiro, as lojas vão ficar sem nada, peladas", completa Ernesto.
A idéia é ecoada pelo livreiro
de 70 anos, na praça das Armas:
"É preciso produzir mais para
ter mais. Isso diz todo economista, não é só Raúl". Espera
mudanças mais profundas?
"Not in my lifetime", gargalha,
em inglês mesmo, "não enquanto eu estiver vivo".
Mas o clima se enche de ceticismo na conversa com uma
vendedora da tradicional sorveteria Coppelia. "Dizem que
estamos em transição, dizem",
enfatiza a jovem de 26 anos,
que já comprara o DVD no mercado negro e é fã da série americana "Prison Break", pirateada.
"Os mais velhos dizem que
têm esperança porque já viveram várias fases, antes e dentro
da revolução. Eu só vivi isso
aqui e é muito duro. A roupa
que eu quero é em CUC, o xampu é em CUC, tudo. Quero ver
para crer", afirma, sorriso aberto, duas faixas de sombra glitter
na pele negra.
Também reclamam jovens
estudantes de odontologia da
Universidade de Havana, que
sonham em ser enviados ao exterior. "A melhor boate, a Duvil,
é 5 CUC. Se vou lá não compro
sapatos. Se entro, não dá para
beber nada", diz Luis, 20.
"Além de terem crescido na
fase mais complicada de Cuba,
há uma abismo cada vez maior
entre eles e quem comanda o
país", diz sobre os jovens Roberto Veiga, ele também um
otimista moderado, editor da
revista "Espacio Laical", ligada
à Igreja Católica, um dos poucos meios não-estatais e críticos da ilha.
"As pessoas estão mais animadas para falar, isso é certo",
completa Veiga. O "Granma",
do PC, ainda que não tenha publicado a maioria das medidas
de Raúl nem reportado os debates setoriais convocados por
ele, também fala aqui e ali de
mudanças e passou a publicar
cartas dos leitores.
Vai sair no "Granma"?
Outras fases de debates já
existiram na vida cubana. A diferença, diz um conhecedor da
ilha, é que as únicas críticas reproduzidas antes eram as feitas
pelo próprio Fidel. "Quantas
vezes estivemos numa reunião
em que todos votamos unanimemente, e apesar disso, nos
corredores, ouvíamos os que se
opunham à decisão?", questionava carta na sexta no jornal.
Na reunião de quarta-feira,
do CDR de Havana Velha, um
rapaz, pequeno e agitado, apontou para seu edifício-cortiço logo atrás, sem banheiros individuais, com teto a ponto de cair.
Duvidou que as reclamações
saíssem no "Granma". Como a
sua vizinha, disse que era mais
bem informado pela "antena".
Provocou risos contidos.
O dirigente prometeu cimento para as reformas mais urgentes e encerrou a reunião. Em
rodinhas, alguns ainda reverberavam o que disseram a senhora e o rapaz, enquanto os
demais subiam aos prédios, lotados de roupas nas varandas.
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