São Paulo, domingo, 20 de abril de 2008

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Cubanos absorvem discurso da "mudança sem loucuras"

Otimismo é maior entre mais velhos; para jovens, horizonte ainda é curto demais

Moeda dupla, com peso conversível só para "elite", ainda é nó cuja soltura será medida do sucesso de transição econômica

FLÁVIA MARREIRO
ENVIADA ESPECIAL A HAVANA

"Por que aquele prédio vai ser [reparado] primeiro? Só queremos ser informados do que acontece, dos critérios. Não saber das coisas na rua ou pela antena", diz uma senhora, cabelos curtos descoloridos, entre um punhado de gente reunida quase na esquina da rua Obispo, na parte antiga de Havana. A antena é uma referência às parabólicas que captam as TVs de Miami.
Em certo momento, a mesma senhora cita o discurso de Raúl Castro ao assumir formalmente o poder em Cuba, há menos de dois meses, prometendo resolver "as necessidades básicas materiais e espirituais da população" -essa, como outras, frases repetidas quase literalmente por cubanos nas ruas.
A reunião, ao ar livre, na noite da última quarta-feira, foi uma prestação de contas do CDR (Comitê de Defesa da Revolução) da quadra, parte da rede montada nos anos 60 pelo ditador Fidel Castro -grupos de vizinhos que fazem vigilância na rua, trabalho político e serviços comunitários, além de muitas vezes terem dedurado os que saíam da linha estrita traçada pelo regime.
Rotina na vida cubana, os encontros parecem ter sido contaminados pela brisa de mudança e promessas de tolerância à divergência de opinião sopradas pelos discursos de Raúl, acompanhadas das recentes medidas liberalizantes, como a venda de celulares e DVDs, antes vetados aos cubanos.
"Meu sobrinho, que já tinha celular comprado com um estrangeiro, me avisou e vim comprar o meu. Assim posso falar com minha irmã na Espanha. Posso mandar uma mensagem: me liga!", explica a dona-de-casa Berta Fernández, 42, com a aquisição nas mãos (os telefones recebem ligações do exterior sem custos até dezembro). Ela diz que está até otimista, que espera outras medidas como essa. Tudo muito devagar, "sem loucuras".
Pelo mais barato aparelho com linha pré-paga, o cubano desembolsa 171 pesos conversíveis, os CUC (cotados a US$ 0,89), que estão nos bolsos dos funcionários de firmas estrangeiras, dos que ganham abonos de incentivo em algumas estatais e de quem recebe de parentes que vivem no exterior ou opera no mercado negro.

"Pior é proibição"
Mas até quem não adquiriu os produtos liberados entrou no clima de otimismo cauteloso, ajudado pelos elogios aos ônibus comprados da China, estreados em Havana neste ano. Se os "camelos" -caminhões que puxavam apertadas cabines duplas adaptadas para até 400 passageiros- foram o símbolo da debacle pós-soviética, os Yutong chineses são símbolo da recuperação relativa.
"Quem pode, que compre, eu não posso, mas pior é proibição", diz o taxista Ernesto, repetindo que os ajustes maiores na economia vêm depois.
As duas moedas -o peso cubano pago nos empregos estatais e a moeda forte que compra quase tudo- são apontadas como principal nó da vida cubana. "Se acabar a moeda dupla e todo mundo tiver dinheiro, as lojas vão ficar sem nada, peladas", completa Ernesto.
A idéia é ecoada pelo livreiro de 70 anos, na praça das Armas: "É preciso produzir mais para ter mais. Isso diz todo economista, não é só Raúl". Espera mudanças mais profundas? "Not in my lifetime", gargalha, em inglês mesmo, "não enquanto eu estiver vivo".
Mas o clima se enche de ceticismo na conversa com uma vendedora da tradicional sorveteria Coppelia. "Dizem que estamos em transição, dizem", enfatiza a jovem de 26 anos, que já comprara o DVD no mercado negro e é fã da série americana "Prison Break", pirateada.
"Os mais velhos dizem que têm esperança porque já viveram várias fases, antes e dentro da revolução. Eu só vivi isso aqui e é muito duro. A roupa que eu quero é em CUC, o xampu é em CUC, tudo. Quero ver para crer", afirma, sorriso aberto, duas faixas de sombra glitter na pele negra.
Também reclamam jovens estudantes de odontologia da Universidade de Havana, que sonham em ser enviados ao exterior. "A melhor boate, a Duvil, é 5 CUC. Se vou lá não compro sapatos. Se entro, não dá para beber nada", diz Luis, 20.
"Além de terem crescido na fase mais complicada de Cuba, há uma abismo cada vez maior entre eles e quem comanda o país", diz sobre os jovens Roberto Veiga, ele também um otimista moderado, editor da revista "Espacio Laical", ligada à Igreja Católica, um dos poucos meios não-estatais e críticos da ilha.
"As pessoas estão mais animadas para falar, isso é certo", completa Veiga. O "Granma", do PC, ainda que não tenha publicado a maioria das medidas de Raúl nem reportado os debates setoriais convocados por ele, também fala aqui e ali de mudanças e passou a publicar cartas dos leitores.

Vai sair no "Granma"?
Outras fases de debates já existiram na vida cubana. A diferença, diz um conhecedor da ilha, é que as únicas críticas reproduzidas antes eram as feitas pelo próprio Fidel. "Quantas vezes estivemos numa reunião em que todos votamos unanimemente, e apesar disso, nos corredores, ouvíamos os que se opunham à decisão?", questionava carta na sexta no jornal.
Na reunião de quarta-feira, do CDR de Havana Velha, um rapaz, pequeno e agitado, apontou para seu edifício-cortiço logo atrás, sem banheiros individuais, com teto a ponto de cair. Duvidou que as reclamações saíssem no "Granma". Como a sua vizinha, disse que era mais bem informado pela "antena". Provocou risos contidos.
O dirigente prometeu cimento para as reformas mais urgentes e encerrou a reunião. Em rodinhas, alguns ainda reverberavam o que disseram a senhora e o rapaz, enquanto os demais subiam aos prédios, lotados de roupas nas varandas.


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