São Paulo, domingo, 20 de junho de 2004

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EDUCAÇÃO

Crise fez número de jovens fora da escola e sem trabalho crescer 38%

Argentina enfrenta queda da qualidade de ensino e evasão

CLÁUDIA DIANNI
DE BUENOS AIRES

Durante muito tempo a Argentina foi considerada modelo para o Brasil na área de educação. Com elevados índices de alfabetização, o país, que foi pioneiro na universalização do ensino básico público ainda no século 19, hoje enfrenta a deterioração da qualidade de ensino, que passou a ser considerada por especialistas tão ruim quanto em outros países latino-americanos.
Além da queda na qualidade, os argentinos enfrentam um outro problema novo no país: a evasão escolar. De acordo com a consultoria Equis, nos últimos quatro anos, quando a mais feroz crise econômica atravessada pelo país deixou metade da população na pobreza, houve um aumento de 38% no número de jovens entre 15 e 24 anos que não trabalham nem freqüentam a escola.
"A crise econômica produziu a figura do jovem absolutamente inativo, um fenômeno muito conhecido no Brasil, mas que na Argentina é novidade", afirmou o especialista em educação da Universidade Torcuato Di Tella (Buenos Aires), Mariano Narodowski.
Ironicamente, o crescimento econômico dos anos 90 ajudou a produzir esse fenômeno. Nesse período, segundo Narodowski, 700 mil novos alunos entraram no sistema público secundário.
Os gastos com educação, porém, não acompanharam o aumento da demanda. A Constituição argentina determina que o setor receba anualmente 6% do PIB (Produto Interno Bruto). Nos anos 90, segundo a Universidade de San Andrés (Buenos Aires), a média de gastos foi de 4,7%.
"Pela primeira vez na história da Argentina, os filhos estão tendo uma qualidade de ensino pior do que a dos país. É o contrário do que acontece no Brasil, onde se está produzindo uma inclusão dos pobres no sistema educativo", disse Silvina Gvirtz, diretora da área de educação da Universidade de San Andrés.
Surpreso com a educação de má qualidade, o país debate acaloradamente a questão.

"Ernesto Kisner"
No mês passado, o professor de direito da Universidade de La Plata, Bernardo Areco, aplicou um teste de conhecimentos gerais aos alunos do primeiro ano. Surpreendeu-se tanto com o resultado que o assunto gerou uma intensa discussão na mídia.
Os alunos chamaram o presidente Néstor Kirchner de "Ernesto Kisner", disseram que Auschwitz, o campo de concentração, era um biólogo, que a Guerra Fria foi uma invenção de Hollywood ou um conflito bélico que matou muita gente por causa das baixas temperaturas.
O processo não é totalmente novo. O país começou a perder liderança na área de educação na década de 60, durante os governos militares, mas o fosso entre alunos pobres e ricos, comum na maioria dos países da região, aumentou na Argentina nos anos 90, quando o ensino privado explodiu.
A Argentina ainda tem um dos maiores índices de escolaridade da região. Cerca de 75% da população tem nível secundário e 96% das crianças estão cobertas pelo ensino básico, de acordo com a Unesco, o braço da ONU para educação e cultura. O problema não é quantidade, mas qualidade.
Com a deterioração do ensino, a classe média abandonou as escolas públicas e procurou o sistema privado. Atualmente, 25% dos argentinos freqüentam escolas privadas. A notícia seria boa se fosse por uma questão de distribuição. Quem tem dinheiro paga, deixando as vagas públicas para os mais pobres.
Mas o problema é mais complexo, explicou a diretora da Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) Guillermina Tramont. "O número de alunos nas escolas privadas está aumentando porque a qualidade caiu, não porque não há vagas. Isso produz um esvaziamento do ensino, cuja qualidade está baseada no capital cultural que o grupo aporta."
Segundo Narodowski, a classe média é a que tem poder reivindicatório. Com a saída desse setor, as escolas públicas, assim como no Brasil, compara, se transformaram em "comedouros". "A escola passou a suprir as necessidades básicas dos alunos", disse Juan Carlos Tedesco, especialista da Unesco.
A escola pública argentina gozou de prestígio internacional durante muito tempo. A primeira universidade foi fundada em 1613. O país universalizou o ensino público em 1884. Em 1914, 70% da população argentina já estava alfabetizada e, em 1947, toda a população. Nos anos 50, o general Juan Domingos Perón multiplicou o ensino técnico e as matriculas no nível secundário no país. "Nesse período a Argentina consolidou um sistema de ensino de alta qualidade e democrático, que não fazia distinção de classes", afirmou Gvirtz.
A inspetora da Escola Don Bosco, Alícia dal Val, localizada na grande Buenos Aires, contou que a escola, mesmo pública e periférica, tinha alunos de classe média.
"Mesmo morando em bairros de classe média, os alunos se deslocavam para estudar aqui por causa da tradição do ensino", afirmou, lembrando que a escola chegou a ter palestras do escritor Jorge Luís Borges nos anos 80. "Hoje, os 800 alunos são todos moradores da Vila Itati, a maior favela a sul de Buenos Aires."


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