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BEATRIZ SARLO
Para intelectual argentina, presidente não é capaz de compreender importância da integração da região
Kirchner está alienado em relação a AL, diz ensaísta
SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN
Néstor Kirchner desconfia dos
créditos que Lula vem angariando
na América Latina. Essa é a opinião da ensaísta e crítica literária
Beatriz Sarlo, 62, para quem o
presidente argentino imagina estar numa competição com o brasileiro pelo posto de "progressista
responsável" do continente.
Sarlo, uma das mais influentes
intelectuais do país vizinho, crê que
Kirchner não é capaz de compreender a importância da aproximação da Argentina e do Brasil
com o resto da América Latina.
Em entrevista à Folha, por telefone, de Buenos Aires, a ensaísta
fez também um balanço dos três
anos do "estallido", maneira como os argentinos se referem às
manifestações de rua que levaram
ao fim do governo De La Rúa, em
20 de dezembro de 2001, e comentou o atual debate sobre o passado
da ditadura no Chile e no Brasil.
"O que diferencia o processo argentino em relação aos outros
países do Cone Sul é o fato de ter
julgado e processado os militares
logo após o fim da ditadura (1976-1983)", disse.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Folha - Qual sua opinião sobre a
atual crise comercial entre Brasil e
Argentina?
Beatriz Sarlo - Esse tipo de coisa
deve abundar na construção do
Mercosul. Mas creio que a ausência de Kirchner no lançamento da
Comunidade Sul-Americana de
Nações, no Peru, foi um fato muito mais grave. Nosso presidente
tem uma visão de curto prazo a
respeito dessas coisas. Ele desconfia dos créditos que Lula pode colher, um político com quem
Kirchner imagina estar competindo, pelo lugar de "progressista
responsável" do continente.
Nesse sentido, Kirchner é provinciano, ainda que intelectualmente esteja convencido de que a
Argentina não pode se dar nenhum luxo isolacionista.
Folha - Como vê a relação política
entre os dois países hoje?
Sarlo - O Mercosul tornou-se algo fundamental para ambos, mas
não sei se Kirchner tem isso claro.
Primeiro porque ele e Lula estão
competindo de uma maneira infantil. Querem ver quem corre
mais rápido os 50m. Parece mais
uma disputa futebolística. Segundo, porque Kirchner tem uma visão provinciana do mundo. Não
sei se compreende a importância
de uma unidade regional.
Digo que o fato de não ter ido ao
lançamento da Comunidade Sul-Americana de Nações é muito significativo até por razões simbólicas. Foi no Peru, no século 19, que
o maior herói argentino, San
Martín, enunciou o desenho de
uma unidade. Quer dizer, até pelas mais tontas razões alegóricas,
Kirchner deveria ter ido.
Isso demonstra que ele não
compreende mesmo o significado
dessas coisas.
Folha - A sra. acha que a reeleição
de George W. Bush favorece projetos de integração da AL?
Sarlo - Eu li a íntegra dos três debates entre Bush e John Kerry antes das eleições e as palavras
"América Latina" não foram
mencionadas uma única vez. Isso
obviamente não é bom.
Mas creio que, ainda que os norte-americanos estejam com a
atenção centrada no Oriente Médio, o Brasil é um país que não
perderão de vista. Podem distrair-se um tempo com a Argentina,
uma vez que comecemos a pagar
a dívida. Mas não podem passar
por alto pelo Brasil.
O destino de países como a Argentina e o Uruguai depende da
relação com o Brasil e com o que
aconteça com o Brasil.
Folha - Há três anos, a Argentina
se viu à beira do abismo. Mas desde
a eleição de Kirchner se pode notar
certo ar de otimismo na sociedade.
Como vê a Argentina hoje?
Sarlo - Não acho certo dizer que
a transformação se produziu depois da eleição de Kirchner. Houve todo um processo, que começou com a decisão do Partido Justicialista, através de Eduardo Duhalde, de oferecer governo a um
país em estado de dissolução.
Quase todos pensamos que Duhalde fracassaria. O que deveria
ser estudado hoje são as razões
pelas quais não fracassou.
Folha - E quais seriam elas?
Sarlo - Em primeiro lugar, o fato
de as decisões econômicas tomadas por Duhalde e Kirchner terem
estabelecido uma continuidade
entre os dois governos.
Depois, é preciso ver a capacidade que tem o peronismo de impedir que qualquer outro partido
governe. O peronismo é um especialista furioso em impedir que
outros partidos exerçam o poder.
Mas também é preciso reconhecer a sua outra cara, que é de conseguir efetivamente governar, inclusive num período de transição.
Folha - E o que faz com que consiga governar?
Sarlo - Veja o exemplo de Kirchner. Ele era o candidato que Duhalde menos queria. Mas, uma
vez que se impôs, houve um alinhamento imediato dos peronistas -exceto algum caudilho das
províncias e exceto Menem, mas
este já está fora da política.
Alinhar-se atrás do poder é uma
característica do peronismo. Internamente, o partido dá a impressão de viver uma permanente
disputa. Mas, se observarmos de
maneira mais ampla, veremos
que a história do peronismo é
uma história de alinhamentos.
Foi o que aconteceu com Menem. Na época, pessoas que tinham ideologia oposta à sua revolução neoconservadora se alinharam com ele.
São características do peronismo que fazem com que, tragicamente, seja hoje o único partido
que consiga governar o país.
Folha - O que aconteceu com a
oposição?
Sarlo - A esquerda argentina cometeu um erro ao ir às eleições de
1999 com o radicalismo (UCR, a
União Cívica Radical). E pagará
por isso por muitos anos. Esse erro político teve que ver com um
diagnóstico equivocado pelo qual
se pensou que era necessário fazer
qualquer coisa para impedir que
Duhalde [então candidato peronista à Presidência] vencesse.
Mas era necessário fazer política, e não uma aliança baseada
num equívoco. E o resultado foi
catastrófico, pois se misturaram
elementos que não podiam se
misturar, de onde não sairia nem
governo nem projeto.
Foi assim que desapareceu a
força de centro-esquerda que havia crescido muito nos anos 90.
Folha - E o radicalismo?
Sarlo - Hoje se vê na UCR um
partido que deixou duas vezes o
poder no meio de crises imensas,
com Alfonsín e De la Rúa. É muito
difícil que esse partido, de imediato, possa ser considerado uma alternativa. Ainda assim, não se pode esquecer que se trata de um
partido que tem deputados e poder nas províncias. Está desorganizado, desarticulado, mas não
diria que está desaparecido.
Folha - Você vê uma mudança na
sociedade desde o "estallido"?
Houve uma reflexão, principalmente por parte da classe média?
Sarlo - Nos anos 90, a sociedade
argentina havia mudado de modo
catastrófico. Nunca fez parte da
experiência argentina um desemprego tão alto como o que vemos
agora. Isso terá conseqüências
por muitas décadas.
Já a crise de 2001 forçou a classe
média a reconhecer que vivíamos
um processo de "latino-americanização" dramática. A reconhecer
que a Argentina já não era mais o
país de ascensão social constante
e de um mercado de trabalho que
sempre incorporava.
Mas hoje não estou tão segura
de que esse reconhecimento ainda exista. Tenho a impressão de
que aqueles que não foram afetados pela crise voltaram a seus costumes sociais e culturais.
A crise pode ter sido um momento em que a classe média realmente olhou para o resto da sociedade, para os que empobreciam e sofriam suas conseqüências diretas, mas não sei se esse
olhar se conserva com a mesma
atenção e solidariedade que existiram em 2002.
Folha - O cinema argentino retrata bem esse momento político?
Sarlo - O fenômeno do cinema
argentino é muito interessante.
Poderia citar um punhado de filmes de caráter documental ou
dos que oscilam entre a ficção e o
documental que estão jogando
luz a fatos importantes da história
argentina recente. E que trazem à
tona questões como a dos desaparecidos e dos setores populares.
Porém, se repararmos na lista
dos filmes que realmente são assistidos pelo público médio argentino, veremos que é composta
principalmente pelas produções
dos grandes estúdios americanos.
O cinema argentino é um fenômeno cultural de base predominantemente urbana. Pertence a
Buenos Aires. A circulação desse
tipo de cinema no resto do país é
limitada. E mesmo em Buenos Aires trata-se de uma produção que
circula só em uma zona de classe
média progressiva culturalmente.
É preciso levar isso em conta.
Folha - No Chile, os militares acabam de reconhecer os crimes da ditadura; no Brasil, a questão ainda
está em aberto e voltou à pauta do
dia. É possível comparar esses processos com o argentino?
Sarlo - O que diferencia o processo argentino em relação aos
outros países do Cone Sul é o fato
de ter julgado e processado os militares logo após o fim da ditadura
(1976-1983). Essa iniciativa de
Raúl Alfonsín impediu retrocessos. Ainda que depois leis tenham
surgido para impedir novos processos e militares tenham sido indultados, esse foi um feito essencial. Na minha opinião, o fato
mais importante de nossa história
nos últimos 20 anos.
Folha - Por que?
Sarlo - Por ter instalado na sociedade a prova jurídica do terrorismo de Estado e marcado a transição democrática. O indulto de
Menem não pôde impedir que
outros julgamentos começassem
a operar. Armou-se uma trama
contra os repressores de Estado.
A possibilidade de julgar Pinochet começou em Londres há
apenas quatro anos. A transição
chilena esteve baseada no acordo.
Isso foi o que deu estabilidade a
ela. Já a transição argentina foi
muito tumultuada, com várias
ameaças de golpe de Estado.
Folha - Lula tem sido criticado por
não facilitar a abertura de arquivos
sobre o regime militar brasileiro.
Sarlo - O Brasil também teve
seus 20 anos de democracia e os
governos anteriores tampouco
tocaram na questão dos desaparecidos. Não se pode dizer simplesmente que Lula é um obstáculo.
O que define esses processos são
os pactos das elites. Nossas sociedades, a argentina, a chilena e a
brasileira, têm pactos diferentes,
pois a natureza das nossas elites é
diversa. Não é simples comparar.
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