São Paulo, segunda-feira, 20 de dezembro de 2004

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BEATRIZ SARLO

Para intelectual argentina, presidente não é capaz de compreender importância da integração da região

Kirchner está alienado em relação a AL, diz ensaísta

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

Néstor Kirchner desconfia dos créditos que Lula vem angariando na América Latina. Essa é a opinião da ensaísta e crítica literária Beatriz Sarlo, 62, para quem o presidente argentino imagina estar numa competição com o brasileiro pelo posto de "progressista responsável" do continente.
Sarlo, uma das mais influentes intelectuais do país vizinho, crê que Kirchner não é capaz de compreender a importância da aproximação da Argentina e do Brasil com o resto da América Latina.
Em entrevista à Folha, por telefone, de Buenos Aires, a ensaísta fez também um balanço dos três anos do "estallido", maneira como os argentinos se referem às manifestações de rua que levaram ao fim do governo De La Rúa, em 20 de dezembro de 2001, e comentou o atual debate sobre o passado da ditadura no Chile e no Brasil.
"O que diferencia o processo argentino em relação aos outros países do Cone Sul é o fato de ter julgado e processado os militares logo após o fim da ditadura (1976-1983)", disse.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
 

Folha - Qual sua opinião sobre a atual crise comercial entre Brasil e Argentina?
Beatriz Sarlo -
Esse tipo de coisa deve abundar na construção do Mercosul. Mas creio que a ausência de Kirchner no lançamento da Comunidade Sul-Americana de Nações, no Peru, foi um fato muito mais grave. Nosso presidente tem uma visão de curto prazo a respeito dessas coisas. Ele desconfia dos créditos que Lula pode colher, um político com quem Kirchner imagina estar competindo, pelo lugar de "progressista responsável" do continente.
Nesse sentido, Kirchner é provinciano, ainda que intelectualmente esteja convencido de que a Argentina não pode se dar nenhum luxo isolacionista.

Folha - Como vê a relação política entre os dois países hoje?
Sarlo -
O Mercosul tornou-se algo fundamental para ambos, mas não sei se Kirchner tem isso claro.
Primeiro porque ele e Lula estão competindo de uma maneira infantil. Querem ver quem corre mais rápido os 50m. Parece mais uma disputa futebolística. Segundo, porque Kirchner tem uma visão provinciana do mundo. Não sei se compreende a importância de uma unidade regional.
Digo que o fato de não ter ido ao lançamento da Comunidade Sul-Americana de Nações é muito significativo até por razões simbólicas. Foi no Peru, no século 19, que o maior herói argentino, San Martín, enunciou o desenho de uma unidade. Quer dizer, até pelas mais tontas razões alegóricas, Kirchner deveria ter ido.
Isso demonstra que ele não compreende mesmo o significado dessas coisas.

Folha - A sra. acha que a reeleição de George W. Bush favorece projetos de integração da AL?
Sarlo -
Eu li a íntegra dos três debates entre Bush e John Kerry antes das eleições e as palavras "América Latina" não foram mencionadas uma única vez. Isso obviamente não é bom.
Mas creio que, ainda que os norte-americanos estejam com a atenção centrada no Oriente Médio, o Brasil é um país que não perderão de vista. Podem distrair-se um tempo com a Argentina, uma vez que comecemos a pagar a dívida. Mas não podem passar por alto pelo Brasil.
O destino de países como a Argentina e o Uruguai depende da relação com o Brasil e com o que aconteça com o Brasil.

Folha - Há três anos, a Argentina se viu à beira do abismo. Mas desde a eleição de Kirchner se pode notar certo ar de otimismo na sociedade. Como vê a Argentina hoje?
Sarlo -
Não acho certo dizer que a transformação se produziu depois da eleição de Kirchner. Houve todo um processo, que começou com a decisão do Partido Justicialista, através de Eduardo Duhalde, de oferecer governo a um país em estado de dissolução.
Quase todos pensamos que Duhalde fracassaria. O que deveria ser estudado hoje são as razões pelas quais não fracassou.

Folha - E quais seriam elas?
Sarlo -
Em primeiro lugar, o fato de as decisões econômicas tomadas por Duhalde e Kirchner terem estabelecido uma continuidade entre os dois governos.
Depois, é preciso ver a capacidade que tem o peronismo de impedir que qualquer outro partido governe. O peronismo é um especialista furioso em impedir que outros partidos exerçam o poder.
Mas também é preciso reconhecer a sua outra cara, que é de conseguir efetivamente governar, inclusive num período de transição.

Folha - E o que faz com que consiga governar?
Sarlo -
Veja o exemplo de Kirchner. Ele era o candidato que Duhalde menos queria. Mas, uma vez que se impôs, houve um alinhamento imediato dos peronistas -exceto algum caudilho das províncias e exceto Menem, mas este já está fora da política.
Alinhar-se atrás do poder é uma característica do peronismo. Internamente, o partido dá a impressão de viver uma permanente disputa. Mas, se observarmos de maneira mais ampla, veremos que a história do peronismo é uma história de alinhamentos.
Foi o que aconteceu com Menem. Na época, pessoas que tinham ideologia oposta à sua revolução neoconservadora se alinharam com ele.
São características do peronismo que fazem com que, tragicamente, seja hoje o único partido que consiga governar o país.

Folha - O que aconteceu com a oposição?
Sarlo -
A esquerda argentina cometeu um erro ao ir às eleições de 1999 com o radicalismo (UCR, a União Cívica Radical). E pagará por isso por muitos anos. Esse erro político teve que ver com um diagnóstico equivocado pelo qual se pensou que era necessário fazer qualquer coisa para impedir que Duhalde [então candidato peronista à Presidência] vencesse.
Mas era necessário fazer política, e não uma aliança baseada num equívoco. E o resultado foi catastrófico, pois se misturaram elementos que não podiam se misturar, de onde não sairia nem governo nem projeto.
Foi assim que desapareceu a força de centro-esquerda que havia crescido muito nos anos 90.

Folha - E o radicalismo?
Sarlo -
Hoje se vê na UCR um partido que deixou duas vezes o poder no meio de crises imensas, com Alfonsín e De la Rúa. É muito difícil que esse partido, de imediato, possa ser considerado uma alternativa. Ainda assim, não se pode esquecer que se trata de um partido que tem deputados e poder nas províncias. Está desorganizado, desarticulado, mas não diria que está desaparecido.

Folha - Você vê uma mudança na sociedade desde o "estallido"? Houve uma reflexão, principalmente por parte da classe média?
Sarlo -
Nos anos 90, a sociedade argentina havia mudado de modo catastrófico. Nunca fez parte da experiência argentina um desemprego tão alto como o que vemos agora. Isso terá conseqüências por muitas décadas.
Já a crise de 2001 forçou a classe média a reconhecer que vivíamos um processo de "latino-americanização" dramática. A reconhecer que a Argentina já não era mais o país de ascensão social constante e de um mercado de trabalho que sempre incorporava.
Mas hoje não estou tão segura de que esse reconhecimento ainda exista. Tenho a impressão de que aqueles que não foram afetados pela crise voltaram a seus costumes sociais e culturais.
A crise pode ter sido um momento em que a classe média realmente olhou para o resto da sociedade, para os que empobreciam e sofriam suas conseqüências diretas, mas não sei se esse olhar se conserva com a mesma atenção e solidariedade que existiram em 2002.

Folha - O cinema argentino retrata bem esse momento político?
Sarlo -
O fenômeno do cinema argentino é muito interessante. Poderia citar um punhado de filmes de caráter documental ou dos que oscilam entre a ficção e o documental que estão jogando luz a fatos importantes da história argentina recente. E que trazem à tona questões como a dos desaparecidos e dos setores populares.
Porém, se repararmos na lista dos filmes que realmente são assistidos pelo público médio argentino, veremos que é composta principalmente pelas produções dos grandes estúdios americanos.
O cinema argentino é um fenômeno cultural de base predominantemente urbana. Pertence a Buenos Aires. A circulação desse tipo de cinema no resto do país é limitada. E mesmo em Buenos Aires trata-se de uma produção que circula só em uma zona de classe média progressiva culturalmente. É preciso levar isso em conta.

Folha - No Chile, os militares acabam de reconhecer os crimes da ditadura; no Brasil, a questão ainda está em aberto e voltou à pauta do dia. É possível comparar esses processos com o argentino?
Sarlo -
O que diferencia o processo argentino em relação aos outros países do Cone Sul é o fato de ter julgado e processado os militares logo após o fim da ditadura (1976-1983). Essa iniciativa de Raúl Alfonsín impediu retrocessos. Ainda que depois leis tenham surgido para impedir novos processos e militares tenham sido indultados, esse foi um feito essencial. Na minha opinião, o fato mais importante de nossa história nos últimos 20 anos.

Folha - Por que?
Sarlo -
Por ter instalado na sociedade a prova jurídica do terrorismo de Estado e marcado a transição democrática. O indulto de Menem não pôde impedir que outros julgamentos começassem a operar. Armou-se uma trama contra os repressores de Estado.
A possibilidade de julgar Pinochet começou em Londres há apenas quatro anos. A transição chilena esteve baseada no acordo. Isso foi o que deu estabilidade a ela. Já a transição argentina foi muito tumultuada, com várias ameaças de golpe de Estado.

Folha - Lula tem sido criticado por não facilitar a abertura de arquivos sobre o regime militar brasileiro.
Sarlo -
O Brasil também teve seus 20 anos de democracia e os governos anteriores tampouco tocaram na questão dos desaparecidos. Não se pode dizer simplesmente que Lula é um obstáculo.
O que define esses processos são os pactos das elites. Nossas sociedades, a argentina, a chilena e a brasileira, têm pactos diferentes, pois a natureza das nossas elites é diversa. Não é simples comparar.


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