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São Paulo, sexta-feira, 21 de março de 2003

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NA CAPITAL

Folha constata que os primeiros bombardeios pegaram a cidade despreparada para o conflito

Bagdá, afinal, "acorda" para guerra

Juca Varella/Folha Imagem
Soldados vigiam ruas da região central da capital iraquiana, ao lado de barricada, horas depois de os EUA terem feito seus primeiros ataques a Bagdá


DO ENVIADO A BAGDÁ

Bagdá acordou ontem arrancada da cama por uma realidade que vinha até então se negando a enxergar: a guerra está aqui na porta. Depois da sacudida provocada pelo espocar dos mísseis norte-americanos e das baterias antiaéreas iraquianas, cujo ruído lembra os rojões da entrada em campo de um time brasileiro de futebol elevados à enésima potência, os bagdalis começaram a tomar providências concretas em busca da sobrevivência.
Poucos levaram os carros às ruas, que estavam desertas. "Essa barulheira deve ter tirado o fôlego de Alá e do profeta lá no céu", disse à Folha um faxineiro que não quis dar o nome.
Para começar, o comércio finalmente fechou as portas. A medida dá o grau de importância que a guerra atingiu, pois Bagdá é antes de tudo uma gigantesca feira livre. Segundo relatos de quem estava por aqui dias e até semanas antes de iniciado o conflito, a cidade costuma fervilhar com seus milhares de vendedores, barraquinhas e ambulantes e portas e centenas de vielas dedicados exclusivamente à compra e venda de tudo o que o iraquiano ainda consegue exportar ou produzir.

Despreparo
Um passeio pela cidade mostrava que a população se preparou como podia para uma guerra que é a mais rica e avançada tecnologicamente da história, mas apenas do lado de lá do fronte.
Preparou-se mal, pois não há dinheiro. As barricadas de sacos de areia feitas nas esquinas, que finalmente começaram a aparecer, são mambembes e mal planejadas. As trincheiras cavadas pelos cidadãos a pedido do ditador Saddam Hussein são rasas e de cortar o coração pela ingenuidade e ineficácia.
Ainda assim, os que sobraram na cidade mais vazia do que nunca tentavam levar a vida normalmente. Nas calçadas de poucos comércios abertos, homens jogavam dominó, tomavam chá quente ou fumavam narguilé em grupos, sempre fumando muito.
Crianças brincavam com bolas de futebol. Mesmo no momento exato do bombardeio, no fim da madrugada de ontem, algumas pessoas vinham até as janelas de seus apartamentos para olhar as luzes, como se fosse um espetáculo de fogos de artifício.
Durante o passeio promovido pelo governo, ao ver os jornalistas, soldados até então sentados nas trincheiras em rústicas cadeiras de cozinha trazidas de casa se aprumavam, empunhavam seus rifles, sempre envelhecidos AK-47 comprados dos russos, e faziam o vê da vitória. Os mais velhos batiam continência.
À exceção de dois tanques de médio porte escondidos em becos e com manutenção precária e de três mísseis colocados no topo de um pequeno morro, os armamentos mais pesados continuavam fora da visão pública.

Clipes com Saddam
Poucos grupos paravam diante de televisões russas de 20 anos de idade para assistir ao telejornal da TV Iraque, estatal, cuja vinheta de apresentação é uma Estátua da Liberdade com cara de caveira.
Estranhamente para os olhos ocidentais, os blocos de notícia são entremeados não por comerciais, mas por clipes de cantores louvando as virtudes de Saddam Hussein, que aparece invariavelmente empunhando armas, dando adeus ou ensaiando passos da dança típica de sua tribo.
O que mais chama a atenção, porém, é o contraste entre a cidade não-oficial, envelhecida, suja e com pouca manutenção desde o embargo ocidental pós-Guerra do Golfo, em 1991, e a riqueza dos diversos prédios governamentais e dos suntuosos palácios presidenciais, todos fechados.
Nas avenidas, o mesmo choque: a maioria dirige Passats exportados do Brasil antes da guerra, enquanto a polícia pilota modelos 2002 de Massima, da japonesa Nissan, que continua fazendo negócios com o Iraque.
Não é incomum, aliás, ver nas prateleiras bagdalis produtos brasileiros como açúcar, arroz, farinha e frango, que entram oficialmente no país via programa Petróleo por Comida, da Organização das Nações Unidas, e extra-oficialmente pelo contrabando com países vizinhos como Síria e Jordânia. A iniciativa da ONU ajuda a dar ao país um certo ar cubano, que não vem só do ideário supostamente socialista do partido único e oficial, o Baath.
Pelo esquema da entidade diplomática, a maioria absoluta da população recebe (ou recebia, até que os funcionários da ONU foram retirados do país, na segunda-feira, e toda a ajuda humanitária cessou) gratuitamente cestas básicas de alimentos, que duram entre quatro e seis semanas.
Assim, com a alimentação garantida, não se vêem mendigos ou crianças de rua. Ou seja, não há fome em Bagdá, mas há pobreza. O salário médio é o equivalente a US$ 20 por mês, sendo que o piso de um professor chega a US$ 3 mensais.
No fim da noite de ontem, o silêncio só era interrompido pelas sirenes seguidas das baterias antiaéreas e dos poucos bombardeios. E pelos muezins, que chamavam os fiéis à reza.
(SÉRGIO DÁVILA)


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