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São Paulo, sexta-feira, 21 de março de 2003

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OPINIÃO

Além da tempestade


Já podemos distinguir três idéias competindo pela sucessão ao Ocidente da Guerra Fria: idéia rumsfeldiana, idéia chiraco-putinesca e idéia blairista

É provável que seja verdade que os Estados Unidos seriam capazes de vencer qualquer guerra, sem ajuda. Mas não conseguirão ter a paz sozinhos



TIMOTHY GARTON ASH
ESPECIAL PARA A FOLHA

À medida que se inicia a segunda Guerra do Golfo, tentamos enxergar através de uma tempestade de areia, em esforço para discernir os contornos do novo mundo do outro lado. Como a maior parte dos mundos novos, esse mistura novo e antigo.
Oficiais americanos sentados diante de telas de computador orientam bombas eletrônicas para desativar o equipamento de comando de Saddam, a milhares de quilômetros de distância, por pulsos eletromagnéticos. As cenas de combate intergaláctico em "Jornada nas Estrelas" se assemelham ao realismo do século 19, em comparação.
Mas a seguir vejo a infantaria britânica no Kuait se preparando para um combate corpo-a-corpo. Um sargento regimental estimula um jovem soldado a proferir gritos primais de ódio enquanto golpeia repetidamente um manequim representando o inimigo.
Em sua essência, a cena poderia ter ocorrido na véspera da batalha de Agincourt, em 1415: um homem sendo estimulado psicologicamente a matar alguém, forçando a inserção de um pedaço de aço afiado nas tripas da vítima.
O mesmo vale para a política. Há algo bastante novo: a liderança dos EUA se sente tão confiante em seu poderio militar e na certeza moral de sua causa que adentra a mais explosiva região do mundo com apenas um aliado efetivo ou dois, se incluirmos a Austrália. E algo muito velho: a diplomacia que se desenrolou na ONU nas semanas que antecederam à guerra pode ser reduzida a um conflito entre dois antigos rivais, França e Reino Unido. Como em Agincourt.
Ao longo das semanas recentes, o Ocidente geopolítico da Guerra Fria desabou. As torres gêmeas da Organização para o Tratado do Atlântico Norte (Otan) e da União Européia continuam fisicamente intactas, mas politicamente tudo mudou.
Ninguém sabe que forma terá o novo mundo. Como disse Tony Blair em seu magnífico discurso ao Parlamento britânico na terça-feira, "a História não nos declara o futuro com tamanha clareza".
Mas já podemos distinguir três idéias principais competindo pela sucessão ao Ocidente da Guerra Fria. Eu as denominarei idéia rumsfeldiana, idéia chiraco-putinesca e idéia blairista.
A idéia rumsfeldiana -se idéia não for palavra dignificada demais para descrevê-la- é que o poderio americano representa um direito. O que é americano é certo. Os EUA são o país das virtudes. A única hiperpotência. Vivemos em um mundo unipolar. A terra da liberdade está sob ataque do Terrorismo Internacional, o novo Comunismo Internacional. E tem por dever se defender.
De qualquer forma, a democracia terminará por ser levada a lugares como o Iraque, e assim o mundo será melhor. Se alguns aliados quiserem nos ajudar, ótimo. Se não, podem-se encontrar "atalhos", como disse Rumsfeld em um momento em que parecia que as tropas norte-americanas talvez entrassem no Iraque sem sequer o apoio dos soldados britânicos. Enquanto isso, todos os potenciais aliados devem ser ofendidos por declarações canhestras.
A visão rumsfeldiana, por estar parcialmente certa, está completamente errada. É provavelmente verdade que os EUA seriam hoje capazes de vencer praticamente qualquer guerra, sem ajuda. Mas não conseguirão vencer a paz sozinhos. E a vitória na "guerra contra o terrorismo" depende completamente de vencer a paz no Iraque, no Oriente Médio como um todo e para além da região.
A idéia chiraco-putinesca -se idéia não for palavra dignificada em excesso- é a de que o poderio americano é, em si, perigoso. Jacques Chirac crê ser pouco saudável que um único país tenha tanto poder, e que as coisas se tornem peculiarmente perigosas caso esse país seja os EUA (em lugar de, digamos, a França). Um mundo unipolar, portanto, é inaceitável.
A missão francesa é construir um pólo alternativo. Esse contra-pólo é a Europa, a qual, na geografia gaullista, inclui a Rússia. Em outras palavras, a Eurásia.
A batalha diplomática travada ao longo das últimas semanas, com a aliança continental franco-teuto-russa (e chinesa) oposta à aliança marítima entre Estados Unidos, Reino Unido, Espanha (e Austrália), me fez pensar de novo na guerra dos superblocos descrita por George Orwell em 1984. Ele os chamava Eurásia e Oceania.
A idéia chiraco-putinesca, por estar parcialmente certa, está completamente errada. É verdade que é pouco saudável que qualquer potência isolada -por mais democrática e benigna que seja- adquira a preponderância de que os EUA ora desfrutam.
Usemos uma analogia interna: será que a democracia americana seria beneficiada se a Casa Branca pudesse vetar o Congresso e ignorar a Corte Suprema quanto a qualquer questão? Mas que a França faça causa comum com a Rússia semidemocrática (a açougueira da Tchetchênia) e com uma China não democrática em campanha diplomática que representaria alívio temporário para Saddam Hussein não é a maneira mais brilhante de avançar para um mundo multipolar.
De qualquer forma, jamais será possível unir a Eurásia contra os Estados Unidos. Como vimos, mesmo na presente crise, cerca de metade dos governos da Europa optaram por manter a solidariedade transatlântica, ainda que tivessem graves dúvidas sobre a sabedoria da abordagem do governo Bush quanto ao Iraque.
Isso deixa o blairismo. A idéia de Blair é a de que deveríamos recriar uma versão ampliada do Ocidente transatlântico da era da Guerra Fria, em resposta às novas ameaças que enfrentamos. O que ele chama de "confluência" de armas de destruição em massa e terrorismo deveria nos assustar tanto quanto o Exército Vermelho o fazia, no passado.
Europa e EUA precisam se manter unidos para derrotar esse perigo. Sim, os europeus deveriam se preocupar quanto ao unilateralismo norte-americano, mas, disse ele à Câmara dos Comuns, "a maneira de enfrentar a questão não é rivalidade, mas parceria. Parceiros não são servos, mas tampouco são rivais".
Em setembro passado, a Europa deveria ter dito aos EUA "em uníssono" que ajudaria Washington a confrontar a dupla ameaça do terrorismo e das armas de destruição em massa, desde que os norte-americanos optassem pelo caminho da ONU e reiniciassem o processo de paz entre Israel e a Palestina no Oriente Médio.
O que quer que venha a acontecer agora, os Estados Unidos e a Europa deveriam avançar como parceiros e, sempre que possível, deveriam fazê-lo por intermédio das instituições do mundo posterior a 1945.
A idéia de Blair está completamente certa. O problema está na execução. Blair mesmo cometeu dois grandes erros no ano passado. O primeiro foi não ter feito mais para conseguir que a Europa falasse "em uníssono", em setembro.
Em lugar disso, se tornou praticamente parte do debate interno do governo em Washington, negligenciando Berlim e Paris enquanto estas se enlaçavam para a valsa contra a guerra.
O segundo foi esquecer que parcerias às vezes significam também dizer "não". A sensação que se tem é a de que Blair é aquele tipo de inglês decente que sempre dirá "não" às drogas, mas nunca dirá "não" a Washington. Os dois erros estão estreitamente relacionados. Se houvesse uma voz européia mais forte, dizer "não" seria mais crível, e se tornaria menos provável a necessidade de fazê-lo.
Não estou convencido até agora de que essa guerra específica, nesse momento específico, seja legítima, necessária ou prudente. Ainda espero, apesar de tudo, que nossa vitória seja rápida, que o regime maligno de Saddam Hussein despenque como um castelo de cartas e que as consequências para o Oriente Médio sejam positivas para o Iraque, para o resto do mundo muçulmano e para o processo de paz entre Israel e a Palestina.
No entanto, estou convencido de que a visão blairista de um novo pós-guerra na política mundial é a melhor de que dispomos no momento, em nosso até certo ponto deprimido mercado de lideranças mundiais.
E isso quer dizer que teria sido um tremendo revés, não só para o Reino Unido como para o mundo, perdê-lo por causa dessa guerra. A sensação que se tem é a de que Blair é aquele tipo de inglês decente que sempre dirá "não" às drogas, mas nunca dirá "não" a Washington.
Com Jacques Chirac em um pólo e Donald Rumsfeld no outro, as chances não parecem boas. Mas, na tempestade de areia da guerra, todas as velhas cartas serão embaralhadas de novo.


Timothy Garton Ash é historiador britânico e diretor do Centro de Estudos Europeus da Universidade de Oxford


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