São Paulo, domingo, 21 de março de 2004

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ARTIGO

As falsas promessas do Iraque

Ammar Awad- 29.fev.2004/Reuters
Iraquianos estendem as mãos para receber alimentos de graça numa mesquita de Bagdá, durante festival xiita, no mês passado


SLAVOJ ZIZEK

Se você quer compreender por que o presidente George W. Bush invadiu o Iraque, deveria ler "A Interpretação dos Sonhos", de Sigmund Freud, e não o documento "Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos".
Apenas a lógica distorcida dos sonhos pode explicar por que os norte-americanos consideram que a busca agressiva de objetivos contraditórios -promover a democracia, afirmar a hegemonia dos Estados Unidos e garantir suprimentos estáveis de energia- é capaz de produzir sucesso.
Para ilustrar a estranha lógica dos sonhos, Freud costumava evocar uma história sobre uma chaleira emprestada. Quando um amigo acusa alguém de ter devolvido quebrada a chaleira que ele lhe havia emprestado, a resposta da pessoa é: primeiro, que jamais pedira a chaleira; segundo, que a devolvera intacta; e terceiro, que já estava quebrada quando a recebeu. Uma enumeração de argumentos inconsistentes como esses confirma exatamente, é claro, aquilo que procura negar: o fato de que a pessoa pediu a chaleira emprestada e a quebrou.
Uma corrente similar de inconsistências caracterizou, no início de 2003, as justificativas públicas do governo Bush para o ataque ao Iraque. Primeiro, a Casa Branca alegou que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa que representavam "perigo real e presente" para os seus vizinhos, para Israel e para todos os países democráticos do Ocidente. Até agora, não foram localizadas armas desse tipo.
A seguir, o governo dos EUA argumentou que Saddam estava envolvido com a Al Qaeda nos atentados do 11 de Setembro. Mas até mesmo o presidente Bush se viu forçado a reconhecer, em setembro de 2003, que os EUA "não dispunham de provas de que Saddam Hussein esteve envolvido no 11 de Setembro".
Por fim, há um terceiro nível de justificativa, o de que a impiedosa ditadura de Saddam era uma ameaça aos vizinhos e uma catástrofe para o seu povo. Verdade, mas por que derrubar o governo do Iraque e não outros regimes malignos?
Assim, se essas razões não resistem a um escrutínio sério, quais seriam as verdadeiras razões implícitas do ataque? Há, efetivamente, três delas.
A primeira é uma sincera crença ideológica em que o destino dos EUA é levar a democracia e a prosperidade a outras nações; a segunda é a ânsia de afirmar e sinalizar brutalmente a hegemonia incondicional dos norte-americanos; e a terceira é a necessidade de controlar as reservas de petróleo iraquianas.
Cada um dos três níveis funciona por conta própria e merece ser tratado com seriedade; nenhum deles, sequer a difusão da democracia, deveria ser descartado como simples manipulação e mentira. Cada qual oferece contradições e conseqüências, boas e ruins. Mas, somados, são perigosamente inconsistentes e praticamente predestinam o esforço dos EUA no Iraque ao fracasso.
Os norte-americanos tradicionalmente encaram seu papel no mundo em termos altruísticos. "Nós simplesmente tentamos ser bons", dizem, "ajudar os outros, trazer paz e prosperidade, e olhe o que recebemos em troca."
De fato, filmes como "Rastros de Ódio", de John Ford, e "Taxi Driver", de Martin Scorsese, ou livros como "O Americano Tranqüilo", de Graham Greene, que oferecem percepções fundamentais sobre a ingênua benevolência norte-americana, jamais foram mais relevantes do que hoje, em meio à ofensiva ideológica mundial dos EUA.
Como disse Greene sobre o seu protagonista, que sinceramente deseja levar a democracia e a liberdade ocidentais aos vietnamitas e vê suas intenções fracassarem completamente: "Jamais conheci um homem que tivesse melhores motivos para todos os problemas que causou".
A suposição que embasa todas essas boas intenções é a de que, por sob nossas peles, somos todos norte-americanos. Se esse é o verdadeiro desejo de toda a humanidade, então tudo que os EUA precisam fazer é dar aos povos uma chance, liberá-los das restrições que lhes foram impostas, e eles abraçarão o sonho ideológico norte-americano.
Mas, quando Bush declarou em seu discurso sobre o Estado da União, em janeiro de 2003, que "a liberdade que tanto apreciamos não é o presente dos Estados Unidos para o mundo, mas o presente de Deus para os homens", esse aparente momento de humildade na verdade ocultava seu oposto totalitário.
Todo líder totalitário proclama que, sozinho, ele não é nada. Sua força deriva da força das pessoas que o apóiam, e cujas aspirações ele expressa.
O problema é que aqueles que se opõem ao líder, por definição não se opõem só a ele, mas também aos mais profundos e nobres anseios do povo. E o mesmo não se aplica à alegação de Bush?
Teria sido mais fácil caso a liberdade fosse apenas o presente dos EUA aos demais países, de fato; dessa forma, aqueles que se opõem à política americana seriam simplesmente adversários das decisões de um único Estado-nação. Mas, se a liberdade é o presente de Deus à humanidade, e o governo americano se vê como o instrumento escolhido para distribuir esse dom a todas as nações, então aqueles que se opõem aos EUA na verdade estão se opondo ao mais nobre presente de Deus a todos os homens.
Quanto à segunda razão, a ânsia de demonstrar hegemonia americana incondicional, a "Estratégia de Segurança Nacional dos EUA" pede que a "posição de poderio militar sem paralelo e a grande influência econômica e política" do país sejam traduzidas em "décadas de paz, prosperidade e liberdade". Mas os estrategistas neoconservadores afirmam de maneira mais aberta aquilo que seus irmãos na Casa Branca hesitam em declarar. No recente livro "The War Over Iraq", os neoconservadores William Kristol e Lawrence Kaplan escreveram que "a missão começa em Bagdá, mas não acaba lá". "Estamos na aurora de uma nova era histórica. Trata-se de um momento decisivo. É evidente que muito mais que o Iraque está em jogo. Falamos de algo que está além do futuro do Oriente Médio e da guerra contra o terror. O que importa é o papel que os EUA pretendem desempenhar no século 21."
Não se pode deixar de concordar com a afirmação. O ataque ao Iraque efetivamente colocou em jogo o futuro da comunidade internacional, acarretando questões fundamentais sobre a "nova ordem mundial".
Quanto à terceira razão para que o ataque fosse lançado, seria simplista presumir que os EUA pretendem simplesmente tomar o controle da indústria petroleira iraquiana.
Mas em um país que, nas palavras do subsecretário da Defesa Paul Wolfowitz, "flutua sobre um oceano de petróleo" e é membro influente da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), a instalação de um governo abençoado pelos americanos e que assuma o compromisso de permitir investimento estrangeiro (leia-se: dos EUA) certamente foi uma consideração importante para as autoridades de Washington. De fato, ignorar essa consideração teria sido um equívoco estratégico de escala descomunal.
Das três razões, o fator essencial é a segunda: usar o Iraque como pretexto ou exemplo a fim de estabelecer os parâmetros de uma nova ordem mundial e para asseverar o direito dos americanos de lançar ataques preventivos, cimentando o papel de seu país como única superpotência e autoridade policial do planeta.
A mensagem não se dirigia primordialmente ao povo iraquiano, mas a todos nós que testemunhamos a Guerra do Iraque: nós éramos os verdadeiros alvos ideológicos e políticos.
A essa altura, é preciso fazer uma pergunta ingênua: por que não termos os EUA no papel de policiais do planeta? Afinal, o mundo do pós-Guerra Fria estava implorando por uma potência que ocupasse o vazio.
Ah, mas há um obstáculo: o problema com os EUA de hoje não é o fato de que sejam um novo império mundial, mas sim o fato de que não o são. Quer dizer, embora se finjam império, continuam a agir como Estado-nação, defendendo impiedosamente os seus interesses.
De fato, em uma reversão perversa do velho slogan ambientalista, o adesivo que representa a política externa de Bush deveria afirmar "aja mundialmente, pense localmente". Observem, por exemplo, a decisão americana de impor tarifas sobre o aço, declarada ilegal pela Organização Mundial do Comércio e certamente contrária aos sacrossantos conselhos de Washington aos países do Terceiro Mundo, no sentido de que esses devem se abrir ao comércio mundial.
Outro exemplo chocante da duplicidade dos EUA foi a pressão exercida sobre a Sérvia em duas direções distintas, no terceiro trimestre do ano passado.
Autoridades de Washington exigiram que a Sérvia entregasse suspeitos de crimes de guerra ao Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia, em Haia (o que segue a lógica do império mundial, exigindo instituições judiciais transnacionais), e, ao mesmo tempo, pressionaram os sérvios para que assinassem um tratado bilateral que os forçaria a não entregar ao novo Tribunal Penal Internacional, também sediado em Haia, cidadãos americanos suspeitos de crimes de guerra ou outros crimes contra a humanidade (o que segue a lógica do Estado-nação).
Não admira que a reação sérvia tenha sido uma mistura de fúria e perplexidade.
E será que a mesma inconsistência não se aplica também à forma pela qual os EUA vêm travando a sua "guerra contra o terror"? A estratégia econômica exemplar do capitalismo atual é a terceirização: entregar o processo "sujo" de produção física (mas também a publicidade, o design e a contabilidade) a outras empresas.
A produção acontece, digamos, na Indonésia, onde os padrões ambientais e trabalhistas são muito menos severos do que no Ocidente, e a companhia americana que controla o logotipo pode alegar que não é responsável pelas violações praticadas por seus contratados.
Agora, algo semelhante acontece quanto aos interrogatórios de suspeitos de terrorismo, com a tortura "terceirizada" para aliados do Terceiro Mundo (os mesmos países que o Departamento de Estado americano critica em seu relatório anual sobre práticas nacionais de direitos humanos), capazes de extrair confissões sem se preocupar com problemas legais ou protestos públicos.
"Não podemos legalizar a tortura; ela é contrária aos valores americanos", desdenhou o colunista Jonathan Alter na "Newsweek", sem deixar de concluir que "temos de pensar sobre transferir alguns suspeitos aos nossos aliados menos vacilantes, mesmo que isso seja hipocrisia. Ninguém disse que a coisa seria bonita, afinal".
E é isso que acontece nas democracias ocidentais, que terceirizam parte cada vez maior de suas atividades sujas ou repulsivas, seja tortura, seja telemarketing, para outros países.
A oportunidade de instituir um regime legal internacional capaz de abarcar a guerra contra o terrorismo foi desperdiçada. Para tomar de empréstimo as palavras de Mohammed al Sahaf, o pitoresco ministro da Informação iraquiano que, em uma de suas últimas entrevistas coletivas durante a Guerra do Iraque, negou que os americanos estivessem prestes a controlar Bagdá: "Os americanos não controlam nada, sequer se controlam".
Em resumo, as autoridades americanas não são conscienciosas a ponto de admitir, quanto mais reconciliar, as contradições entre suas intenções e seus atos.
Em fevereiro de 2002, o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, se dedicou a expor uma visão filosófica amadora sobre a diferença entre o que é conhecido e o que é desconhecido: "Há conhecimentos conhecidos; há coisas que sabemos que sabemos. Sabemos também que há desconhecimentos conhecidos, ou seja, há coisas que sabemos que não sabemos. Mas há também os desconhecimentos desconhecidos -as coisas que não sabemos que não sabemos".
Para Rumsfeld, esses "desconhecimentos desconhecidos" representam a maior ameaça que os EUA encaram. Mas ele se esqueceu de acrescentar um crucial quarto termo à sua formulação: o desconhecimento de conhecimentos, coisas que não sabemos que sabemos ou seja, exatamente o inconsciente freudiano, o "conhecimento que não se conhece", como costumava dizer o psicanalista francês Jacques Lacan.
De muitas formas, esses conhecimentos desconhecidos, as crenças e as suposições reprimidas que nem sequer sabemos que nos movem, podem representar ameaça ainda maior. E esse é de fato o caso quando se trata dos motivos para a guerra.
O que é "desconhecido" (reprimido, ignorado) não é primordialmente a natureza problemática das razões em si (digamos, o fato de que, ao difundir a democracia, os EUA estão impondo sua versão de democracia), mas, em lugar disso, a inconsistência entre essas razões.
Os EUA querem atingir uma série de objetivos (difundir a democracia, afirmar sua hegemonia, garantir os suprimentos de petróleo) que são, em última análise, incompatíveis.
Considerem a Arábia Saudita e o Kuait, monarquias conservadoras, mas aliados econômicos profundamente integrados ao capitalismo americano. Nesse caso, os EUA têm interesses bastante precisos. Para que essas nações continuem a fornecer petróleo aos americanos de maneira confiável, é essencial que continuem a não ser democráticas, já que é seguro apostar que eleições livres na Arábia Saudita ou no Iraque produziriam um regime islâmico e nacionalista que adotaria uma atitude antiamericana.
"Sessenta anos de desculpas e acomodação de parte dos países ocidentais quanto à falta de liberdade no Oriente Médio não nos propiciaram maior segurança", declarou Bush em novembro de 2003. Mas propiciaram aos países ocidentais suprimentos de energia relativamente estáveis, algo que os EUA não estão dispostos a sacrificar do dia para a noite no altar da liberdade.
Além disso, a despeito das afirmações de Bush quanto a uma "estratégia para o avanço da liberdade no Oriente Médio", sabemos o que disseminar a democracia significa: os EUA e seus "parceiros voluntários" decidem, em última análise, se um país está maduro para a democracia, e que forma essa democracia deveria tomar.
Tomem como exemplo os comentários de Rumsfeld em abril de 2003, no sentido de que o Iraque não deveria se tornar uma teocracia, mas um país laico e tolerante no qual todas as religiões e grupos étnicos desfrutassem dos mesmos direitos.
Os funcionários do governo americano reagiram com mal disfarçado desconforto à possibilidade de que a nova Constituição iraquiana desse posição privilegiada ao islamismo. Há uma dupla ironia nisso: primeiro, seria razoável que os EUA exigissem o mesmo de Israel com respeito ao judaísmo; segundo, o Iraque -cujo Estado sob Saddam era laico- provavelmente terá, como resultado de sua libertação e de eleições democráticas, o islã em posição de privilégio!
Um funcionário dos EUA cujo nome não foi citado chegou a dizer, segundo o jornal britânico "The Independent", "que o primeiro gesto de política externa de um Iraque democrático teria de ser o reconhecimento de Israel".
Em lugar disso, o que provavelmente emergirá como resultado da ocupação americana no Iraque é exatamente um movimento fundamentalista islâmico antiamericano, ligado diretamente a movimentos do mesmo tipo em outros países árabes ou países com presença muçulmana.
É como se, em uma exibição contemporânea do "ardil da razão", a mão invisível do destino garantisse repetidamente que a intervenção americana só torna mais prováveis os desfechos que os EUA mais gostariam de evitar.

Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É autor de "Bem-Vindo ao Deserto do Real" (Boitempo) e "O Mais Sublime dos Histéricos" (Jorge Zahar). Este texto foi publicado originalmente na revista "Foreign Policy".


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