São Paulo, domingo, 21 de maio de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DILEMA PERSA

Com a dificuldade de unir a população em torno de preceitos ultraconservadores, debate nuclear vira bandeira do governo

Irã, um país entre dois caminhos

Atta Kenare-28.abr.2006/France Presse
Vestidas com o tradicional xador, iranianas protestam em Teerã contra a flexibilização do código de vestuário islâmico


NO MOMENTO em que atrai a atenção do mundo para seu programa nuclear, o país dos aiatolás e do ultraconservador Mahmoud Ahmadinejad enfrenta a dificuldade crescente de manter coesa sob seus rígidos dogmas uma população em que 60% têm até 24 anos e entre a qual o acesso à cultura ocidental -apesar da censura- avança continuamente.
Entre pregações anti-EUA e o apelo consumista ocidental, Teerã vê crescer a classe média, com sua interpretação mais ampla do islamismo, e a classe mais popular sofrer sob uma economia que ameaça se estagnar

SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A TEERÃ

Bush tem um estranho tom de quem tem sede de sangue.
Uma faixa com estes dizeres recebe o visitante do campus principal da Universidade de Teerã na sexta-feira. Com as cores verde, vermelho e branco, da bandeira da República Islâmica do Irã, está escrita em farsi, a língua oficial, e inglês. Saúda não qualquer visitante, mas os cerca de 150 mil fieis que se reúnem dentro -e nas dezenas de quarteirões ao redor- da feia construção que domina o centro da capital iraniana, constantemente coberto por uma nuvem cinza de poluição.
No dia sagrado de descanso do muçulmano, a reza mais importante é a do meio-dia, seguida de um comentário feito pelo mais alto líder religioso à disposição, geralmente um aiatolá, do primeiro país islâmico de peso a adotar o fundamentalismo como política de Estado, em 1979. O fiel que vai à universidade quer conforto espiritual, mas também guia política, moral e de conduta.
Hoje, depois de lidos trechos do Corão, quem toma a frente é o aiatolá Mohammad Emami Kashani. Espécie de porta-voz do Conselho dos Guardiães, que vigiam a Revolução Islâmica e a Constituição e aprovam ou rejeitam as leis do Majlis (parlamento), ele fala em nome do poder, e todos sabem disso.
"Nossos inimigos, que são os Estados Unidos e Israel, e é claro que os israelenses dão lições aos americanos, querem atingir as fronteiras, a economia, as universidades e a ciência do Irã", começa. "Tudo é planejado na CIA, essa organização em desgraça, esses idiotas que não nos entenderam direito", continua, para chegar ao que interessa: o programa nuclear iraniano. "Todos os nossos trabalhos estão sob supervisão da Agência Internacional de Energia Atômica, e não consideramos prudente usar armas nucleares". E termina: "Mas protegemos nossas conquistas tecnológicas e não voltaremos atrás por nem um momento".
Ele sai de trás do microfone sob o silêncio dos presentes, que se curvam até encostar a testa no "mohr", tijolinho feito de barro sagrado de Jerusalém, colocado no chão coberto. Kashani passa por baixo de outra faixa, essa escrita só em farsi: "O Irã seguirá com seu programa nuclear para fins pacíficos. Nós não queremos cruzar a "linha vermelha", mas, se formos pressionados, cruzaremos".
Engana-se quem pensa que o Irã blefa quando ameaça ir à luta caso veja negado o que chama de seu direito de produzir energia nuclear. Mas se engana também quem pensa que a cena descrita acima é representativa do país como um todo. Os milhares de fiéis respondem por 2% dos moradores da cidade, e a falação é transmitida em cadeia nacional.
Outro tanto de pessoas está naquele momento em shoppings centers e ruas comerciais comprando produtos de grifes norte-americanas ou no cinema (leia texto na página ao lado). É cada vez maior a dificuldade dos aiatolás de manter unida em torno de preceitos religiosos ultra-rígidos uma população formada por 60% de menores de 24 anos, jovens que têm cada vez mais acesso (ainda restrito) ao mundo ocidental via produtos culturais pirateados (censuradas), TV por satélite (ilegais) e Internet (com filtros e vigiada).
Uma população que vê crescer em quantidade e poder a classe média, com interpretações menos restritas do islamismo e desejos consumistas, ao mesmo tempo em que a classe mais popular sofre com os efeitos de uma economia que ameaça se estagnar.
O Irã, sob a presidência do ultraconservador Mahmoud Ahmadinejad, eleito em junho de 2005 para um mandato de quatro anos, e a liderança espiritual do aiatolá Ali Khamenei, é um país cada vez mais dividido.

Espelho
A própria Universidade de Teerã, fundada em 1934 e importante centro de difusão de idéias, é um símbolo da divisão. A oração coletiva de sexta-feira teve lugar numa antiga quadra de futebol de salão tomada pela Revolução, hoje local sagrado. Poucos estudantes costumam ir às preces. Eles freqüentam outro lugar, metros acima, em outros dias da semana. É a mesquita universitária, onde se reúnem as lideranças da esquerda reformista.
Dividido, sim, mas que pode se unir na questão nuclear. A defesa de sexta-feira do aiatolá encontra eco em Reza Mashayik, 52, pequeno empresário, com três filhas, para quem "a culpa é do Ocidente". "Ter energia nuclear é nosso direito", diz ele à Folha. "Negar esse direito vai acabar com a economia do país, pois os cálculos dão conta de que a eletricidade vai começar a faltar em alguns anos. Mas sabotar o Irã é o que o Ocidente faz melhor."
Opinião semelhante terão outras tantas pessoas ouvidas pela reportagem. Uma delas, que pede para não ser identificada, lembra que o Irã não declara guerra a um país há 250 anos -a do Irã-Iraque (1980-1988) foi em reação ao ex-ditador Saddam Hussein-, mas nunca deixou de se unir nas que apareceram.
É nesse espírito de adesão a um tema mais ou menos consensual que aposta Ahmadinejad, atualmente em peregrinação pelo país. O hábito das viagens internas é comum a líderes políticos ocidentais mas estranho aos ocupantes do cargo no Irã. Desde que assumiu, há menos de um ano, o presidente já realizou treze. Visitou cidades que não viam um líder de Teerã desde antes do governo do xá Reza Pahlevi (1953-1979), derrubado pela revolução.
De volta à Universidade de Teerã, os fiéis se preparam para deixar o local. Passa das 13h. Todos ajudam a recolher os "sadjadih" (tapetes) usados no "sedjdeh" (ato de orar). Calçam os sapatos que descansavam em sacos pretos. Recebem balinhas dos centenas de seguranças que vigiam o local. Recolhem celulares, câmeras e mochilas que tiveram de deixar na entrada, após três revistas, uma com detetor de metal.
Um senhor aborda o repórter, sem saber que se trata de um não-iraniano. Diz algumas frases em farsi, que mistura com as palavras "WC", "Bush" e "Thankyouverymuch", sem intervalo. O intérprete ri e responde algo. Depois revela que o homem queria ir ao banheiro. Mas perguntou: "O senhor saberia me indicar onde fica o escritório do presidente George W. Bush?"


Texto Anterior: Frase
Próximo Texto: Saiba mais: Ahmadinejad sepultou ciclo reformista
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.