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ENTREVISTA DA 2ª DESMOND TUTU
Copa é chance
de aproximar brancos e negros
ARCEBISPO SUL-AFRICANO QUE LUTOU CONTRA O APARTHEID AFIRMA QUE O EVENTO ESPORTIVO APLICOU UMA INJEÇÃO DE ÂNIMO NO CONTINENTE
FÁBIO ZANINI
DE JOHANNESBURGO
A Copa do Mundo apresenta uma oportunidade de
aproximar negros e brancos
na África do Sul, ainda distantes 16 anos depois do fim
do apartheid. A afirmação é
do arcebispo Desmond Tutu,
78, uma das figuras mais icônicas da luta contra o regime
segregacionista.
Em entrevista à Folha por
e-mail, ele afirma que a chance de ouro não pode esconder os graves problemas de
corrupção e o mau governo
no país. "A transformação
social está demorando demais", afirma o arcebispo,
que recebeu o Prêmio Nobel
da Paz em 1984.
Visto por desafetos como
desbocado e incontrolável,
Tutu assumiu o papel de
consciência moral da nação,
que divide com Nelson Mandela. Suas opiniões desagradam a ex-aliados no Congresso Nacional Africano (CNA),
o antigo movimento de libertação nacional, hoje partido
firmemente instalado no
Executivo e no Parlamento.
Desmond Tutu foi um crítico severo da letargia do CNA
ao tratar a epidemia de Aids
na África do Sul.
Nos anos 90, o arcebispo
presidiu a Comissão de Verdade e Reconciliação, instrumento copiado em vários
países na solução de conflitos, por meio da confissão de
crimes em troca de anistia.
"Sem esse processo, nosso
país teria experimentado um
conflito social inimaginável", afirma.
No início do ano, Tutu surpreendeu mais uma vez ao
aceitar ser cobaia de um experimento genético da Penn
State University (EUA), em
que seu DNA foi mapeado
para traçar antepassados e
procurar riscos de doenças.
"Devemos rezar para que essas informações vitais sejam
usadas para coisas boas, e
não más", diz.
Sua popularidade junto à
massa sul-africana permanece intocável. Na festa de
abertura da Copa, ele apareceu no palco com a camisa
dos Bafana Bafana, a seleção
nacional, e foi estrondosamente aplaudido. Agradeceu
com pulinhos e gritinhos de
felicidade, uma de suas marcas registradas.
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Folha - A Copa do Mundo pode ajudar a melhorar as relações raciais na África do Sul?
Desmond Tutu - O torneio
deu aos sul-africanos um espírito de unidade e nos lembra de que juntos somos uma
força a ser reconhecida. Eu
sempre me maravilhei com a
linguagem universal do futebol, um esporte que não precisa de tradução.
Se conseguimos ficar unidos pela Copa do Mundo,
conseguiremos ficar unidos
em todos os desafios que encontrarmos. Não é preciso ter
a mesma opinião sobre tudo,
mas podemos discordar amigavelmente, respeitando a
dignidade do outro.
O futebol pode fazer as pessoas se sentirem sul-africanas em primeiro lugar, deixando a identidade racial em
segundo plano?
O esporte tem a habilidade
de unir as pessoas, cortando
barreiras de classe, raça e origem. Eu tenho dito que não é
possível viver apenas do pão.
Há coisas que levantam o espírito. Você precisa desses
momentos na vida. Momentos que dão uma visão do que
você pode ser.
A Copa do Mundo é um
grande feito não apenas para
a África do Sul mas também
para todo o continente africano. Durante este mês, o foco
do mundo estará aqui. Conquistar o direito de sediar a
Copa não diz respeito apenas
a futebol. Diz respeito a nós
vencermos, nos deu uma injeção de ânimo.
Havia muitas dúvidas se
estaríamos prontos e se seríamos capazes de sediar esse
torneio.
Por que ainda é tão difícil ver
brancos e negros se misturando socialmente pelas ruas
da África do Sul?
Precisamos nos lembrar
sempre de que somos feitos
para sermos interdependentes, porque ninguém é inteiramente autossuficiente. Você só precisa ir aos estádios
para ver o elemento mágico
do futebol. Ele galvaniza negros e brancos de uma forma
excitante.
Apenas duas semanas
atrás, Soweto sediou uma
partida de rúgbi [esporte
mais popular entre os brancos] entre os Blue Bulls de
Pretória e os Stormers da Cidade do Cabo. Foi um estrondoso sucesso, que viu negros
e brancos misturando-se socialmente, comendo e bebendo juntos e se divertindo.
Para alguns brancos, era a
primeira visita a Soweto sem
se preocupar com a segurança. E sabe o quê? O céu não
desabou, manteve-se firmemente no lugar. Estamos recebendo uma oportunidade
maravilhosa. Nunca vi tantas
pessoas mostrando nossa
bandeira em seus carros e em
todo lugar possível.
Desde o fim do apartheid, a
desigualdade de renda aumentou. A violência às vezes
parece fora de controle. As
mudanças sociais estão ocorrendo devagar demais?
De um certo modo, a transformação social parece que
está demorando demais. Temos problemas demais, não
há questão quanto a isso.
Mas você também deve notar
que obtivemos nossa liberdade há apenas 16 anos, após
décadas cruéis de apartheid.
Estamos falando da sistemática opressão de gerações,
algo que compreensivelmente não pode ser revertido
num curto período. Isso não
significa tolerar corrupção,
enriquecimento pessoal,
clientelismo, más decisões
quanto à Aids e a outros problemas que afligem nossa
nação. A pobreza e o desemprego continuam a nos assombrar.
No Brasil, chegou-se a discutir a formação de uma Comissão de Verdade e Reconciliação, para investigar o regime
militar. Com base em sua experiência, o sr. diria que esse
instrumento funciona?
A comissão sul-africana é
considerada um modelo inovador para construir paz e
justiça. A força do processo
esteve na participação pública. Uma característica importante foi a abertura, a transparência. As audiências públicas asseguraram que os
sul-africanos ficassem sabendo das atrocidades cometidas durante os anos do
apartheid.
A comissão foi confrontada por um número de desafios, uma vez que não foi
aceita por todas as partes do
conflito. Os altos escalões militares não cooperaram. Políticos importantes do antigo
governo e líderes do aparato
de segurança tampouco.
No caso dos movimentos
de libertação [como o CNA],
argumentaram que, dado
que tinham conduzido uma
"guerra justa", não precisariam pedir anistia, já que
suas ações não constituíam
graves violações de direitos
humanos.
Foi preciso haver considerável convencimento para
que eles participassem. A
magnanimidade mostrada
por algumas pessoas foi incrível. Recusaram a possibilidade de vingança e abraçaram o perdão e a reconciliação. Creio que, sem esse processo, nosso país teria experimentado um conflito social
inimaginável.
O sr. ganhou as manchetes recentemente, participando de
um estudo do genoma por
pesquisadores americanos.
Por que fez isso e o que queria
provar?
Estou feliz pela oportunidade de ter participado do
projeto de sequenciamento
do genoma, uma vez que ele
pode descobrir se alguém
corre risco de alguma doença
genética. Eu me lembro de
uma coisa ridícula quando
me deram o documento de
identidade durante o regime
do apartheid.
Minha nacionalidade era
"indeterminada no momento", isso apesar do fato de
que meus pais nasceram na
África do Sul. O teste revelou
que, embora eu tenha tido tuberculose e câncer, não havia doenças geneticamente
comunicáveis. Isso me deu
imenso alívio, e ainda mais
para meus filhos.
Acredito que informações
genéticas são importantes
para companhias farmacêuticas na preparação de drogas. Devemos sempre rezar
para que essas informações
vitais sejam usadas para coisas boas, e não más.
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