São Paulo, domingo, 21 de setembro de 2008

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SUCESSÃO NOS EUA / ARTIGO

Divididos como sempre, à espera do melhor desenlace

Apesar de suas idas e vindas, o eleitorado nos EUA está tão equanimemente rachado neste ano quanto esteve nas duas eleições presidenciais anteriores

DAVID RIEFF

A campanha presidencial americana finalmente entrou em sua fase decisiva, mas, apesar de todas as reviravoltas -sobretudo a decisão de John McCain de escolher como vice a até então desconhecida Sarah Palin-, o que está claro é que os Estados Unidos continuam tão ideologicamente divididos no ciclo da campanha presidencial atual quanto em 2000 ou 2004.
É possível, claro, que um acontecimento político, militar ou econômico exógeno -a prisão de Osama bin Laden ou a eventualidade de a crise do sistema de crédito fugir de controle, para citar exemplos extremos mas não implausíveis- leve o eleitorado a pender para McCain ou Barack Obama.
Mas o resultado mais provável ainda é que a eleição seja definida por um punhado de Estados conhecidos como campo de batalha onde um grupo de eleitores independentes "pendulares" ainda não se decidiu. Isso não era, evidentemente, o que Obama e seus assessores esperavam.
Pelo contrário, eles parecem ter cometido o mesmo engano ao contemplar McCain como adversário na eleição geral que aquele cometido por Hillary Clinton quando enfrentou Obama nas primárias democratas: o de considerar a vitória como algo certo. Some-se a isso o fato de a soberba ser o calcanhar de Aquiles de candidaturas messiânicas como a de Obama, e fica fácil entender por que a campanha tropeça desde agosto.

Inversão
Isso não significa que seja provável que os democratas percam em novembro.
Obama escolheu o senador Joe Biden como vice, em grande medida, parece, como profilaxia política contra os questionamentos cada vez mais eficazes de McCain sobre sua inexperiência em política externa. Mas a escolha de Palin por McCain foi um esforço desesperado de um candidato odiado pela base conservadora de seu próprio partido.
O fato de, ao menos no curto prazo, ter dado mais certo do que a campanha de McCain previra não muda o fato de, em uma economia em maus lençóis e com as más notícias vindas do Afeganistão começando a eclipsar as boas notícias do Iraque (McCain esperava usar essa melhora), as probabilidades permanecerem firmemente em favor de Obama. Prova disso é a impressão que se tem freqüentemente nos comícios de que McCain seja o coadjuvante, e Palin, a estrela.
De qualquer maneira, é virtualmente inusitado na política americana que candidatos presidenciais e vice-presidenciais façam campanha juntos. É verdade que a decisão reflete o entusiasmo que a base do Partido Republicano sente por Palin. Mas reflete, em medida pelo menos igual, a debilidade e vulnerabilidade de McCain. E, quando o "efeito Palin" começar a diminuir, como inevitavelmente acontecerá -também ela é uma candidata messiânica e assim tem as mesmas vulnerabilidades que Obama, além de algumas limitações significativas de que ele não sofre-, parece provável que o democrata se recupere bem.
É possível, é claro, que o racismo inconfesso entre o eleitorado americano dê vitória inesperada a McCain e Palin. Mas, embora seja fato conhecido que os entrevistados em pesquisas de opinião relutam em admitir sentimentos racistas, as pesquisas indicam uma ansiedade muito maior com relação à idade de McCain, além de grande preocupação entre os independentes quanto a competência de Palin, que só obteve um passaporte no ano passado, para ser presidente em tempos de guerra.

Similitudes
A ironia presente em tudo isso é que, apesar de suas diferenças profundas em relação ao Iraque e de seus estilos de apresentação muito dessemelhantes, não há tanto assim que distinga as posições de Obama em política externa das de McCain.
Ambos vêem a Rússia ressurgente como ameaça e pedem a rápida entrada da Geórgia e da Ucrânia na Otan. Ambos insistem que não se deve em hipótese alguma permitir que o Irã leve adiante seu programa nuclear e ambos apóiam Israel a tal ponto que virtualmente equivale a entregar ao Estado judaico um cheque em branco
E ambos estão comprometidos com políticas ambientais e energéticas que, embora sejam esclarecidas pelos padrões do governo atual, não ameaçam nenhum interesse investidor. Aliás, o apoio irrestrito de Obama ao álcool, embora não surpreenda dado o fato de ele ser de um Estado produtor de milho, o situa à direita de McCain na questão, assim como seu plano para a saúde foi consideravelmente menos de esquerda do que o de Hillary.
Isso não significa que não haja diferenças entre os dois. Pelo contrário: em questões de política interna, a divisão em muitos casos é profunda e ampla. Uma das razões pelas quais tantos conservadores sociais se animaram com Palin foi que sua presença parecia lhes garantir -com ou sem razão, pois os republicanos têm um longo histórico de promessas não cumpridas aos conservadores sociais- que um possível governo McCain indicaria conservadores para as próximas vagas na Suprema Corte.
E há poucas dúvidas de que em questões que vão da política fiscal à desregulamentação financeira, passando pela educação, Obama romperá com o estilo laissez-faire que Bush mantém com tanto afinco, e com o qual McCain, a julgar por seus discursos, discorda em poucos pontos, exceto ambiente. Mas a responsabilidade é do comprador. Os democratas têm um histórico igualmente grande de trair a base de esquerda de seu próprio partido (de esquerda no sentido em que o termo é entendido nos EUA, já que pelos padrões europeus a esquerda americana é de social-democratas centristas).
Desde a década de 60 houve apenas dois presidentes democratas, Jimmy Carter e Bill Clinton, e ambos governaram sobretudo a partir do centro. É sintoma da ira e do desespero que os democratas sentem ante a Presidência catastrófica e inepta de Bush o fato de terem conseguido ignorar o fato de Obama pertencer a essa linha. Isso sem dúvida se deve em parte ao clichê liberal segundo o qual, não obstante Colin Powell e Condoleezza Rice, todos os afroamericanos dignos desse nome são liberais de esquerda.
E, em parte, é conseqüência do fato de que candidaturas carismáticas como a de Obama sempre parecem a mancha de Rohrshcach -as pessoas tendem a ver nelas o que querem.

Acordo tácito
Seria ingenuidade culpar um político profissional como Obama por não capitalizar em cima desse dom de poder representar praticamente todas as coisas para todas as pessoas. Não obstante, o lado liberal da aparentemente intencional suspensão coletiva de descrença do eleitor é um dos aspectos que mais chamam a atenção nesta campanha. Uma parte tão grande dos partidários de Obama fala não de suas políticas, mas de sua capacidade de "promover transformações".
Mas não há consenso nem clareza quanto a quais serão essas transformações. Trata-se de uma recapitulação moderna do conceito do "toque real" curador. Mas isso também significa que muito poucos de seus partidários fazem uma idéia clara de como será uma possível Presidência Obama, e, já que ele também é novato em política eleitoral, há pouco em seu histórico que sirva de guia. Vista com frieza, é difícil não achar que a conversão da política presidencial americana em um "concurso de beleza" deu outro passo gigantesco à frente no ciclo eleitoral de 2008.
McCain, o "herói de guerra", Palin, a heroína das pequenas cidades conservadoras, e Obama, o paladino da América multicultural (Biden mal chega a ter sua presença registrada) -cada um deles entre aspas. Não estivesse o mundo numa situação tão grave e difícil, e não dependesse seu destino a tal ponto das decisões tomadas pela pessoa entre essas que vier a ocupar a Casa Branca, poderíamos nos divertir com a farsa.
Mas, diante do estado atual do mundo, só podemos torcer para que as coisas não dêem muito errado -sem, infelizmente, termos muita base para acreditar nessa possibilidade.

DAVID RIEFF é pesquisador sênior no World Policy Institute, membro do Council on Foreign Relations e autor, entre outros, de "Going to Miami". Este artigo foi distribuído pela Wylie Agency e será publicado na "Letras Libres"

Tradução de CLARA ALLAIN


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