São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2001

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ARTIGO
É nosso triste dever caçar fanáticos que serão mitos devido à morte que queremos lhes impor

Guerra suja e inevitável


Existe alguma solução que nos impeça de fazer do nosso arquiinimigo um arquimártir?



O Reino Unido que Tony Blair conduz à guerra é um monumento à má administração



Não podemos impedir que surja um terrorista cada vez que se elimine um povoado



Os temores que compartilhamos são os que quem nos atacou quer que sintamos


JOHN LE CARRÉ


8 de outubro de 2001. "Começaram os bombardeios", grita a manchete de hoje do "The Guardian", normalmente contido. "Está lançada a batalha", ecoa o igualmente cauteloso "Herald Tribune", citando George W. Bush. Mas lançada contra quem? E como ela vai terminar? Que tal com Osama bin Laden acorrentado, parecendo mais sereno do que nunca, mais semelhante a Cristo, comparecendo diante de um tribunal composto pelos vencedores e tendo o advogado Johnny Cochrane para defendê-lo? Uma coisa é certa: os honorários do advogado não serão problema.
Ou, então, com um Bin Laden reduzido a mil pedacinhos por uma das bombas inteligentes sobre as quais lemos a toda hora, aquelas que matam terroristas em cavernas, mas sem quebrar a louça? Ou será que existe uma solução que ainda não me veio à cabeça, capaz de nos impedir de transformar nosso arquiinimigo em arquimártir aos olhos daqueles para quem ele já é um semideus?
Mas precisamos castigá-lo, sim. Precisamos levá-lo à Justiça. Como qualquer pessoa em sã consciência, não vejo outra saída. Enviemos a comida e os remédios, forneçamos a assistência, recolhamos os refugiados famintos, os órfãos mutilados e os pedaços de corpos -desculpem-nos, são os "danos colaterais"-, mas, quanto a Bin Laden e seus homens terríveis, não há escolha: eles precisam ser caçados e capturados.
Infelizmente, o que a América mais deseja neste momento, mais do que a vingança justa, é mais amigos e menos inimigos. E o que a América está reservando para si -e nós, britânicos, também- é ainda mais inimigos.
Mesmo depois das propinas, ameaças e promessas com as quais montou-se a colcha de retalhos dessa coalizão bamba, não podemos impedir que surja um novo terrorista suicida cada vez que um míssil mal direcionado eliminar um povoado inocente, e ninguém é capaz de nos mostrar como fugir deste ciclo diabólico de desespero, ódio e, mais uma vez, vingança.
As fotos e imagens estilizadas de Bin Laden mostradas pela televisão apontam para um homem de um narcisismo homoerótico, e talvez possamos derivar um grão de esperança disso.
Quando ele posa com uma Kalashnikov, comparece a um casamento ou consulta um texto sagrado, irradia, com cada gesto auto-adorador, toda a consciência da lente do fotógrafo que é típica de atores.
Ele possui altura, beleza, graça, inteligência e magnetismo, todas ótimas qualidades a não ser que você seja o fugitivo mais procurado do mundo, caso no qual tornam-se desvantagens difíceis de ocultar. Mas, pelo menos para meu olhar cansado, maior do que tudo isso é sua mal contida vaidade masculina, seu anseio pelo drama protagonizado por ele mesmo e sua escondida paixão por ser o centro das atenções. E é possível que essa característica acabe provocando sua queda, levando-o a representar o ato dramático final da autodestruição, produzido, dirigido e representado até a morte pelo próprio Osama bin Laden.
É evidente que, segundo as normas já aceitas do combate terrorista, a guerra já foi perdida há muito tempo -por nós. Que vitórias poderíamos conquistar que pudessem compensar as derrotas que já sofremos, sem falar nas derrotas que ainda temos pela frente? "O terror é teatro", me disse um incendiário palestino de fala mansa em Beirute, em 1992. Ele se referia ao assassinato dos atletas israelenses na Olimpíada de Munique, mas poderia igualmente bem estar falando das torres gêmeas e do Pentágono. Bakunin, evangelista do anarquismo, gostava de falar da propaganda política exercida pelo ato. Dificilmente se poderia imaginar atos de propaganda política mais teatrais e mais contundentes do que esses.
Hoje Bakunin está no túmulo, e Bin Laden, em sua caverna, deve estar esfregando as mãos de alegria, enquanto nos lançamos no processo que tanto prazer proporciona a terroristas da laia deles: às pressas, dobramos nosso contingente policial e nossas forças de inteligência e lhes atribuímos poderes maiores; suspendemos direitos civis básicos e restringimos a liberdade de imprensa; impomos censura pontual e secreta ao noticiário; espionamos a nós mesmos e, nos piores extremos, violamos mesquitas e perseguimos cidadãos nas ruas porque a cor de sua pele nos dá medo.
Todos os temores que compartilhamos -"Será que tenho a coragem de pegar um avião? Será que eu conto à polícia sobre o casal esquisito do andar de cima? Não seria mais seguro ir de carro até Whitehall hoje? Será que meu filho já voltou da escola em segurança? Será que as economias de minha vida inteira perderam seu valor?"- são precisamente os temores que aqueles que nos atacaram querem que sintamos.
Até 11 de setembro, os EUA ficavam felizes em criticar Vladimir Putin pelos massacres que cometeu na Tchetchênia. As violações dos direitos humanos cometidos pela Rússia no norte do Cáucaso, dizia-se a Putin -o consenso geral era que estávamos falando de tortura em grande escala e assassinatos em quantidade que equivalem a um genocídio-, constituíam um obstáculo ao estreitamento das relações da Rússia com a Otan e com os EUA.
Havia até mesmo vozes -a minha era uma- que sugeriam que Putin deveria juntar-se a Milosevic em Haia: vamos julgar os dois juntos. Bem, podemos dizer adeus a tudo isso. Na criação da nova grande coalizão, Putin vai parecer um santo comparado a alguns de seus colegas de quarto.
Será que alguém ainda se recorda dos protestos contra o que era visto como o colonialismo econômico do G-8? Contra o saqueio do Terceiro Mundo por multinacionais incontroláveis? Praga, Seattle e Gênova nos trouxeram cenas preocupantes de cabeças quebradas, vidros quebrados, violência coletiva e brutalidade policial. Blair ficou profundamente chocado. No entanto, a discussão era válida -até que foi varrida por uma onda de sentimento patriótico manipulado com mestria pela América das grandes empresas.
Traga à tona o tema de Kyoto hoje em dia e você corre o risco de ser acusado de ser antiamericano. É como se tivéssemos ingressado num novo mundo orwelliano em que nossa confiabilidade pessoal, enquanto companheiros de luta, é medida pelo grau em que evocamos o passado para explicar o presente. Sugerir que há um contexto histórico em que se deram as atrocidades recentes é, por implicação, encontrar desculpas para elas. Quem estiver do nosso lado não fará isso. Quem o faz está contra nós.
Dez anos atrás eu me tornara um chato idealista ao dizer a quem quisesse ouvir que, com o fim da Guerra Fria, estávamos perdendo uma chance que jamais se repetiria de operar transformações na comunidade global.
Onde estava o novo Plano Marshall, perguntei. Por que os rapazes e as moças do American Peace Corps, do Voluntary Service Overseas e seus equivalentes europeus não estavam indo à ex-União Soviética aos milhares?
Onde estava o estadista e homem do momento, de categoria mundial, aquele dotado da voz e da visão necessárias para definir para nós quais são os inimigos reais, embora pouco glamourosos, da humanidade: a pobreza, a fome, a escravidão, a tirania, as drogas, as guerras tribais, a intolerância racial e religiosa, a cobiça? Agora, da noite para o dia, graças a Bin Laden e seus tenentes, todos os nossos líderes viraram estadistas de primeira ordem, proclamando suas vozes e suas visões em aeroportos distantes, enquanto forram seus bolsos eleitorais.
Comentários infelizes têm sido ouvidos -e não apenas vindos do "signor" Berlusconi- sobre uma cruzada. É claro que falar em cruzadas implica um desconhecimento da história que chega a ser delicioso.
Será que Berlusconi estava realmente propondo que se libertassem os lugares santos da cristandade e golpeassem os pagãos? E Bush, estava? Será que extrapolo ao recordar que, na realidade, nós perdemos as cruzadas? Mas tudo bem: as palavras de Berlusconi foram incorretamente reproduzidas, e a referência feita pelo presidente deixou de ser operacional.
Enquanto isso, o novo papel de Blair como porta-voz destemido da América continua firme. Blair discursa bem porque Bush o faz mal. Visto desde o exterior, Blair, nesta parceria, é o estadista mais velho e inspirado, dotado de uma base de poder doméstico inatingível, enquanto Bush -será que alguém ousa dizê-lo hoje?- por pouco nem sequer foi eleito.
Mas o que exatamente representa Blair, o estadista mais velho? Nesse momento, tanto ele quanto Bush avançam firmes, apoiados em altos índices de aprovação, mas, se leram seus livros de história, ambos devem ter consciência de que gozar de altos índices de aprovação no primeiro dia de uma arriscada operação militar no exterior não constitui garantia de vitória no dia das eleições.
Quantos sacos de cadáveres americanos Bush poderá suportar sem perder apoio popular? Depois dos horrores das torres gêmeas e do Pentágono, o povo americano pode querer vingança, mas não vai demorar a alcançar o máximo de sua tolerância quanto a derramar mais sangue norte-americano.
Tendo todo o mundo ocidental, com a exceção de algumas poucas vozes acrimoniosas em casa, a lhe repetir a mesma coisa, Blair tornou-se o eloquente Cavaleiro Branco da América, o confiável defensor daquela sempre frágil criança nascida no meio das águas do Atlântico, a "Relação Especial".
Se isso vai ou não lhe valer o apoio de seu eleitorado é inteiramente outra questão, porque Blair foi eleito para salvar o país da decadência, e não de Osama bin Laden. O Reino Unido que ele está conduzindo à guerra é um monumento a 60 anos de incompetência administrativa. Nossos sistemas de saúde, educação e transportes estão falidos. A frase em voga hoje em dia os descreve como sendo "dignos do Terceiro Mundo", mas existem lugares no Terceiro Mundo muito mais bem servidos do que o Reino Unido.
O Reino Unido que Blair governa carrega o estigma do racismo institucionalizado, da hegemonia masculina branca, das forças policiais administradas de maneira caótica, de um sistema judicial emperrado, de riqueza pessoal obscena e da pobreza pública vergonhosa e desnecessária. No momento de sua reeleição, que foi caracterizada por um índice abismal de comparecimento dos eleitores às urnas, Blair reconheceu todos esses males e humildemente reconheceu que seria seu dever tentar corrigi-los.
Assim, quando você ouve o tremor nobre em sua voz quando ele relutantemente nos conduz à guerra, quando seu coração se entusiasma com seus floreios retóricos indiscutíveis, vale lembrar que ele também pode nos estar lembrando, de maneira subliminar, que sua missão perante a humanidade é tão importante que você terá que esperar mais um ano para sua cirurgia médica urgente e muito mais do que isso para poder viajar num trem seguro e pontual.
Não estou certo de que isso seja o tipo de coisa que vá garantir vitória eleitoral dentro de três anos. Assistindo a Blair e ouvindo-o, não consigo me furtar à impressão de que ele está vivendo um sonho, caminhando sobre a prancha que ele mesmo estendeu e em cujo final ele vai cair n'água.
Eu disse guerra? Será que Blair ou Bush, me pergunto, já viram uma criança explodir em pedacinhos ou já testemunhou o efeito de uma única bomba de fragmentação lançada sobre um desprotegido campo de refugiados? Não constitui qualificação necessária para o generalato ter assistido a tais cenas terríveis, e não desejo essa experiência para nenhum deles. Mesmo assim, me assusta ver rostos políticos inexperientes na guerra brilhando com a luz do combate e ouço vozes políticas imaturas tentando preparar meu espírito para a batalha.
E, por favor, presidente Bush -eu lhe imploro de joelhos, presidente-, mantenha Deus fora disso. Imaginar que Deus trava guerras é atribuir a Ele os piores desmandos da humanidade. Se é que sabemos alguma coisa sobre Ele, coisa que eu, pessoalmente, não me considero em condições de fazer, Deus prefere envios eficazes de alimentos, equipes médicas dedicadas, conforto e barracas decentes para os desabrigados e as pessoas que perderam seus familiares, a aceitação incondicional de nossos pecados passados e a disposição incondicional de corrigi-los. Eles nos prefere menos cúpidos, menos arrogantes, menos evangélicos e demonstrando menos desprezo pelos perdedores na vida.
Não é uma nova ordem mundial -ainda não- e não é uma guerra de Deus. É uma ação policial horrível, necessária e humilhante, para reparar o fracasso dos serviços de inteligência e nossa estupidez política, cega ao armar e explorar fanáticos islâmicos para que combatessem o invasor soviético, para então abandoná-los num país devastado e destituído de líderes.
Como resultado, é nosso triste dever caçar e punir um bando de fanáticos religiosos neomedievais que vai adquirir dimensão mítica devido à própria morte que pretendemos lhes impor.

John Le Carré, 69, é escritor britânico e autor de numerosos romances de espionagem, como "O Espião Que Saiu do Frio" e "A Casa da Rússia".

Tradução de Clara Allain


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