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ELEIÇÕES NA ARGENTINA/ PACOTE DE BONDADES
"Calote" engorda caixa de Kirchner
Fernando Canzian/Folha Imagem
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A família de Ángel Felipe, que acaba de receber uma casa em Resistencia do governo; programas assistencialistas se multiplicam |
Manipulação da inflação, que corrige o débito estatal, já custou US$ 5,4 bilhões aos credores da dívida pública
À caça de votos para eleger Cristina, dinheiro é usado em projetos que distribuem renda e viabiliza corte de impostos para classe média
FERNANDO CANZIAN
ENVIADO ESPECIAL À ARGENTINA
O presidente Néstor Kirchner tem grandes chances de
eleger sua mulher, Cristina, para a Presidência da Argentina
no próximo dia 28 apoiado em
manipulação de gastos públicos, em uma espiral inflacionária escamoteada e em farta distribuição de dinheiro a pobres,
funcionários estatais e membros da classe média.
Tudo a baixo custo, financiado com a imposição de um "calote branco" aos detentores de
papéis da dívida pública.
Enquanto quase metade da
dívida pública foi corrigida de
janeiro a setembro em 5,8%
(inflação oficial do Indec, o IBGE local), os índices de preços
nas Províncias indicam altas
superiores a 16%. A diferença,
resultado da manipulação da
inflação oficial, foi "tungada"
dos credores.
Os maiores perdedores são
os argentinos mais ricos e estrangeiros, detentores de papéis corrigidos em 5,8% e corroídos por uma inflação acima
de 15%. A cada 1 ponto percentual da inflação real que a oficial não capta, o governo deixa
de somar à dívida US$ 548 milhões, já que o débito público
indexado aos preços é de US$
54,4 bilhões -40% do total. Em
2007, os credores já perderam
cerca de US$ 5,4 bilhões.
Kirchner assumiu veladamente o estouro da inflação ao
se reunir com empresários no
meio do mês para pedir uma redução de 5% nos preços de 400
produtos. Foi o segundo encontro do tipo em menos de 15 dias.
Os governadores, mesmo os
de oposição, não reclamam da
estratégia. Eles também devem
ao governo central, e são beneficiados por um índice de aumento menor sobre suas dívidas. A manipulação da inflação
oficial é explicitada mensalmente, quando o Indec e as
Províncias divulgam seus índices. Em um ato falho, o vice na
chapa de Cristina Kirchner, Julio Cobos, governador de Mendoza, divulgou índices para a
região em setembro que representavam o dobro dos apurados
pelo Indec. Com a repercussão
do caso, disse que investigaria
seu próprio instituto.
Outro indicador da manipulação são os juros cobrados em
programas oficiais de microcrédito à população mais pobre: 25% ao ano, altíssimos para uma inflação oficial anual de
8%, mas razoáveis para uma alta "extra-oficial" de 20% a 22%.
Corte de imposto
Nas últimas semanas, a Folha fez vários pedidos de entrevistas, por telefone e e-mail, ao
Indec e ao Ministério da Economia, sem sucesso.
Na reta final da campanha
eleitoral, a inflação e os gastos
do Estado dispararam. Um novo "pacote de bondades" acaba
de livrar retroativamente a janeiro cerca de 300 mil contribuintes de pagar impostos neste ano. Outros 170 mil também
pagarão menos, e milhares de
servidores próximos da aposentadoria terão provimentos
majorados em até 55%.
Há centenas de obras e casas
populares sendo entregues na
Argentina e uma multiplicação
de programas como o Plan Família, que paga 210 pesos/mês
(R$ 1 = 1,76 peso) e Jefes e Jefas
de Hogar (chefes e chefas do
lar, com 150 pesos).
Há poucos dias, a família de
Ángel Felipe, 42, em Resistencia, uma das cidades mais pobres do país, ganhou do Estado
uma casa nova sem nenhuma
contrapartida. Ángel, a mulher
e sete filhos, desempregados,
também recebem 630 pesos
por mês de programas sociais.
Segundo especialistas locais,
o governo Kirchner tem mais
dinheiro para gastar livremente por ter subavaliado a arrecadação. A receita orçamentária
prevista de 168 bilhões de pesos
em 2007 atingiu 144 bilhões em
nove meses, o que dá grande
margem para a distribuição livre de recursos e subsídios.
A manipulação do índice oficial de inflação também provoca distorções em vários indicadores, do crescimento do PIB,
hoje calculado em cerca de 8%
ao ano (mas que deve ser menor por conta da alta dos preços), aos níveis de redução das
taxas de pobreza.
Com a eleição se aproximando, o governo divulgou que o
percentual de pobres na Argentina caiu a 23,4% no primeiro
semestre. Mas como o índice é
calculado a partir do preço de
uma cesta de produtos e serviços (e eles sobem bem mais do
que indica a inflação oficial), o
percentual real de pobres seria
de 28,3%, diz Ernesto Kritz, sócio-diretor da Sel Consultores.
O pico desse índice na Argentina foi de 54%, nos primeiros
meses de 2003, como conseqüência da crise da desvalorização um ano antes, que acabou
com a paridade peso/dólar.
Para o economista argentino
Manuel Solanet, há um risco
cada vez maior de descontrole
da inflação. "A não ser que haja
um grande aumento dos investimentos na produção, não há
como levar a economia adiante
dessa maneira. Tudo está muito concentrado na área da
construção civil. Vamos ver o
que acontece após as eleições."
Para Olegário Lagos, 46, morador da maior favela da zona
central de Buenos Aires, a Villa
31, o estouro da inflação nos últimos meses é "evidente". "Não
temos o que reclamar do movimento. Há mais dinheiro circulando, mas os preços não param de subir", diz. No dia 28,
Lagos vai votar em Cristina.
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