São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2007

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ELEIÇÕES NA ARGENTINA/ PACOTE DE BONDADES

"Calote" engorda caixa de Kirchner

Fernando Canzian/Folha Imagem
A família de Ángel Felipe, que acaba de receber uma casa em Resistencia do governo; programas assistencialistas se multiplicam


Manipulação da inflação, que corrige o débito estatal, já custou US$ 5,4 bilhões aos credores da dívida pública

À caça de votos para eleger Cristina, dinheiro é usado em projetos que distribuem renda e viabiliza corte de impostos para classe média

FERNANDO CANZIAN
ENVIADO ESPECIAL À ARGENTINA

O presidente Néstor Kirchner tem grandes chances de eleger sua mulher, Cristina, para a Presidência da Argentina no próximo dia 28 apoiado em manipulação de gastos públicos, em uma espiral inflacionária escamoteada e em farta distribuição de dinheiro a pobres, funcionários estatais e membros da classe média.
Tudo a baixo custo, financiado com a imposição de um "calote branco" aos detentores de papéis da dívida pública.
Enquanto quase metade da dívida pública foi corrigida de janeiro a setembro em 5,8% (inflação oficial do Indec, o IBGE local), os índices de preços nas Províncias indicam altas superiores a 16%. A diferença, resultado da manipulação da inflação oficial, foi "tungada" dos credores.
Os maiores perdedores são os argentinos mais ricos e estrangeiros, detentores de papéis corrigidos em 5,8% e corroídos por uma inflação acima de 15%. A cada 1 ponto percentual da inflação real que a oficial não capta, o governo deixa de somar à dívida US$ 548 milhões, já que o débito público indexado aos preços é de US$ 54,4 bilhões -40% do total. Em 2007, os credores já perderam cerca de US$ 5,4 bilhões.
Kirchner assumiu veladamente o estouro da inflação ao se reunir com empresários no meio do mês para pedir uma redução de 5% nos preços de 400 produtos. Foi o segundo encontro do tipo em menos de 15 dias.
Os governadores, mesmo os de oposição, não reclamam da estratégia. Eles também devem ao governo central, e são beneficiados por um índice de aumento menor sobre suas dívidas. A manipulação da inflação oficial é explicitada mensalmente, quando o Indec e as Províncias divulgam seus índices. Em um ato falho, o vice na chapa de Cristina Kirchner, Julio Cobos, governador de Mendoza, divulgou índices para a região em setembro que representavam o dobro dos apurados pelo Indec. Com a repercussão do caso, disse que investigaria seu próprio instituto.
Outro indicador da manipulação são os juros cobrados em programas oficiais de microcrédito à população mais pobre: 25% ao ano, altíssimos para uma inflação oficial anual de 8%, mas razoáveis para uma alta "extra-oficial" de 20% a 22%.

Corte de imposto
Nas últimas semanas, a Folha fez vários pedidos de entrevistas, por telefone e e-mail, ao Indec e ao Ministério da Economia, sem sucesso.
Na reta final da campanha eleitoral, a inflação e os gastos do Estado dispararam. Um novo "pacote de bondades" acaba de livrar retroativamente a janeiro cerca de 300 mil contribuintes de pagar impostos neste ano. Outros 170 mil também pagarão menos, e milhares de servidores próximos da aposentadoria terão provimentos majorados em até 55%.
Há centenas de obras e casas populares sendo entregues na Argentina e uma multiplicação de programas como o Plan Família, que paga 210 pesos/mês (R$ 1 = 1,76 peso) e Jefes e Jefas de Hogar (chefes e chefas do lar, com 150 pesos).
Há poucos dias, a família de Ángel Felipe, 42, em Resistencia, uma das cidades mais pobres do país, ganhou do Estado uma casa nova sem nenhuma contrapartida. Ángel, a mulher e sete filhos, desempregados, também recebem 630 pesos por mês de programas sociais.
Segundo especialistas locais, o governo Kirchner tem mais dinheiro para gastar livremente por ter subavaliado a arrecadação. A receita orçamentária prevista de 168 bilhões de pesos em 2007 atingiu 144 bilhões em nove meses, o que dá grande margem para a distribuição livre de recursos e subsídios.
A manipulação do índice oficial de inflação também provoca distorções em vários indicadores, do crescimento do PIB, hoje calculado em cerca de 8% ao ano (mas que deve ser menor por conta da alta dos preços), aos níveis de redução das taxas de pobreza.
Com a eleição se aproximando, o governo divulgou que o percentual de pobres na Argentina caiu a 23,4% no primeiro semestre. Mas como o índice é calculado a partir do preço de uma cesta de produtos e serviços (e eles sobem bem mais do que indica a inflação oficial), o percentual real de pobres seria de 28,3%, diz Ernesto Kritz, sócio-diretor da Sel Consultores.
O pico desse índice na Argentina foi de 54%, nos primeiros meses de 2003, como conseqüência da crise da desvalorização um ano antes, que acabou com a paridade peso/dólar.
Para o economista argentino Manuel Solanet, há um risco cada vez maior de descontrole da inflação. "A não ser que haja um grande aumento dos investimentos na produção, não há como levar a economia adiante dessa maneira. Tudo está muito concentrado na área da construção civil. Vamos ver o que acontece após as eleições."
Para Olegário Lagos, 46, morador da maior favela da zona central de Buenos Aires, a Villa 31, o estouro da inflação nos últimos meses é "evidente". "Não temos o que reclamar do movimento. Há mais dinheiro circulando, mas os preços não param de subir", diz. No dia 28, Lagos vai votar em Cristina.

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