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Ordens demais atrapalham éden de Chávez
Venezuela transforma vilarejo em "núcleo de desenvolvimento endógeno"; instruções de cima contrariam cooperativistas
Investimentos oficiais em Quebrada Seca incluíram reconstrução de todas as casas, além de máquinas e crédito para cooperativa
FABIANO MAISONNAVE
ENVIADO ESPECIAL A QUEBRADA SECA
Os imensos outdoors antecipam a chegada ao vilarejo de
Quebrada Seca com anúncios
ambiciosos: "Povo Livre de Miséria. Você se aproxima do socialismo do século 21". Vencida
a sinuosa estrada de acesso, a
primeira vista revela, no fundo
de um vale, as casas com um ar
de condomínio de classe média
construídas sobre o que já foi o
povoado mais pobre da região.
Mas a imagem de cartão-postal
não conta tudo.
Localizado a cerca de 90 km
de Caracas, Quebrada Seca e
seus cerca de mil habitantes foram escolhidos pelo governo
Hugo Chávez para acolher o
projeto-piloto do Núcleo de
Desenvolvimento Endógeno
(Nude), um modelo de agricultura coletiva concebido para
promover a "revolução agrária"
na Venezuela, onde o setor rural é historicamente incapaz de
suprir a demanda interna.
Instalado numa área de 1.100
hectares na entrada de Quebrada Seca, o projeto reúne cerca
de cem pessoas e começou a receber investimentos depois
que Chávez gravou ali, em 8 janeiro de 2006, o programa de
TV "Alô, Presidente".
A gravação in loco mudou os
rumos da cooperativa Responsabilidade Limitada, que deu
seus primeiros passos em
2003, após conseguir desapropriar parte da fazenda Santa
Tereza, fundada no final do século 18 e fabricante de um dos
runs mais famosos do país.
"Depois do programa, houve
o levantamento topográfico, foi
colocada a tubulação para o sistema de irrigação, houve a instalação do sistema elétrico, a
perfuração de um poço profundo, construção de vias de acesso, vieram os tratores do convênio Irã-Venezuela, se instalaram três tanques de água australianos, fizeram 37 residências para os sócios, houve entrega de crédito e uma estufa
para cultivos protegidos", enumera, de um fôlego só, o associado Endy Venero, 34. E ele
deixou ainda muita coisa de fora, como a criação de coelhos.
As mudanças deram ao vilarejo de Quebrada Seca um ar de
cidade cenográfica. O governo
reconstruiu praticamente tudo, da obrigatória praça Bolívar
à igreja. As casas, com quartos
amplos e acabamento de forro
de madeira, estão sendo substituídas a fundo perdido.
Além da estrutura física, o
povoado conta ainda com uma
lista quase interminável de
programas sociais. Há a rádio
comunitária Quebrada Seca
Revolucionária, as missões
educativas, técnicos agrícolas
cubanos, posto de saúde e trabalhadores voluntários de outras partes do país.
Pimentão ou feijão
Só que nem tudo anda bem
no éden socialista. Estado demais, dizem muitos cooperados, também atrapalha.
A principal reclamação, repetida por vários associados, é a
de que o governo os obriga a
plantar produtos pouco tradicionais na região, tanto na agricultura como no consumo. É o
caso do pimentão, cuja colheita, na fase final, não cobriu as
despesas.
"O governo quer nos colocar
para plantar tomate e pimentão, mas o que queremos é feijão, milho, mandioca, inhame",
diz José Alberto Fernandez, 48.
"Quero produzir o que come o
meu povo, não o que Caracas
consome."
Fernandez diz que, se eles tivessem produzido mais feijão,
teriam suprido as necessidades
de Quebrada Seca. No Mercal
(mercado estatal) do povoado,
o produto desapareceu das prateleiras, reflexo do desabastecimento em todo o país de vários
produtos, como açúcar e leite.
Para conseguir o feijão, é preciso ir até a cidade mais próxima ou comprar de comerciantes ilegais a um preço até seis
vezes maior do que o da tabela
do governo.
O ex-presidente da Responsabilidade Limitada, Victor Gallegos, também culpa a interferência do governo pela sua expulsão do projeto, onde é acusado de desviar parte do financiamento público de 372 milhões de bolívares (R$ 350 mil).
Segundo ele, o dinheiro foi
perdido por culpa do Ministério de Agricultura, que os obrigou a plantar cebola e outros
produtos incomuns na região
como parte dos preparativos do
"Alô, Presidente".
"Os técnicos calcularam que
íamos colher 120 mil kg, mas só
colhemos 12 mil kg. Resultado:
do investimento de 109 milhões de bolívares (R$ 103 mil),
só recuperamos 5,6 milhões de
bolívares (R$ 5,2 mil). Como o
povo queria repartir isso se só
deu prejuízo?", diz, em sua casa
de teto de zinco e sem forro, na
cidade vizinha de El Consejo.
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