São Paulo, domingo, 22 de abril de 2007

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Ordens demais atrapalham éden de Chávez

Venezuela transforma vilarejo em "núcleo de desenvolvimento endógeno"; instruções de cima contrariam cooperativistas

Investimentos oficiais em Quebrada Seca incluíram reconstrução de todas as casas, além de máquinas e crédito para cooperativa

FABIANO MAISONNAVE
ENVIADO ESPECIAL A QUEBRADA SECA

Os imensos outdoors antecipam a chegada ao vilarejo de Quebrada Seca com anúncios ambiciosos: "Povo Livre de Miséria. Você se aproxima do socialismo do século 21". Vencida a sinuosa estrada de acesso, a primeira vista revela, no fundo de um vale, as casas com um ar de condomínio de classe média construídas sobre o que já foi o povoado mais pobre da região. Mas a imagem de cartão-postal não conta tudo.
Localizado a cerca de 90 km de Caracas, Quebrada Seca e seus cerca de mil habitantes foram escolhidos pelo governo Hugo Chávez para acolher o projeto-piloto do Núcleo de Desenvolvimento Endógeno (Nude), um modelo de agricultura coletiva concebido para promover a "revolução agrária" na Venezuela, onde o setor rural é historicamente incapaz de suprir a demanda interna.
Instalado numa área de 1.100 hectares na entrada de Quebrada Seca, o projeto reúne cerca de cem pessoas e começou a receber investimentos depois que Chávez gravou ali, em 8 janeiro de 2006, o programa de TV "Alô, Presidente".
A gravação in loco mudou os rumos da cooperativa Responsabilidade Limitada, que deu seus primeiros passos em 2003, após conseguir desapropriar parte da fazenda Santa Tereza, fundada no final do século 18 e fabricante de um dos runs mais famosos do país.
"Depois do programa, houve o levantamento topográfico, foi colocada a tubulação para o sistema de irrigação, houve a instalação do sistema elétrico, a perfuração de um poço profundo, construção de vias de acesso, vieram os tratores do convênio Irã-Venezuela, se instalaram três tanques de água australianos, fizeram 37 residências para os sócios, houve entrega de crédito e uma estufa para cultivos protegidos", enumera, de um fôlego só, o associado Endy Venero, 34. E ele deixou ainda muita coisa de fora, como a criação de coelhos.
As mudanças deram ao vilarejo de Quebrada Seca um ar de cidade cenográfica. O governo reconstruiu praticamente tudo, da obrigatória praça Bolívar à igreja. As casas, com quartos amplos e acabamento de forro de madeira, estão sendo substituídas a fundo perdido.
Além da estrutura física, o povoado conta ainda com uma lista quase interminável de programas sociais. Há a rádio comunitária Quebrada Seca Revolucionária, as missões educativas, técnicos agrícolas cubanos, posto de saúde e trabalhadores voluntários de outras partes do país.

Pimentão ou feijão
Só que nem tudo anda bem no éden socialista. Estado demais, dizem muitos cooperados, também atrapalha.
A principal reclamação, repetida por vários associados, é a de que o governo os obriga a plantar produtos pouco tradicionais na região, tanto na agricultura como no consumo. É o caso do pimentão, cuja colheita, na fase final, não cobriu as despesas.
"O governo quer nos colocar para plantar tomate e pimentão, mas o que queremos é feijão, milho, mandioca, inhame", diz José Alberto Fernandez, 48. "Quero produzir o que come o meu povo, não o que Caracas consome."
Fernandez diz que, se eles tivessem produzido mais feijão, teriam suprido as necessidades de Quebrada Seca. No Mercal (mercado estatal) do povoado, o produto desapareceu das prateleiras, reflexo do desabastecimento em todo o país de vários produtos, como açúcar e leite.
Para conseguir o feijão, é preciso ir até a cidade mais próxima ou comprar de comerciantes ilegais a um preço até seis vezes maior do que o da tabela do governo.
O ex-presidente da Responsabilidade Limitada, Victor Gallegos, também culpa a interferência do governo pela sua expulsão do projeto, onde é acusado de desviar parte do financiamento público de 372 milhões de bolívares (R$ 350 mil).
Segundo ele, o dinheiro foi perdido por culpa do Ministério de Agricultura, que os obrigou a plantar cebola e outros produtos incomuns na região como parte dos preparativos do "Alô, Presidente".
"Os técnicos calcularam que íamos colher 120 mil kg, mas só colhemos 12 mil kg. Resultado: do investimento de 109 milhões de bolívares (R$ 103 mil), só recuperamos 5,6 milhões de bolívares (R$ 5,2 mil). Como o povo queria repartir isso se só deu prejuízo?", diz, em sua casa de teto de zinco e sem forro, na cidade vizinha de El Consejo.


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