São Paulo, domingo, 22 de maio de 2005

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ANÁLISE

O mistério da insurgência iraquiana

JAMES BENNET
DO "NEW YORK TIMES", EM WASHINGTON

As forças americanas no Iraque são acusadas com freqüência de demorarem a aplicar as lições aprendidas no Vietnã e outras partes à luta contra a insurgência iraquiana. No entanto a impressão que se tem é que ninguém despreza as lições da história mais do que os próprios insurgentes.
Os insurgentes no Iraque estão demonstrando pouco interesse em conquistar os corações e mentes da maioria da população, em conseguir legitimidade internacional, em articular um programa de governo ou mesmo em articular uma ideologia ou causa unificada, excetuando a causa da expulsão das forças americanas.


Os insurgentes no Iraque demonstram pouco interesse em conquistar corações e mentes


Eles não apresentaram nenhum líder carismático, não desenvolveram nenhum governo ou ala política alternativa, não manifestam nenhuma intenção de conquistar território para governar.
Em lugar de empregar a clássica tática rebelde de provocar as forças estrangeiras a empregar força desajeitada ou excessiva e a matar civis, os insurgentes estão descartando intermediários e matando civis de maneira indiscriminada, eles próprios, além de eliminar alvos mais previsíveis, tais como autoridades do novo governo.
As explosões vêm se intensificando nas últimas semanas. E a questão de até que ponto esse aumento nas mortes de civis reflete a estratégia de longo prazo permanece misteriosa.
Não surpreende que os jornalistas, e, evidentemente, os agentes da inteligência americana venham sentindo grande dificuldade em compreender essa insurgência. O que surpreende é que os próprios combatentes se esforçam tão pouco para anunciar suas metas unificadas.
Os especialistas em contra-insurgência estão perplexos e se perguntam se o mundo estará assistindo ao nascimento de um novo tipo de insurgência -se, como aconteceu na China na década de 30 ou no Vietnã nos anos 40, os insurgentes estão levando alguns anos para se organizar, ou se, como desconfiam alguns, a explicação é mais simples.
"Em lugar de perguntar "qual é a lógica? Não estamos vendo nenhuma", poderíamos especular que não existe lógica alguma", aventou Anthony James Joes, professor de ciência política na Universidade St. Joseph, na Filadélfia, e autor de vários livros sobre a guerra de guerrilha. Os ataques que vêm ocorrendo parecem "violência gratuita", ele opinou.
Steven Metz, do Instituto de Estudos Estratégicos da Faculdade de Guerra do Exército americano, disse que é possível que a insurgência ainda não tenha se definido e se posicionado a contento. No entanto, para ele, "é realmente significativo que, mesmo depois de dois anos, ainda não surgiu nada como uma espécie de ideologia política, porta-voz político ou ala política. É realmente uma insurgência niilista".
Os insurgentes no Iraque parecem estar lutando por causas diversas. Os membros do partido Baath querem algum tipo de volta do regime antigo. Os muçulmanos sunitas estão lutando para impedir o domínio da maioria xiita. Os nacionalistas querem expulsar as forças americanas do país. E os combatentes estrangeiros querem transformar o Iraque num campo de batalha de uma luta religiosa global.
Os grupos insurgentes no Iraque parecem compartilhar um objetivo imediato comum de libertar o Iraque da presença americana. É um objetivo que pode encontrar eco entre os iraquianos indignados com o fornecimento escasso de água e luz e o alto índice de desemprego.
Mas os insurgentes não propuseram publicamente nenhuma alternativa ao governo, e sua mensagem antiamericana vem sendo maculada por seus ataques a civis e pela eleição de um governo iraquiano que não pediu a saída dos americanos.
Se a insurgência está tentando derrubar o regime atual, ela enfrenta um obstáculo formidável com o qual os rebeldes bem-sucedidos do século 20 de modo geral não contavam: um governo democraticamente eleito. Um dos mais famosos teóricos e práticos da revolução no século passado, Che Guevara, descreveu esse obstáculo como insuperável.
"Aonde um governo chegou ao poder através de alguma forma de voto popular, fraudulento ou não, e mantém pelo menos uma aparência de legalidade constitucional", ele escreveu, "não é possível promover um levante guerrilheiro, na medida em que as possibilidades de luta pacífica ainda não terão sido esgotadas."
Ao que parece, os insurgentes tentam impedir qualquer progresso rumo à estabilidade, com evidências e imagens do caos.
O curioso na tática empregada no Iraque é que ela parece visar criar oposição ativa. O objetivo parece ser dividir a frágil coalizão de governo e fomentar a desunião entre xiitas, sunitas e curdos.
No entanto, se os insurgentes conseguirem provocar um conflito civil amplo, os prováveis perdedores serão os próprios sunitas, já que constituem minoria. Tendo governado o país durante décadas, os sunitas estão acostumados a exercer a hegemonia; é possível que presumam que venham a ser capazes de reconquistar o controle. Ou, quem sabe, podem estar apostando que o caos leve à divisão do país, de modo que os sunitas possam governar a si mesmos.
Autor de um estudo sistemático publicado em 1964, "Counterinsurgency Warfare: Theory and Practice" (a guerra de contra-insurgência: teoria e prática), David Galula notou a eficácia da força e da intimidação como ferramentas de uma insurgência. Mas acrescentou um porém crucial: "É claro que existe um limite prático, senão ético, ao emprego da força. A regra consiste em nunca antagonizar, em nenhum momento dado, mais pessoas do que aquelas que se é capaz de controlar".
As tropas americanas e iraquianas lançaram uma ofensiva no oeste do país em parte na esperança de cortar o que o comando militar afirma ser um fluxo de materiais militares e combatentes estrangeiros vindo do outro lado da fronteira síria. Mas especialistas dizem que, a não ser que estacione milhares de soldados ao longo da fronteira, as chances de estancar esse fluxo são pequenas.
Se o objetivo imediato dos insurgentes fosse relativamente limitado, eles pelo menos teriam precedentes sólidos. Como observou o especialista em contraterrorismo Bruce Hoffman, "durante mais de 30 anos um grupo dedicado de até 400 combatentes do IRA frustrou a manutenção da lei e da ordem na Irlanda do Norte, exigindo o envio prolongado de dezenas de milhares de tropas britânicas". Mesmo assim, o IRA ainda está longe de alcançar sua meta maior de expulsar os britânicos da Irlanda do Norte.
Entre os insurgentes do Iraque, os jihadistas são um grupo que já sugeriu uma meta ampla. Eles querem estabelecer um novo califado -um regime religioso com fronteiras expansivas. Para eles, a destruição e o caos no Iraque podem representar forças criativas, maneiras de intensificar os contrastes entre seitas, religiões e civilizações inteiras. Vários especialistas comparam os insurgentes no Iraque aos anarquistas do final do século 19 e início do século 20. O movimento deitou raízes entre os que não encontravam um lugar na sociedade moderna.
Mas a história não consegue lançar luz sobre o conflito em curso no Iraque, e esse fato pode ser uma das lições que humilham a história. Ninguém sabe ao certo o que os insurgentes querem.

Tradução de Clara Allain


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