São Paulo, domingo, 22 de julho de 2007

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No voto, Turquia testa nó islã-democracia

Mais de 40 milhões de turcos devem ir hoje às urnas renovar Legislativo; partido do premiê islâmico moderado é favorito

Crescimento econômico alimenta apoio ao AK, mas militares e União Européia ainda desconfiam; crise com secularistas deve ressurgir

Osman Orsal-17.jul.2007/Reuters
Turcas na Mesquita Azul

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

O grande ponto de interrogação sobre as eleições de hoje na Turquia não é sobre quem vai ganhar, mas sobre qual o teor de islamismo do ganhador. Ou, mais exatamente, qual a percepção externa, em especial na Europa, sobre o grau de islamismo do AK (Partido da Justiça e Desenvolvimento), no poder desde novembro de 2002.
As pesquisas e as análises dos observadores internos e externos apontam todas para uma nova vitória do AK. A única incerteza é sobre o tamanho da vitória, se igual ou maior do que na última eleição, quando o AK ficou com dois terços das 550 cadeiras do Parlamento, graças a uma peculiaridade da lei turca: só conseguem vagas no Legislativo partidos que superem 10% dos votos. Assim, o AK, com apenas um terço dos votos, levou dois terços das vagas.
Grenville Byford, do Programa de Estudos do Cáspio do Centro Belfer para a Ciência e os Assuntos Internacionais, prevê que, agora, o AK "provavelmente obterá de 40% a 42% dos votos, resultado inédito no último quarto de século".
Não é o que diz a pesquisa mais recente, do Centro de Estudos Políticos "Verso": atribui ao AK 38% dos votos, o que não deixa de ser um aumento sobre os 34% de 2002, mas que pode lhe dar menos cadeiras porque um terceiro partido superaria a barreira dos 10% (o Partido de Ação Nacional ficaria com 14%, enquanto a principal coalizão oposicionista teria 20%).
Votos mais, votos menos, caberá sem dúvida ao AK formar o novo governo. O que recoloca a discussão sobre o teor de islamismo do partido e de seu principal líder, o primeiro-ministro Recep Tayyp Erdogan.

Crise adiada
Foi esse debate que levou à antecipação do pleito legislativo de novembro para julho. Erdogan indicou para a Presidência da República, um cargo menos decorativo do que o habitual no parlamentarismo clássico, seu chanceler Abdullah Gül, islamita como ele. Substituiria Ahmet Necdet Sezer, um leigo na melhor tradição do laicismo de Kemal Ataturk, fundador da Turquia moderna.
O Exército, em inusual mensagem no seu endereço na internet, vetou a indicação, abrindo uma crise que levou Erdogan a convocar eleições antecipadas e a propor votação direta para eleger o presidente, hoje uma tarefa do Congresso.
Como Erdogan deve vencer de novo, a crise adiada tende a reaparecer, pois há forte resistência de setores tidos como modernos a uma suposta islamização, mas há, igualmente, apoio forte ao islamismo moderado do premiê e seu partido.
Mais: Erdogan fez do ingresso na União Européia uma aposta fortíssima. Um país que seja visto como excessivamente islamizado não teria lugar em uma Europa que se tornou temerosa e até preconceituosa em relação ao islamismo. O novo presidente francês, Nicolas Sarkozy, aliás, já disse que a Turquia não cabe na Europa.
Daí a importância de se entender o teor de islamismo do AK e/ou a percepção que dele se tem fora da Turquia.
Grenville Byford, do Centro Belfer, é definitivo: "Conheço Erdogan, Gül e seus amigos bem o suficiente para dizer que realmente estão comprometidos com a democracia e os direitos humanos. Eles são freqüentemente descritos como tendo raízes islâmicas, o que é verdade, mas seus apoiadores são os homens de negócio da região da Anatólia, que cresceram quando a economia foi aberta nos anos 80. Socialmente conservadores, tradicionalmente (mas não militantemente) muçulmanos e absolutamente convencidos das virtudes da economia de mercado, imprimiram sua marca ao AK".
Reforça um dos mais respeitados acadêmicos norte-americanos, Joseph Nye (Escola Kennedy de Governo, Harvard): "O AK tem um histórico admirável no que toca a crescimento econômico, legislação sobre direitos humanos e melhoria no tratamento dado à minoria curda na Turquia".
Política à parte, o crescimento econômico turco é certamente o fator de maior peso na vitória do governo: o país cresceu "chineses" 33% desde que o AK chegou ao poder. Só no primeiro trimestre deste ano, o crescimento foi de 6,8%.
Já Jerónimo Páez López, do centro espanhol "El Andalusí" (a Andaluzia é uma parte da Espanha que os radicais islâmicos reivindicam), prefere matizar. Escreve no "El País": "Não parece que o governo Erdogan tenha representado uma grave ameaça às liberdades públicas e, sem dúvida, ofereceu estabilidade e crescimento econômico. Mas não manteve uma atitude tão neutra e moderna como alguns querem fazer crer. Seu partido propôs reformas constitucionais preocupantes e, segundo a oposição, está introduzindo uma série de reformas educativas para reforçar a islamização da sociedade".
Tudo somado, parece claro que a eleição de hoje e seus desdobramentos próximos são um extraordinário laboratório para o que Nye vê como "demonstração de que a democracia liberal e o islã são compatíveis".


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