São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2006

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memória

Intelectuais estiveram na vanguarda

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA

Os húngaros, um povo que, oriundo da Ásia central, fala uma língua sem parentes próximos na Europa (finlandeses e estonianos são primos distantes), sempre se sentiram isolados entre seus vizinhos germânicos e eslavos.
Se, durante a Idade Média, a Hungria se manteve independente e forte na fronteira entre vários mundos (o católico e o ortodoxo, o cristão e o islâmico, o europeu e o asiático, o latino e o bizantino, o sedentário e o nômade, o agrícola e o pastoril, o feudal e o tribal etc.), desde os século 16 ela passou a viver à sombra de diversos impérios predatórios: o dos Habsburgos, o Otomano, o dos czares russos.
Como tantas outras nações pequenas, a magiar (que é como os húngaros se chamam) não cessou, portanto, de se preocupar, às vezes obsessivamente, com sua sobrevivência etno-cultural e lingüística num meio hostil, algo que tornou o papel das camadas letradas mais relevante em sua vida nacional do que na de países maiores.
Com a modernização iniciada em meados do século 19, a intelectualidade literária se converteu num dos principais agentes políticos da Hungria e mantém esta posição até hoje. Basta dizer que Árpád Göncz, o primeiro presidente eleito depois da queda, em 1989, do regime comunista, é um romancista e tradutor que, logo antes, presidira a Associação dos Escritores Húngaros.
Se foram muitos os fatores que desencadearam a Revolução de 1956, não há dúvida de que romancistas e poetas, dramaturgos e filósofos estiveram desde o princípio entre seus protagonistas mais visíveis.

Associação com 1848
Convém lembrar que, na consciência dos participantes, aquele movimento, concomitantemente heróico e destinado ao fracasso inevitável, associava-se a outro, a saber, a Guerra de Independência de 1848-49, que, travada contra os austríacos, havia, no contexto da Santa Aliança, sido esmagada por tropas russas. Fora nessa primeira insurreição, aliás, que o poeta nacional, Sándor Petöfi, desaparecera numa batalha aos 26 anos de idade.
No entreguerras, a intelectualidade do país se dividira claramente em duas metades antagônicas: a dos nacionalistas, cujos representantes mais extremos simpatizavam com o fascismo, e a dos liberais (em boa parte judeus e de Budapeste), cuja ala mais radical obedecia à URSS. A derrota, em 1945, do nazifascismo (ao qual o regime do almirante Horthy se aliara) e a ocupação soviética da Hungria asseguraram a ascensão destes.
A revolta que celebra agora seu cinqüentenário não foi, porém, estimulada pelos nacionalistas mas, sim, pelos liberais, que, com o endurecimento do sistema, com seu despotismo, que eles viam como traição a seus ideais, desencantaram-se, convertendo-se em seus críticos ferrenhos. Escritores que, para combaterem o perigo imediato do fascismo, preferiram idealizar o regime comunista, tão logo puderam lhe experimentar a realidade, concluíram o óbvio e, com suas ações, correndo inclusive risco de vida, o denunciaram ao resto do mundo.


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